Segunda 29 de Abril de 2024

Internacional

A PRECARIZAÇÃO TEM ROSTO DE MULHER

O processo de mobilizações na Índia e a luta pelo fim da opressão às mulheres

26 Feb 2013   |   comentários

Publicamos na íntegra este artigo anexo que compõe a 2ª edição do livro A precarização tem rosto de mulher

Ao longo do livro, buscamos mostrar como a opressão às mulheres,
ainda que não surja com o capitalismo, é parte constitutiva
do mesmo e é chave para que este sistema siga funcionando como
tal. Buscamos também mostrar como há exemplos de lutas de
mulheres, sejam a partir de uma luta em seu local de trabalho ou
se organizando em seu sindicato, em suas comissões, que podem
fazer a diferença em transformar as mulheres, de objetos, a sujeitos
de sua vida.

Neste pequeno artigo, queremos discutir, ainda que de maneira
incipiente, a violência às mulheres na Índia que tomou as
capas de jornais e revistas a partir do estupro coletivo de uma
jovem estudante no fim do ano passado. A essa tragédia, veio
uma resposta das massas, que, com o impulso das mobilizações
políticas internacionais a partir da crise capitalista, saiu às ruas
pedindo justiça.

No dia 16 de dezembro de 2012, uma jovem universitária, de
23 anos, estudante de medicina [1], subiu no ônibus com seu amigo.
Era um dia comum, quando percebeu que havia apenas seis
homens no veículo e que nele estavam querendo fazer um “trajeto
distinto”. A estudante foi estuprada durante horas. Seu amigo
foi forçado a ver tudo. Ao terminarem, espancaram a moça e seu
amigo com uma barra de ferro, e ainda em movimento, jogaram
os dois, sem roupa, na rua. A estudante foi parar no hospital com
diversos danos cerebrais e falência dos órgãos, até que no dia 28
do mesmo mês, não resistiu e morreu. Essa tragédia aconteceu em
Nova Déli, capital da Índia.

Tragédias desse tipo são algo “comum” na Índia. Fazem parte
da realidade da maioria das mulheres desse país que, por medo,
na maioria das vezes silenciam quando violentadas e abusadas.
Mas dessa vez foi diferente: mulheres, mães, pais e crianças resolveram
não se calar e saíram às ruas em um dos maiores processos
de mobilização que a Índia presenciou nos últimos anos. Foram
marchas, barricadas, atos, greves de fome, assembleias estudantis,
moções de sindicatos, entrevistas, documentários; tudo isso para
dizer basta a essa opressão cotidiana que sofrem as mulheres na
Índia.

Depois da notícia do estupro coletivo da estudante, houve
uma marcha de mais de duas mil pessoas, pedindo a punição aos
estupradores. Uma marcha pacífica, com uma reivindicação muito
democrática, mas que foi recebida com muita repressão pela
polícia. Houve mais de 100 feridos. Dias depois, houve uma nova
marcha, em frente à casa da chefe de governo de Nova Déli, Sheila
Dikshit. O governo respondeu com mais repressão e prisões. Foram
dias seguidos de atos e confrontos com a polícia.

Também no mesmo mês, no dia 23, uma moça indiana de 19
anos se suicidou. Ela havia sido estuprada por vários homens em
um festival em novembro do ano passado e, ao fazer a denúncia,
ouviu dos policiais que era culpada pelo estupro e que “fazia por
merecer”. Não bastasse isso, ofereceram dinheiro para que ela não
levasse a denúncia adiante, e sugeriram que ela se casasse com um
de seus estupradores. Tal notícia fez com que os atos crescessem,
e a oposição ao governo, para tentar se relocalizar politicamente,
começasse a se pronunciar e pressionar para que o governo tomasse
providências contra os estupradores.

