Quinta 25 de Abril de 2024

Internacional

Economia de guerra, produção armamentista e a atual crise mundial do capitalismo

28 Dec 2014   |   comentários

A indústria bélica constitui um setor importante historicamente para a economia americana, sendo os EUA o país que mais investe nesse setor historicamente. Como e por que isso ocorre?

Introdução

Assistimos recentemente uma contundente vitória do Partido Republicano dos EUA nas eleições legislativas que marcaram a metade do segundo mandato presidencial de Obama. Os republicanos ampliaram seu domínio na Câmara de Representantes, conseguiram maioria no Senado e conquistaram vários governos estaduais.

Ainda que esses fatos da conjuntura política não tenham impacto sobre a análise histórica desenvolvida neste artigo, não deixam de ser altamente relevantes. É que aqui partimos, precisamente, de problematizar a visão veiculada por certos órgãos de mídia (e certos setores incuravelmente centro-esquerdistas) de que Obama teria sido uma guinada “pacifista”, com relação ao “guerreirismo” herdado da gestão George W. Bush, e anteriores. E a atual conjuntura aumenta a importância de determinar isso com justeza, já que aquele resultado eleitoral provavelmente empurrará Obama a uma política mais conciliadora com os republicanos.

Vale lembrar que Obama ganhou a presidência em 2008, no meio do estouro da Grande Recessão, e depois de quase uma década de aventuras militares desastrosas que levaram a derrotas no Iraque e no Afeganistão. Sua grande promessa foi colocar um fim nas guerras de Bush. No entanto, durante seus dois mandatos, aumentou a presença militar no Afeganistão, continuou a “guerra contra o terrorismo” e, o que é uma amarga ironia, irá terminar sua administração com seu país envolvido numa guerra contra o Estado Islâmico, um grupo surgido do caos produzido pela intervenção estadunidense no Iraque. [1]

Acreditamos que o presente artigo dá bases históricas e teóricas para entender porque o “presidente da paz” (lembremos que Obama chegou a receber um prêmio Nobel) se mostrou apenas mais um elo na corrente das políticas belicistas do imperialismo estadunidense.

1 Crise e gastos militares – o problema.

Os gastos militares dos Estados Unidos são os maiores do mundo e, internamente, representam uma parte enorme do PIB, sem paralelo com qualquer outro país do mundo.

O chamado complexo industrial-militar foi formatado desde 1938, quando os gastos militares e a regulação estatal norte-americana do setor bélico foram adotados como política de Estado e, desde então, não mais se deteve. A esfera da produção de armas de tempos de guerra se ampliou e se desenvolve também em “tempos de paz”. As aspas têm a ver com o fato de que os Estados Unidos foram assumindo e promovendo guerras locais, mal se encerrara a II Guerra Mundial, e hoje são o país imperialista que mais possui tropas mundo afora, bases militares inclusive no Japão e na Alemanha. Mais do que qualquer outro país, foram os Estados Unidos que se envolveram em conflitos militares desde a II Guerra.

De uma ou outra forma, com ou sem o pretexto da Guerra Fria, operaram e operam sistematicamente como potência militar planetária, e gastam anualmente com seu setor bélico parte importante e desproporcional de recursos – se comparado com qualquer país. E, na verdade, gastam em patamares próximos aos da II Guerra (mais da metade dos gastos anuais de então), mesmo sem terem entrado em nenhum combate da proporção da II Guerra. O gráfico a seguir se refere a 2012, e dá uma ideia do abismo de gastos entre os Estados Unidos e todos os demais países.


Figura 1 – Os 15 maiores gastadores do mundo na esfera militar [fonte: SIPRI, segundo o www.defesanet.com.br ]

Neste ensaio pretendemos problematizar a questão do comportamento dos gastos militares norte-americanos nos marcos da atual crise econômica mundial que se desenvolve desde a quebra do Lehman Brothers em 2008. E em especial a questão da oscilação, ligeiramente para baixo, dos gastos militares nestes três últimos anos; sobretudo considerando que o setor bélico veio sendo utilizado, já desde a II Guerra, também como um elixir ou uma válvula de escape para a crise crônica do capitalismo norte-americano.

