Sábado 27 de Abril de 2024

Teoria

A 90 ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA

A propósito da mitologia criada por seus detratores

15 Jan 2008 | Apresentamos abaixo a intervenção do companheiro Christian Castillo, do PTS, na Conferência de homenagem aos 90 anos da Revolução Russa realizada no dia 24 de novembro na Faculdade de Ciências Sociais da UBA.   |   comentários

Toda vez que se completa um novo decênio da revolução russa se coloca uma grande polêmica, onde saem livros de história, artigos nos jornais, onde para a burguesia e seus ideólogos é chave tentar apagar todas as lições e conclusões que a classe operária pode tirar da primeira ocasião na qual chegou a tomada do poder de um Estado. Nesta ocasião talvez tenham publicado menos livros de história, mas tiveram uma onda de artigos jornalísticos. Quase todos os jornais têm publicado suplementos, onde o amplamente dominante são os artigos que tentam anular todas as conclusões revolucionárias que possam tirar sobre a revolução e, longe disso, transformá-la em uma espécie de criadora dos males da humanidade. Vou tomar das distintas polêmicas quatro ou cinco argumentos que tem estado nestes debates, citando diversas referências.

Revolução ou golpe de estado?

Primeiro, tem um argumento que se seguimos os distintos trabalhos que foram publicados, e também retomando na realidade parte do que tem feito distintos historiadores há décadas, se empenha em comparar e contrastar outubro de 1917 com o que teria sido uma revolução legítima, a qual se exemplifica com a revolução de fevereiro, assinalando que na realidade outubro, a tomada do poder em outubro, não foi mais que um golpe de estado. É um argumento que vocês vão ver que se repete: outubro na realidade não foi uma revolução, mas meramente um golpe de estado dos bolcheviques.

Por exemplo, vocês talvez tenham lido no jornal Perfil que Juan José Sebrelli publicou um artigo no qual depois de colocar que na realidade a base bolchevique havia sido uma “soldadesca” que tinha ficado em Petrogrado e que era uma espécie de “gente disponível” para qualquer demagogo, tem que ser citada uma frase na qual sem se dar conta ele brinda uma homenagem aos bolcheviques. Disse Sebrelli: “Em contraposição à revolução de fevereiro, surgida espontânea e inesperadamente de uma explosão social imprevista, a revolução de outubro foi minuciosamente preparada de antemão, planejada até em seus menores detalhes. A tropa de assalto era composta de cerca de mil homens, em sua maioria soldados e marinheiros. É sintomático que um dos planejadores fosse Antonov-Ovsenko, um oficial do exército imperial que passou para o lado dos bolcheviques, que além disso era conhecido como matemático e jogador de xadrez. A insurreição de outubro foi planejada como uma batalha militar, como um teorema matemático, e uma partida de xadrez. Não foi então uma revolução no sentido clássico, se ajustou em contraposição a todas as características de um Golpe de Estado”

E porquê isso que disse alguém que tenta desprezar a revolução é, entretanto, uma grande homenagem aos dirigentes da revolução? Porque justamente o que os bolcheviques dirigiram e no que mostraram ter uma importante capacidade, ao menos em Petrogrado, é na direção do que Engels já chamava: da arte da insurreição. Contrapondo fevereiro a outubro, o que se quer exaltar é que as classes exploradas somente têm direito ao levantamento quando o façam às cegas, enquanto o façam de maneira espontânea. Pelo contrário, quando esse levantamento, quando essa rebelião contra a ordem estabelecida, quando essa quebra do poder das classes dominantes é feito de maneira planejada, como um “teorema matemático” , como uma “batalha militar” , isto é, precisamente, cientificamente, então não seria uma revolução legítima.

Para os marxistas a arte da insurreição coloca justamente a necessidade de combinar a insurreição com a conspiração. Vocês lembrarão que Marx discutia muito com um grande revolucionário francês que se chamava Augusto Blanqui. Na teoria política marxista o blanquismo se identifica com a idéia de reduzir o processo revolucionário ao momento da organização da insurreição, ao momento da conspiração. Mas Blanqui subestimava o que os marxistas chamamos as condições objetivas da revolução, isto é que a organização da insurreição é uma condição necessária, mas não uma condição suficiente para o triunfo revolucionário.