Esse país não tinha uma mobilização desse tamanho desde meados
de 2011, quando ocorreu a luta democrática dos milhares
que foram às ruas protestar contra a corrupção e o governo de primeiro-
ministro Manmohan Singh. No entanto, existe um salto de
qualidade. A crise capitalista internacional, que desde 2008 ameaça
a economia de diversos países e que tem como saída – para a
burguesia – descarregar sua crise nas costas dos trabalhadores, tem
trazido respostas políticas de diversos setores em vários países, e
isso deu fôlego ao grito das mulheres indianas contra a opressão.
Nos últimos anos, com a crise capitalista, veio a estagnação
econômica e a inflação subindo de 4 para 11%, combinado ao
fechamento de indústrias importantes e de demissões em massa.

Tais ataques vieram juntos a uma resposta política dos trabalhadores.
Uma onda de revoltas e greves operárias tomou conta
desse país em 2009. Números oficiais mostram que a quantidade
de greves subiu 48% em relação ao ano anterior. Infelizmente,
tais greves não foram capazes de passar das reivindicações econômicas
para as políticas. Isso porque os sindicatos majoritários
nesse país são diretamente ligados ao governo e à patronal, o que
traz a necessidade premente dos trabalhadores lutarem por sua
independência política nos sindicatos. Tais greves operárias mostram
que o processo que se deu na Índia no final de 2012 é fruto
de uma revolta social que ultrapassa as demandas democráticas
das mulheres, e traz consigo a necessidade de dar uma resposta
de conjunto aos ataques que os trabalhadores e a população vêm
sofrendo nesse país.

Podemos dizer que estes amplos movimentos democráticos,
como a luta contra a corrupção em 2011 e agora a grande mobilização
contra a opressão às mulheres, que aparecem como uma
continuidade e uma transformação das grandes lutas operárias
que ocorreram nos últimos anos (ainda que com um programa
limitado), podem significar uma tendência, anunciando os rumos
do movimento de massas e do imenso proletariado indiano.

***

A história recente da Índia, a despeito do ciclo de crescimento
dos últimos anos, não deixa dúvidas de que se trata de um país
semicolonial, que, como definia Trotsky, é pressionada ao mesmo
tempo pelo imperialismo e por sua própria burguesia débil:

Se a Índia é um componente interno da burguesia britânica, o domínio
imperialista do capital britânico não é um componente menor da ordem
interna indiana. A questão não pode ser reduzida à mera expulsão de alguns
milhares de exploradores estrangeiros. Não se pode separar esses dos opressores
internos, e quanto mais se fortaleça a pressão das massas, menor será o
desejo dos opressores nacionais de se separaram dos estrangeiros.
 [2]

Ainda que essa citação seja de 1930, quando a Índia ainda era
um país colonial da Inglaterra, e que a burguesia indiana tenha sido
“forçada” a expulsar alguns de seus exploradores estrangeiros para
conseguir sua independência política em 1947, o fundamental se
mantém até hoje. A burguesia indiana governa o país pressionada
pelos interesses imperialistas, que hoje passam por uma relação “amigável” entre esse país e os EUA, que buscam avançar em
acordos estratégicos com os países asiáticos. No que diz respeito
à formação da burguesia indiana, esta esteve sempre apoiada nos
traços mais reacionários da opressão imperialista, conservando
consigo também os elementos mais atrasados de sua organização
social pré-capitalista, questão determinante até os dias atuais.

Um exemplo disso é a vigência do sistema de castas. [3] Ainda
que a constituição indiana de 1950 preveja o fim das mesmas e
“defenda” que o Estado seja laico e que não deve haver discriminação
por castas, esse sistema, que teve sua origem antes mesmo do
surgimento do capitalismo, e que se baseia no hinduísmo – religião
predominante na Índia – segue sendo um dos principais pilares
da organização social desse país. Foge inclusive de um dos discursos
da burguesia, de que com o capitalismo existe “mobilidade
social”, pois a posição social passa de pai para filho, determinando
assim que aquele que nasce em uma casta inferior provavelmente
seguirá assim até sua morte, já que só pode haver casamentos entre
pessoas da mesma casta. É nas castas superiores que estão as principais
dinastias que dirigem o país, e que permitem que mulheres
pertencentes a essas castas ocupem cargos importantes de empresas
ou políticos, usufruindo de direitos democráticos elementares;
enquanto nas castas inferiores as mulheres ocupam os postos de
trabalho mais precarizados e muitas vezes são transformadas em
objetos sexuais em troca do sustento de suas famílias.

