Quarta 1 de Maio de 2024

Teoria

A 90 anos da Revolução Russa

09 Feb 2007 | “A história das revoluções é para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos” Trotsky – História da Revolução Russa   |   comentários

Petrogrado, noite de 25 de Outubro de 1917: são ocupados os pontos mais estratégicos da cidade. Seguindo a resolução tomada no Soviet de Petrogrado, as principais vias de acesso, transportes, comunicações e os prédios públicos são tomados pelos trabalhadores, camponeses e soldados. Com o Palácio de Inverno ocupado pelas forças revolucionárias, o congresso dos soviets tem como primeiro artigo a supressão da propriedade territorial da nobreza e em meio ao sangue de trabalhadores e camponeses que a guerra imperialista derramava, proclamou a necessidade de uma paz imediata, sem anexações ou indenizações e chamou os trabalhadores e os soldados a se unirem para acabar com a guerra e com a dominação burguesa que tornou ela possível. São assentadas as bases do futuro revolucionário da Rússia, sendo governa-da a partir de então pelos soviets de deputados operários, camponeses e soldados.

Este ano a Revolução Russa completa 90 anos. A força do seu exemplo continua atual e ilumina o caminho de todos os povos do mundo ainda hoje. O que Marx e Engels viam como um prognóstico em 1882 [1] se transformou ’ ganhando um novo conteúdo ’ em história viva do proletariado mundial. A Rússia revolucionária se colocou como o primeiro passo da revolução mundial. O regime dos trabalhadores forjado a ferro e fogo em 1917 serviu de base para processos durante todo o século XX e seu exemplo armou toda a geração do proletariado desse século. O outubro vermelho ecoou em todos os cantos do mundo.

Inauguramos neste número uma sessão que buscará resgatar, ao longo do ano, não só a história da maior vitória do proletariado mundial, como também tentar extrair desse processo as lições da vitória operária e socialista de 1917 e do posterior processo de degeneração, para que a vanguarda dos trabalhadores possa se armar com o que já existiu de mais avançado na luta de classes e para que possamos formar uma nova camada de trabalhadores e de marxistas na tradição de outubro.

O que eram os soviets?

A perspectiva que se abriu em Outubro de 1917, se colocou diversas vezes em processos revolucionários do século XX e suas lições permanecem ainda para os trabalhadores de todo o mundo. Os soviets como forma de auto-organização das massas independentes da burguesia se forjaram como tendência em todos os principais processos revolucionários da história e continuarão a se formar no futuro.

Eles surgiram na primeira revolução russa de 1905, considerada pelos marxistas como um “ensaio geral” da revolução de 1917, processos estes ligados indissoluvelmente pela iniciativa revolucionária das massas. Trotsky, então um jovem marxista à frente do soviet que 12 anos depois seria a vanguarda da revolução na Rússia afirmou: “O soviet organizava as massas operárias, dirigia as greves e manifestações, armava os trabalhadores e protegia a população contra os pogroms [2].(....) Se os proletários, por sua vez, e a imprensa reacionária pela sua, deram ao soviet o título de “governo proletário” foi porque de fato esta organização não era outra coisa que o embrião de um governo revolucionário (...) Ao ser o ponto de concentração de todas as forças revolucionárias do país, o soviet não se dissolvia na democracia revolucionária, era e continuava sendo a expressão organizada da vontade de classe do proletariado” [3]. Para entender melhor o papel que cumpre o soviet, um olhar sobre o ano de 1917 nos demonstrará, além de um potente instrumento das massas em luta e do proletariado em particular, que os soviets foram as expressões embrionários da ditadura do proletariado. Como Trotsky ensinava em 1936 aos marxistas espanhóis que participavam de um profundo processo revolucionário, a Guerra Civil Espanhola:

“O proletariado, se quer entrar na trilha das grandes ações, tem necessidade, já no momento presente, de uma organização que se levante por cima das separações políticas, nacionais, provinciais e sindicais existentes nas filas do proletariado e que corresponda à envergadura tomada pela luta revolucio-nária atual. Uma organização tal, eleita democraticamente pelos operários das fábricas, das oficinas, das minas, dos estabelecimentos comerciais, do transpor-te ferroviário e marítimo, pelos proletários das cidades e do campo, não pode ser mais que o soviete. Os epígonos têm causado um dano incalculável ao movi-mento revolucionário em todo o mundo ao afirmar em muitas mentes o preconceito de que os sovietes se criam unicamente para as necessidades do levante armado e unicamente em vésperas do mesmo. Na realidade os sovietes se constituem quando o movimento revolucionário das massas operárias, ainda que se encontre distante ainda da insurreição, engendra a necessidade de uma organização ampla e prestigiosa capaz de dirigir os combates políticos e económicos que abarcam simultaneamente estabelecimentos e profissões diversas. Apenas a condição de que os sovietes, durante o período preparatório da revolução, penetrem no seio da classe operária, serão capazes de desempenhar um papel de direção no momento da luta imediata pelo poder” .