A teoria marxista coloca que a revolução inclui, obviamente, a preparação minuciosa do momento insurrecional, mas que esta somente pode levar à vitória revolucionária se expressa a vontade de milhões de explorados de terminar com o poder existente. O que esses debates evadem na verdade, nesta polêmica, é que o momento da conquista do poder, o momento em que o Comitê Militar Revolucionário sob a direção de Trotsky planeja minuciosamente em Petrogrado como vão tomar o poder, não é algo que se dá somente em um ato. Mas que é o coroamento de uma vitória política e de um processo mediante o qual os bolcheviques haviam começado sendo uma pequena minoria revolucionária em fevereiro, quanto cai o czar, sendo uma minoria nos soviets originais, que estavam dirigidos pelos conciliadores, pelos mencheviques e por socialistas revolucionários. E, em função de se manter firmes e, graças sobretudo a intervenção de Lênin quanto volta em abril e chama a não apoiar o governo provisório; em função de ter marcado a direção estratégica que deveria ter o movimento, de ter ajudado o movimento de massas a fazer a experiência, os bolcheviques, paciente mas persistentemente, como dizia Lênin, foram ganhando a maioria dos soviets. Neste sentido outubro foi o coroamento de uma vitória política que os bolcheviques tinham realizado previamente, que lhes permitiu contar com 390 delegados próprios sobre 650 no 2º Congresso dos Soviets de toda Rússia que começou suas sessões quando a própria insurreição estava acontecendo; e com o pronunciamento favorável à tomada do poder por mais de 500 soviets sobre cerca de 670 que existiam nacionalmente. Este apoio das massas operárias, camponesas e dos soldados à derrubada do poder do governo provisório por parte dos soviets, explica não somente que os bolcheviques pudessem conquistar o poder, mas que puderam se manter nele, contra a expectativa de uma rápida derrubada que tinham seus oponentes.

Porque digo que é uma grande virtude dos bolcheviques ter mostrado seu domínio da arte da insurreição? Porque quanto mais direção política prévia, quanto mais as massas estejam ganhas, quanto mais o problema militar esteja resolvido a favor do duplo poder operário, então menos traumática será a tomada do poder. Pelo contrário, quanto mais espontânea, menos planejada e com menos direção seja a tomada do poder, mais difícil será a vitória. Para os revolucionários, que nos digam que outubro foi minuciosamente planejada, longe de ser um demérito, é uma grande homenagem à ação dos bolcheviques.

Uma “revolução democrática” abortada?

Segundo ponto, ligado ao anterior. Se afirma também que na realidade os bolcheviques abortaram uma situação na qual havia um processo de desenvolvimento da democracia burguesa na Rússia. Que os bolcheviques deram um golpe de estado e assim evitaram a tendência à cristalização de uma democracia constitucional para substituí-la por um regime autoritário. É preciso dizer duas ou três coisas em relação a esta posição.

Temos em primeiro lugar o contraste histórico. Houve um país onde, pese a existência de condições muito similares às da revolução russa, não se deu a tomada do poder nos moldes dos bolcheviques. Diferentemente da mesma, os revolucionários não conseguiram tomar o poder, mas ao contrário, foram derrotados, seus principais dirigentes foram assassinados e a ala moderada do movimento se manteve no poder.

É um grande exemplo, porque a um ano da revolução russa, cai o regime do kaiser na Alemanha, surgem conselhos similares aos soviets russos, os soldados estão rebelados, os operários estão armados e têm a possibilidade de tomar o poder, mas a ala revolucionária é infinitamente mais fraca. Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Leo Jogiches, esses grandes revolucionários que se opuseram à maré chauvinista, que foram presos por enfrentar a política traidora dos dirigentes social-democratas de defesa de sua própria pátria, esses grandes revolucionários, no entanto, tinham uma organização muito débil e nos momentos decisivos não puderam conquistar o poder. E aí, ao contrário, o que triunfou foi a ala conciliadora. E qual foi o resultado disso? O resultado foi um regime que incluía fortes instituições bonapartistas como as da república do Weimar, com uma constituição em parte parlamentar e em parte com um poder plebiscitário concentrado na figura presidencial que podia declarar o estado de exceção. E poucos anos depois, a dificuldades das condições sociais, dos antagonismos socais, que havia na década de 30, no não triunfo de outras tentativas revolucionárias nos anos de 1921 e 1923, deu como resultado a chegada de Hitler e o nazismo no poder.