A realidade Indiana é a de um país definido pela ideologia
burguesa presente nos veículos de comunicação, dito como um
país “emergente”, que cresce e integra o grupo dos BRICs [4] e
se trata de um importante pólo nuclear [5] e tecnológico. Não
podemos, no entanto, nos enganar em uma falsa oposição entre
Oriente e Ocidente, na qual a chegada de elementos sociais
e econômicos ocidentais questiona, com sua “modernidade”, a
opressão às mulheres. O que verdadeiramente ocorre na Índia
não se trata de uma oposição, mas de uma integração entre as
formas de opressão típicas da sociedade de castas e a opressão
capitalista.

O século XXI assistiu, especialmente nos países nomeados
como “emergentes”, destacando Brasil e Índia, o boom dos call
centers
, que funcionam a partir de um tipo próprio de precarização
do trabalho. Não se trata mais de um trabalho braçal,
ou para as mulheres, a simples função de reprodução das condições
de vida (limpeza, educação etc), mas de que se exija um
grau de qualificação um pouco mais elevado para trabalhos de
baixíssima remuneração, repetitivos e alienantes, que tem altos
índices de assédio moral e suicídio de trabalhadores das centrais
de telemarketing, que servem em alguns casos diretamente ao
sistema bancário ou à publicidade de grandes monopólios. São
empregos que têm em sua maioria mulheres pobres, o que na
Índia é algo diretamente ligado às castas ditas inferiores, e que
no Brasil se dirige a mulheres, homossexuais e negros, como é
o telemarketing, essencialmente apoiado nas divisões da classe
trabalhadora, segundo a qual as mulheres têm salários inferiores.

Esse tipo de precarização tecnológica do trabalho vem
aliada ao crédito e ao aumento do poder de consumo vigente
nos ditos BRICs para criar a ilusão nos trabalhadores
de que agora há para eles trabalho intelectual e condições
de consumir. Na Índia, especialmente bens tecnológicos,
o que, com a chegada da modernidade, se choca com os
costumes. Uma mentira essencial nos países que serviram,
ao longo dos primeiros anos da crise capitalista, para que
os países imperialistas atingidos escoassem sua produção e
explorassem as classes trabalhadoras dessas semicolônias a
baixos custos, baseados na opressão de classe, gênero ou
casta, e na consequente divisão das fileiras dos trabalhadores.
Esse crescimento econômico esteve diretamente ligado
às diversas privatizações e reformas econômicas que sucederam
a partir da década de 1990 [6]. Foi através dessas
reformas que esse país passou a ser considerado um dos
principais países “emergentes”, e é hoje pertencente aos
BRICs. Isso não quer dizer, como apontamos acima, que
com a melhora da economia indiana, as massas passaram
a ter melhores condições de vida. Seguem como nunca as
péssimas condições de subsistência, na qual o crescimento
do PIB vem acompanhado de taxas baixíssimas de renda
per capita: 1.500 dólares anuais. Quantia ínfima, já que
o PIB aumenta cerca de 6% ao ano. A Índia tem uma das
taxas mais elevadas do mundo de pessoas vivendo na linha
da pobreza, e é constituída por cidades inteiras sem saneamento
básico.