Em 1917, depois da revolução de fevereiro, que teve os soviets como base e colocou uma coalizão da burguesia com os partidos operários de conciliação de classes no poder à frente do governo provisório [4], Lênin, leva à frente a política de travar uma batalha interna nos soviets contra a influência de tais partidos. Os soviets foram os embriões do governo operário, pois era aí que tudo era decidido pelos trabalhadores no calor de sua luta. Lênin, percebendo isso, travou uma bata-lha para que o partido bolchevique conse-guisse expressar a importância que isso tinha para a vitória da revolução operária - a outra alternativa seria a derrota da revolução de forma trágica, muito parecida com diversos exemplos no século XX.

A questão do poder, os sovietes e o partido bolchevique

Lênin coloca em abril de 1917: “O problema fundamental de toda revolução é o poder do Estado” [5]. Para ele, sem entender e “resolver” este problema não há forma em cumprir um papel consciente na revolução.

Com a queda do czar e a subida ao poder da burguesia, os soviets passam a cumprir o papel de “segundo” poder. Ainda que no Palácio de Inverno, sentassem nas cadeiras os ministros da burguesia, é a partir dos soviets que se organizam os soldados e os trabalhadores que se constituindo como autênticos organismos de duplo poder, nos quais aqueles comandavam a Rússia. A “dualidade de poderes” se constitui como um elemento fundamental da história das revoluções e é necessariamente transitório. O surgimento dessa poder duplo, polarizou a Rússia de maneira jamais vista antes pela história, dividindo a Rússia em dois lados: o da burguesia e do proletariado. E é nele em que as massas podem fazer a experiência com suas direções de maneira mais aguda. E foi a partir dessa experiência que os soviets, tendo o partido bolchevique como direção, passaram a defender a derrubada imediata do governo provisório e a compreender que somente os trabalha-dores poderiam cumprir as tarefas que tanto eram necessárias à Rússia. Isto liga a importância dos soviets á atuação em seu interior de uma direção resolutamente revolucionária, que se expressou naquele momento no partido bolchevique.

Sem ter o partido como elemento consciente da classe operária, a revolução proletária de outubro não teria sido possível. Para as massas Lênin se dirige pela derrubada do governo provisório. Nos soviets o partido bolchevique, consegue a cada ataque da burguesia e seus partidos, elevar o nível de consciência da vanguar-da, armando os operários de ódio à burguesia e clareza da estratégia necessária para sua vitória e tomada de poder. Como disse Trotsky “O Partido Bolchevique mostrou ao mundo inteiro como se deve realizar a insurreição armada e a conquista do poder. Quem contrapõe a abstração dos soviets à ditadura do partido, deve compreender que somente graças à direção bolchevique os soviets puderam elevar-se do lado reformista à forma estatal proletária” [6].

O refluxo da Revolução e as contradições do novo estado proletário

Outubro foi vitorioso, mas o seu destino se ligava, em primeiro lugar, a vitória da revolução na Europa. Como desenvolve Trotsky “a revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: só termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo nosso planeta” [7]. O proletariado russo deu o primeiro passo e tirou o poder da sua burguesia, mas seu destino apenas seria vitorioso com a expansão da revolução:

“Na União Soviética não existe ainda o socialismo, mas um estado de transição cheio de contradições, carregado da pesada herança do passado e, além disso, sob a pressão inimiga dos estados capitalistas. A Revolução de Outubro proclamou o princípio da nova sociedade. A República Soviética não mostrou senão o primeiro estágio da sua realização” [8].

Teria sido diferente o curso da URSS se processos revolucionários operários fossem vitoriosos, com a tomada de poder encabeçada pela classe operária e seu partido de vanguarda levando consigo às massas? Certamente. A Alemanha de 1918 por exemplo, teve sua revolução operária massacrada pela burguesia, que se utilizou da uma social-democracia capituladora no governo para acabar com aquele processo. Se a revolução fosse vitoriosa em um país da Europa como a Alemanha, se fortaleceriam imensamente as bases da revolução russa e seria um tremendo impulso para os trabalhadores de todo o mundo.