Se na URSS, os bolcheviques não tivessem triunfado provavelmente teríamos tido uma ditadura similar. De onde surge o argumento que assinalávamos, que poderíamos denominar “kautskysta” , em alusão a Karl Kautsky, o dirigente da social-democracia alemã? O Partido Social-democrata alemão foi forjando uma estratégia que se opunha pelo vértice à tomada do poder. Vemos como em Kautsky,apesar de se fingir de “ortodoxo” em suas polêmicas com Bernstein, desde 1905 vai surgindo uma política completamente oposta à tomada do poder. Leio uma breve citação para ilustrar, de um texto onde polemiza com o comunista holandês Anton Pannekoek e Rosa Luxemburgo sobre a greve de massas: “Ele (proletariado) deve aspirar a realização que somente poderão ser superados por ações de massas. Ocasião na qual um governo inimigo do proletariado pode ser posto em xeque, mas este jamais pode levar à destruição do poder estatal senão a um deslocamento das relações de poder dentro do poder estatal” .

Essa é a estratégia de Kautsky: mudar a relação de forças “dentro do poder estatal” . Esta “estratégia” adquiriu um nome, foi a “estratégia do desgaste” . Então, por isso no momento da tomada do poder, longe de pensar que havia que desenvolver os soviets como um poder alternativo, um poder para substituir e destruir o Estado capitalista, para eles simplesmente se tratava de utilizá-los como uma forma de pressão, como um adiantamento para manter e reforçar o peso da classe operária dentro da democracia burguesa.

Eram os soviets meramente “instrumentais” para os bolcheviques?
Em terceiro lugar, vou me referir a outro argumento que está ligado ao anterior e que também é um argumento falacioso. Este diz que para os bolcheviques a organização dos soviets era um elemento meramente instrumental, e que então os bolcheviques na realidade tinham como objetivo o regime do partido único. Sobre este argumento vou colocar duas ou três coisas.

Sobre a primeira parte deste argumento. Se o que se quer dizer com “instrumental” é que os bolcheviques não tinham uma visão fetichista dos soviets, mas sim que deixavam aberta a possibilidade de que outro organismo de auto-organização pudesse cumprir o mesmo papel dos soviets e que o duplo poder da classe operária acaudilhando ao conjunto das massas exploradas pode ter outra forma de desenvolvimento não exatamente igual à dos soviets russos, por exemplo surgir desde os comitês de fábrica, estamos de acordo. É certo que para os bolcheviques se tratava de encontrar quais seriam os organismos que expressassem o novo poder operário, que levassem sempre, insisto, à quebra do Estado burguês. Agora, se o que se quer dizer é que os bolcheviques não tomam o poder pensando em impor uma nova forma de poder estatal que expresse a democracia dos explorados, e se diga de passagem que foi a mais democrática que qualquer república burguesa, este argumento se transforma em completamente falso.

Se para os bolcheviques a luta por um Estado de transição baseado em forma de democracia dos trabalhadores não tivesse sido a chave de sua concepção, então não se pode explicar porquê Lênin no momento em que se encontrava na clandestinidade, em um momento de máxima perseguição, vai dedicar grande parte de toda sua energia para escrever um dos trabalhos sobre teoria do Estado mais relevante que foi produzido na história do marxismo, me refiro ao O Estado e a revolução.

Este é um texto que golpeia a dois lados. Por um lado coloca luz sobre a teoria marxista do Estado contra as tergiversações oportunistas de Kautsky. Lênin diz algo assim como: “Aos marxistas nos têm dito que estamos contra os anarquistas porque o Estado não tem que ser destruído, mas sim que o Estado tem que ser extinto” .

Frente a isso Lênin disse: “certo em um sentido e falso em outro” . Lênin colocava que a diferença entre os marxistas revolucionários e os anarquistas não estava em que uns proclamassem a necessidade de destruir o Estado e outros sua extinção, mas sim que uns e outros partem da necessidade de destruir o Estado. O verdadeiro desacordo neste ponto consistia em que os marxistas “se propondo como fim a destruição completa do Estado, reconhecem que este fim somente pode ser alcançado depois de que a revolução socialista tenha destruído as classes, como resultado da instauração do socialismo, que conduz à extinção do Estado, enquanto que [os anarquistas] querem destruir completamente o estado da noite para o dia sem compreender as condições sob as quais pode se conquistar essa destruição” [1].