Igualdade perante a lei não é ainda igualdade efetiva [7]

A opressão a essas mulheres é gritante. Para a garantia da continuidade
de sua casta, as mulheres são obrigadas a se casarem
com um homem escolhido por seu pai, o que faz com que os estupros
e violência sexuais aconteçam diariamente dentro de casa.
O número de infanticídios na Índia é alarmante. São inúmeras as
crianças meninas que nascem e são mortas pela própria família,
que esconde as provas. A polícia e o governo fazem “vista grossa” e
negam que ainda exista esse tipo de prática no país. Isso acontece
porque quem paga o dote do casamento são os pais da noiva, já
que o noivo “garantirá a segurança” da noiva. Além disso, são inúmeros
os abortos forçados que sofrem as mulheres ao descobrirem
que terão uma filha e a pressão física e psicológica que sofrem as
mulheres para terem meninos na gravidez é brutal.
Na Índia, formalmente, as mulheres têm direitos iguais aos
homens; o feminicidio é proibido, e o regime não se organiza
através de castas. Uma grande mentira. Lênin discutia que a igualdade
perante a lei não significava igualdade perante a vida. Isso,
na Índia, é escandaloso, já que a constituição desse país não passa
de papel molhado.

Segundo dados do Centro Nacional de Registros de Crimes
(NCRB), uma mulher é estuprada a cada 19 horas na Índia. Só no
ano passado, 80% dos casos de violência registrados no país foram
de mulheres. Em 2010 foram mais de 25 mil estupros registrados
e mais de 9 mil mortes por conta do dote.

A opressão histórica às mulheres na Índia não passa, no
entanto, apenas pela precarização de seu trabalho e a opressão dos
costumes; em meados das décadas de 1970 e 1980, sob o governo
de Indira Gandhi, uma mulher, o país foi palco de um agressivo
controle de natalidade, num cenário econômico de introdução
das medidas neoliberais de ataque à classe trabalhadora que
marcaram esse período, sob um discurso economicamente
neoliberal e politicamente conservador. O que esta governante
burguesa aplicava era uma política de esterilizações e vasectomias
em massa e de forma compulsória para lidar com o problema de
superpopulação da Índia, decorrente de elementos econômicos
e culturais e não da ‘’culpa’’ dos trabalhadores indianos. Não
bastasse, ainda impunha sanções às famílias com mais de
dois filhos: os funcionários públicos chefes de famílias que
ultrapassassem o número legal de filhos perdiam seus cargos e os
camponeses perdiam o direito a vias de irrigação. Assim como
na solução dada pelo atual governo indiano para o problema dos
estupros (proposta de toque de recolher para as mulheres), no
tempo de Indira Gandhi foram também elas e suas famílias que
pagaram pela debilidade da burguesia indiana em lidar com as
contradições de seu próprio domínio.

Basta! Diziam as milhares de mulheres e homens que
tomaram as ruas de Nova Déli

Todos esses escandalosos casos de opressão cotidiana escancarada,
estavam entalados nas gargantas das milhares de mulheres
que saíram às ruas ao saberem do caso do estupro coletivo da estudante
no dia 16 de dezembro passado e gritaram: Basta! Foram
dias e dias de manifestações por justiça.

Houve diversas discussões acerca da violência e opressão às
mulheres, desde medidas que endurecessem mais as punições aos
estupradores, como passar a tornar o crime de estupro inafiançável,
até setores como alguns partidos da oposição do governo
defendendo a castração aos estupradores ou a pena de morte. Para
tentar se localizar, houve partidos que passaram de porta em porta
nas casas e entregaram canivetes para as mulheres se defenderem.
Ou seja, mais uma mostra de que a política de defesa das mulheres
não passaria pela garantia de que o Estado defendesse a vida dessas
mulheres, mas responsabilizando a elas próprias por suas vidas e
sua segurança.