A derrota da revolução internacional em processos como o alemão, o húngaro e o chinês nos anos 1920 [9] levando ao isolamento da URSS a seu próprio território, o surgimento da burocracia stalinista que expropriou politicamente as conquistas do proletariado são os dois principais elementos que se ligam intimamente, e explicam o trágico destino do processo russo. Nesse sentido, Lênin escreveu em 1922: “Temos culminado a revolução democrático-burguesa completamente muito mais do que nunca se havia feito em nenhum outro lugar do mundo. Isto é um grande triunfo e não há poder na Terra capaz de nos privar disso...Temos criado um modelo soviético de Estado e por isso temos anunciado uma nova era na história do mundo, a era da dominação política do proletariado, que superará a era da dominação da burguesia. Ninguém pode nos privar disto, ainda que o modelo soviético de Estado terá o toque final somente com a ajuda da experiência prática da classe trabalhadora de muitos países. Mas não temos finalizado a construção nem sequer dos cimentos da economia e as potências hostis do capitalismo moribundo ainda podem privar-nos disto” [10].

A revolução russa inaugurou um novo marco para os marxistas revolucionários e ainda que não tenha se expandido como uma revolução mundial, as bandeiras levantadas pelo outubro vermelho permaneceram vivas pelo legado de Leon Trotsky durante a Oposição de esquerda e depois na IV Internacional, até seu assassinato, por um agente stalinista em Agosto de 1940 no México.

Entretanto, os quase setenta anos de domínio do stalinismo e seus regimes no leste europeu distorceram por completo o que foi a revolução russa. Falsamente se associa o stalinismo com o marxismo revolucionário. O stalinismo esmagou o que foi a revolução de outubro, impós derrotas para inúmeros processos revolucionários no século XX, derramou o sangue da classe operária para garantir sua posição de controle. Aniquilou a velha geração bolchevique. Transformou o que os marxistas deram de continuidade para a teoria revolucionária em difamação. Isso levou a que a burguesia possa se utilizar das mazelas do stalinismo para promover uma ofensiva ideológica contra o comunismo.

Depois da queda do muro de Berlim, foram muitos os que decretaram o “fim do comunismo” ou “a vitória da democracia” . Diversos intelectuais burgueses e até mesmo marxistas renegados que abraçaram o pessimismo histórico alegaram o fim da classe operária, e com ela a perspectiva revolução socialista. É como uma resposta a esta discussão que hoje travamos um combate para que o legado da revolução russa, e de Leon Trotsky se transformem em uma tradição viva, que novamente faça síntese com o movimento operário, respondendo dessa forma aos desafios colocados na atualidade.

Hoje, ainda que não estejamos em um auge, que permita o surgimento de uma nova revolução proletária, a situação internacional se mostra como bastante dinâmica. Resgatar as lições de outubro e do legado dos marxistas é imperativo para forjar uma nova camada de revolucionários. Depois de décadas de ofensiva da burguesia, a classe operária começa a se recompor de maneira incipiente em diversos processos e países. Trata-se de resgatar a “aposta leninista” , construindo e desenvolvendo partidos revolucionários orgânicos da classe operária, fundindo com o que existe de mais avançado na classe operária com intelectualidade marxista.

[1“... se a Revolução Russa torna-se o sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra, a atual propriedade de terra em comum na Rússia poderá servir de ponto de partida para uma evolução comunista.” , Karl Marx e Friedrich Engels em Prefácio do Manifesto Comunista à edição Russa, 1882.

[2Ações de violência, que incluíam campos de trabalho forçado por parte da policia czarista em relação aos membros de outras nações, sobretudo dos judeus, que se encontravam na Rússia. O regime nazista se utilizou desses campos entre a primeira e a segunda guerra mundial, como forma de exploração direta da força de trabalho do proletariado judeu e conseqüentemente, como opressão nacional.

[3Trotsky A revolução de 1905.

[4São os partidos Menchevique e o Socialista Revolucionário que tinham como estratégia subordinar o proletariado à burguesia, e dirigiram os soviets até Outubro

[5Lênin, A dualidade de poderes, abril de 1917.

[6Leon Trotsky, Bolchevismo e Stalinismo, agosto de 1937.

[7Trotsky em A revolução permanente, 1929/30.

[8Trotsky, Conferência A revolução russa, 1932

[9Nesses países, durante a década de 1920, se desenvolveram processos revolucionários que foram derrotados.

[10(Obras escolhidas, vol 33).

Artigos relacionados: Teoria









  • Não há comentários para este artigo