Por outro lado, quando discute isso contra Kautsky, para se delimitar claramente de reformistas e partindo de quais eram as verdadeiras posições de Marx e Engels, Lênin coloca que a Comuna de Paris tinha dado as bases para uma nova forma de Estado onde sejam as massas as que podem tomar o comando dos assuntos políticos. Justamente os soviets não eram outra coisa que um desenvolvimento qualitativo e adequado, não ao poder de uma cidade, mas ao poder de um Estado de conjunto, de muitos dos elementos da Comuna. O próprio Lênin termina este livro como todo revolucionário queria fazê-lo, dizendo que não pode terminar de colocar as conclusões de 1905 sobre o papel dos soviets porque tinham que dirigir a revolução. Mas além deste fato, insisto, que Lênin não pode concluir o texto e incluir a parte dedicada à análise dos soviets russos: a base de todo seu raciocínio quer dizer que efetivamente na Rússia está colocado, com possibilidades mais ou menos imediatas, que isto que havia sido um primeiro experimento na Comuna de Paris volte a se repetir de maneira ampliada. Que a classe operária exerça o poder através de instituições como os soviets daria aos trabalhadores uma democracia muito mais ampla que a maior das democracias burguesas, ao passo que representaria a ditadura mais férrea sobre as antigas classes dominantes. É certo que a potência do poder soviético póde se expressar somente em parte na experiência da revolução russa. Somente em parte, pois como vocês sabem mal se toma o poder e a contra-revolução lança uma guerra civil contra o poder soviético. Quarto exércitos imperialistas atacam a Rússia do poder dos soviets. Os contra-revolucionários armam os exércitos brancos e assim a Rússia dos soviets esteve quase desde sua própria origem em estado de emergência. Quatro anos depois, quando a guerra civil terminou, a situação foi de uma emergência assustadora. A sociedade soviética fica liquidada desde o ponto de vista económico. Em Petrogrado resta somente 20% do total dos operários que havia antes da revolução, restam 80 mil, e o estado de emergência continuava.

As medidas de restrição da democracia soviética e no próprio seio do partido que tinham sido tomadas como excepcionais para poder derrotar a contra-revolução são logo transformadas em “norma” pelo stalinismo, e nunca se retorna ao que poderia se chamar a “normalidade” da democracia soviética. Quero ler para vocês uma citação adicional, talvez vocês já conheçam, para ver o que os bolcheviques pensavam quando pensavam no poder dos soviets e na ditadura do proletariado. Talvez o maior historiador não marxista da revolução russa, Edward Carr, que fez uma obra monumental há vários anos e que nenhum outro historiado não marxista póde superar, dizia o seguinte: “O fim da ”˜ditadura do proletariado”™ aplicado pelos bolcheviques ao regime estabelecido por eles na Rússia após a revolução de outubro, não comportava nenhuma implicância constitucional especial” , isto é, não explicava como era a forma constitucional do Estado. “Os ecos emocionais da palavra ”˜ditadura”™ associada ao mando de uns poucos ou de somente um, estava totalmente ausente na mente dos marxistas que empregavam a frase. Ao contrário, a ditadura do proletariado seria o primeiro regime na história no qual o poder fosse exercido pela classe que constituía a maioria da população, condição que tinham que se cumprir na Rússia levando a massa dos camponeses a se unir com o proletariado industrial [...] Longe de ser o domínio da violência, prepararia o caminho para o desaparecimento do uso da violência como sanção social, para o desaparecimento do Estado” [2]. Esta era a norma pela qual os bolcheviques lutavam, não o regime do partido único sacralizado pelo stalinismo. Agora, as condições da guerra civil e depois de crise, colocaram uma situação de excepcionalidade em relação a esta norma.

Traduzido por Clarissa Lemos

O Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) é a organização irmã da LER-QI na Argentina, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

[1Lenin, V. I., "El Estado y la revolución", em Obras Completas, T XXV, Editorial Cartago, Bs. As., 1958.

[2Carr, E. H., Historia de la Revolución Rusa. La revolución bolchevique (1917-1923), I, Alianza Editorial, Madrid, 1973, p. 169.

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