Com a pressão das mobilizações, o governo logo julgou e
condenou cinco homens [8] que estupraram a jovem de 23 anos,
coisa que não se via há anos, pois a média de demora para julgamentos
de estupro é de cerca de 3 anos na Índia. A revolta
massiva fez com que o governo se pronunciasse, e este foi à rede
nacional de televisão anunciar que tomaria medidas severas e
que usaria esse caso como “exemplo” para que isso não voltasse
a acontecer. Anunciou a contratação de mais policiais femininas,
a implementação de mais patrulhas policiais noturnas, e
declarou que todos os motoristas de ônibus e seus auxiliares serão
submetidos a checagens. Ônibus com janelas escurecidas e
cortinas serão tirados de circulação. Além disso, hoje analisam
a possibilidade votar um “toque de recolher” para as mulheres
no período da noite, uma medida arquirreacionária, pois reforça
que a culpa pelos estupros seja atribuída às mulheres, proibindo
que essas saiam de suas casas com a ameaça de serem, além de
violentadas, presas pela polícia.

Nessas medidas do governo o que se enxerga é claramente
uma tentativa de se desviar o necessário foco da revolta após
uma história de opressão, divulgando a ideia de que é necessário
castrar ou condenar à pena de morte alguns indivíduos.
A punição dos estupradores é elementar, mas não é sinônimo
de justiça para as mulheres indianas, bem como recolhê-las em
casa ou submetê-las ao julgo policial não significa mais do que
aumentar a opressão e a vigilância, justamente numa época em
que, após tanto tempo silenciosas, se colocaram nas ruas aos
milhares contra a opressão.

O anseio dos milhares que saíram às ruas era por justiça, por
punição aos estupradores. Nada mais justo. No entanto, os partidos
políticos e a burguesia se utilizam de tais anseios para desviar
o foco do real problema e perpetuar o status quo do país. A reivindicação
de muitos pela pena de morte, castração, ou mesmo
prisão perpétua aos estupradores esconde por trás a legitimação
de um regime reacionário, que se apóia em uma crença religiosa
para perpetuar a opressão às mulheres e à população pobre. A
reivindicação justa de punição aos estupradores é uma demanda
democrática fundamental. No entanto, a reivindicação da pena
de morte, que hoje é baseada em um sentimento de ódio à violência
brutal contra as mulheres, pode ser utilizada pela burguesia e
seus governos conta a classe trabalhadora. Isso porque, se a pena
de morte passa a ser legalizada, quando a classe trabalhadora e
a população começarem a se levantar contra a burguesia e seus
governos, os mesmos podem utilizar tal pena para reprimir as mobilizações.
Assim, as medidas legais justas, como a prisão aos estupradores,
é apenas uma parte “imediata” na luta contra a opressão
e a violência às mulheres.

Um dos pilares da perpetuação da violência às mulheres é a
própria polícia. São inúmeros os casos de denúncias arquivadas,
de ameaças às mulheres que tomam coragem de denunciar seus
agressores e são violentadas na própria delegacia, ou são abusadas
verbalmente ao ouvirem dos policiais que são elas as próprias culpadas
pelo estupro, pois “estavam provocando”. Uma das medidas
que o governo anunciou foi a contratação de maior policiamento
feminino, uma forma de buscar acalmar as mulheres que se veem
rodeadas de homens ao irem a uma delegacia. No entanto, o que
determina as providências em relação à violência e estupros contra
as mulheres não é o sexo do policial, e sim a serviço do que está
essa instituição do regime.

A polícia serve para garantir a ordem dentro do capitalismo.
No caso da Índia, como da maioria dos países, de que ordem estamos
falando? Da ordem da propriedade privada, da divisão social
de uma minoria exploradora e uma maioria explorada, que, no
caso desse país, está ancorada em uma religião e no senso comum
da divisão entre castas, que legitimam o poder da burguesia. Ou
seja, colocar mais policiais femininas é apenas uma forma de anestesiar
a mobilização e legitimar a repressão aos que se levantam
contra o governo e suas políticas.

A pena de morte e a castração também são medidas reacionárias,
já que, culpando o “homem estuprador” em si, não respondem
à raiz do problema da opressão. A violência às mulheres
é funcional ao capitalismo, na medida em que, ao colocá-las em
empregos inferiores, ao não remunerar o trabalho doméstico, ao
pagar salários menores pelo mesmo serviço de um homem, utiliza
do discurso e da ideologia de “inferioridade” para lucrar e explorar
mais.

Nessa questão, apesar de décadas após sua publicação, as
premissas do Programa de Transição, de Trotsky, seguem atuais,
especialmente quanto à necessidade de que se liguem as demandas
democráticas (tanto no caso das questões de plena emancipação
contra o imperialismo, quanto na questão da mulher) não podem
ser resolvidas de forma separada da luta da classe trabalhadora
contra a burguesia. É necessário que a classe trabalhadora indiana
se coloque contra a sua burguesia nacional que perpetra “por baixo
dos panos” a opressão de castas e de gênero, e entendam esta como
a mesma luta que a que se dá contra os monopólios imperialistas
que, para além de se apoiar nestes preconceitos pré-capitalistas,
descarregam sua crise nas costas da classe trabalhadora e usam
suas mulheres como mão de obra barata, ajudando a assegurar
seu espaço de oprimidas e passíveis a serem usadas como objetos,
de trabalho precário ou de agressão sexual. Os novos tempos que
se abrem após a crise capitalista anunciam importantes exemplos
para os trabalhadores de todo o mundo. Nos processos egípcios,
tornaram-se comuns as imagens de centenas de mulheres
arrancando seus véus para lutar; no ano de 2008 as trabalhadoras
têxteis da grande fábrica Ghazl Al-Mahala lideraram uma
importante greve num país onde a opressão é grave.

A opressão às mulheres é algo milenar nesse país, e buscar
condenar apenas os culpados pelos atos não garantirá
que vivam livres da opressão. É necessário que se tenha uma
política independente do governo. Que os sindicatos, organizações
estudantis e movimentos sociais se apropriem das bandeiras
das mulheres, sabendo também que se trata de uma luta contra
o sistema capitalista. Trabalhadoras e trabalhadores precisam estar
lado a lado para combater a opressão, não só aquela que se
refere ao gênero, mas que o sistema de castas seja questionado
pelo próprio povo indiano [9] – e não pela ideologia imperialista
se colocando como mais progressista e expropriando-os de seus
elementos culturais - mas enquanto sistema baseado no domínio e
na opressão que enfraquece as massas indianas diante das amarras
semicoloniais.

Nós acreditamos que não será possível acabar com a violência
às mulheres enquanto persista este sistema baseado na miséria
e em condições aberrantes de existência impostas a milhões
de seres humanos pelos interesses de uma minoria com sede de
lucro. Por isso, insistimos que a saída para tamanha violência
não é individual. Enquanto isso, defendemos a necessidade de
levar adiante uma enorme campanha que parta de exigir o fim
da violência às mulheres, ao mesmo tempo em que exigimos
refúgios e casas transitórias para as mulheres vítimas de violência
e seus filhos e filhas, garantidos pelo Estado e sob controle das
próprias vítimas, organizações de mulheres e trabalhadoras, com
profissionais e sem a presença da polícia e da justiça. Nos locais
de trabalho e nos sindicatos defendemos a criação de comissões
de mulheres, independentes dos patrões, que deem atenção
aos casos de assédio sexual e trabalhista ou de discriminação às
trabalhadoras. Defendemos subsídios de acordo com o custo de
vida para as vítimas de violência que estejam desempregadas,
acesso à moradia e trabalho para todas. Licenças remuneradas
para as trabalhadoras que atravessam situações de violência, com
acesso à saúde pago integralmente pela patronal. Nos casos de
estupro e assassinato, exigimos a prisão dos culpados.

Na Índia, hoje, o movimento transcende estas medidas mínimas
e imediatas para lidar com a violência que ocorre diariamente
contra as mulheres, justamente porque o movimento de massas
passa a dar respostas que partem da mobilização e por isso podem
ir além destas demandas. É por isso que as “saídas” de aumento
policial e de toque de recolher não são para diminuir a violência
às mulheres, são para conter este poderoso processo de mobilização
desde as entranhas da Índia profunda que podem colocar
em xeque a governabilidade deste país. É por isso que o enorme
movimento de massas não pode dar nenhum passo atrás. É fundamental
neste momento manter a independência dos governos,
do imperialismo e dos patrões. Que o movimento se alie diretamente
com as fábricas, lutando também contra a violência às mulheres
dentro das fábricas e dos locais de trabalho. Que passe do
questionamento à violência às mulheres ao questionamento desta
sociedade capitalista, se aliando profundamente à classe operária
e pensando as formas de auto-organização para colocar fim a esta
situação de opressão e exploração.

O começo da luta contra a opressão às mulheres, a luta contra
o sistema de castas e suas consequências, é um passo entusiasmante,
mesmo que inicial, que estão dando as massas no planeta. A
luta contra um dos mais milenares sistemas opressivos que o capitalismo
mantem vivo para melhor dividir, humilhar e explorar
a classe trabalhadora, é também um passo para erguer um fortíssimo
movimento revolucionário. Trotsky dizia que aqueles que
mais sofreram com o velho mais consequente lutarão pelo novo.
As mulheres indianas estão entre os que mais sofrem com o velho
em todo o planeta, e de sua luta – combinada ao marxismo revolucionário
– pode erguer-se a novas alturas a luta do proletariado
e das massas no planeta.

[1Gostaríamos que o nome desta vítima da opressão constasse em nosso artigo,
no entanto nos deparamos com um problema de mesma origem: há uma lei na
Índia que proíbe que sejam divulgados os nomes das vítimas de estupro. O pai
da universitária pediu que o nome de sua filha fosse divulgado para que servisse
de inspiração a outras mulheres estupradas e oprimidas, mas o governo indiano
negou seu pedido, apagando a identidade desta jovem.

[2Trotsky, Leon, Tarefas e perigos da revolução na Índia, http://ceipleontrotsky.org/

[3Segundo a religião hindu, as castas são divisões feitas através de Brahma,
divindade suprema e criadora do Universo. São seis tipos de castas: os brahmana
são superiores na divisão social, já que teriam nascido da cabeça de Brahma;
seguido dos ksatrya, que teriam nascido dos braços de Brahma; os vaisya, que
teriam nascido das pernas de Brahma; e por último os sudra, que teriam nascido
dos pés de Brahma. Há ainda os que sequer são considerados dignos de serem
uma casta, os párias, que teriam nascido da poeira dos pés de Brahma. Esses são
considerados como intocáveis ou dalit, haridchens, haryens.

[4Os países que conformam os BRICs são: Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente,
em 2011, a África do Sul. São considerados os países “emergentes”
devido ao seu crescimento econômico nos últimos anos.

[5Em 2008, o governo indiano assinou um acordo de cooperação nuclear com
os EUA, fazendo com que a Índia se tornasse a sexta maior detentora de energia
nuclear do mundo. Isso certamente significa um maior atrelamento e controle
dos EUA sobre a Índia.

[646 No início da década de 1990, a Índia passou por reformas econômicas aos
moldes da ofensiva neoliberal então vigente em todo o mundo. Após um período
de severa estagnação, a economia indiana foi mais aberta ao capital estrangeiro,
principalmente através das privatizações de setores que antes eram monopólios
do governo.

[7Carta de Lênin, “Às Operárias”, publicada no jornal Pravda, de 22 de fevereiro
de 1920.

[8A polícia indiana ainda não sabe quem foi o sexto homem que participou do
estupro coletivo da jovem estudante.

[9Já houve casos, como o do massacre de Khairlanji , em 2006, no qual uma
família de dalits foi assassinada por membros de castas superiores, e suas mulheres
foram arrastadas nuas pelas ruas antes de serem mortas. Isso gerou grande
comoção popular e revolta, evidenciando que já há algum questionamento deste
sistema por parte dos próprios indianos.

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