Mais adiante voltaremos a essa questão de certos cortes orçamentários nos marcos da atual crise econômica, não sem antes explicitarmos alguns números que permitam dar uma ideia das dimensões do que estamos mencionando, ao mesmo tempo em que procuraremos enquadrar a questão dos gastos militares em perspectiva histórica. A partir daqui voltaremos ao problema inicial, dos gastos militares na atual conjuntura, nos marcos da crise econômica e geopolítica (inter-Estados) em marcha.

2 Os números da evolução militarista norte-americana

O gráfico a seguir, bem sumariamente mostra a seguinte tendência: montado fundamentalmente na II Guerra, o setor bélico dos USA se incrustou para ficar, no seio da economia industrial e financeira daquele país. Ou seja, o patamar de recursos públicos destinados ao complexo industrial-militar jamais voltou a descer abaixo dos patamares próximos aos da II Guerra. Mais que isso, assumiu níveis progressivamente altos – afora variações conjunturais menores, adotou um peso desproporcional. Desde 1945 já gastou em armas muitas vezes o total aplicado na II Guerra (na época quatro trilhões de dólares). [2]

Seus gastos de guerra evoluíram desde então no sentido do gráfico a seguir.

Figura 2 – Curva dos gastos militares dos Estados Unidos desde a II Guerra. [fonte: www.sdvfp.org ].

O que se observa nesta figura (2): uma tendência a crescimento continuado e sustentado desde a II Grande Guerra, com uma oscilação para baixo, imediatamente após a Guerra, sendo que desde então os gastos sobem para um patamar muito alto, do qual não mais retrocedeu; sua oscilação passa a se dar em base a um patamar elevado. Haverá quedas – nos marcos destes patamares elevados – após a guerra da Coréia, a do Vietnã e da queda do Leste europeu, da URSS; em seguida, já desde 1999, com Clinton, com a guerra desfechada contra a ex-Iugoslávia, voltam a subir e aceleram a subida após o atentado do 11 de setembro de 2001; no bojo da atual crise econômica os gastos militares declinam, embora modestamente.

Não se pode deixar de constatar, em primeiro lugar, que tais gastos são, no mínimo, funcionais para o sistema econômico dos Estados Unidos. Com mais cortes em outros setores ou não, com mais endividamento público ou não, o peso do setor bélico é sempre avantajado. E os gastos são colossais, se avaliados pelo seu montante em dólares atualizados (a comparação em termos de % do PIB não é tão significativa já que o produto norte-americano cresceu exponencialmente, daí a porcentagem tende, proporcionalmente, a descer). Os gastos também são maiores que os declarados oficialmente, já que outras rubricas de natureza militar estão ocultas e/ou distribuídas em ministérios não-militares (energia, aposentadorias, invalidez de guerra etc; lembrando que o custo dos feridos e veteranos de guerra é astronômico).

Se se tratasse de um gasto disfuncional para o capitalismo, teria sofrido recuo significativo. Isso jamais ocorreu e o recuo relativo de mais porte, com exceção daquele dos poucos anos após a Guerra, foi o já mencionado do período seguinte ao fim do bloco soviético; que coincide com a abertura de novas áreas de investimentos no Leste da Europa, na China e uma recomposição relativa da economia, a chamada “era neoliberal”, onde o capital avançou contra o trabalho, lado a lado com a retirada do Estado de amplos setores, dando passagem ao setor privado, aos capitais.
Com o pretexto político do 11 de setembro, em 2001, eis que os gastos militares sofrem enorme aceleração a patamares jamais vistos historicamente em qualquer época fora da II Guerra, ou em qualquer nação.

3 Sucessivos desdobramentos de uma crise histórica

Tentemos visualizar esse setor bélico em perspectiva histórica, desde a II Guerra, nos marcos do capitalismo mundial e teremos a seguinte sequência: os chamados “anos dourados” darão lugar à da crise dos 1970, à ofensiva reacionária e neoliberal, que abre período de 30 anos sem revoluções (a chamada Restauração Burguesa) e, por fim, chegaremos à crise atual, desde a queda do Lehman Brothers.

Comecemos pelos “anos dourados”, desde o fim da Guerra até mais ou menos a crise mundial da economia do início dos anos 1970, período no qual o capitalismo, pela primeira vez desde antes da I Guerra, terá um crescimento real, embora parcial, das forças produtivas, isto é, uma acumulação ampliada do capital. E observemos que em toda aquela onda de prosperidade pós-guerra haverá bolha financeira – embora não na proporção atual – e também crédito ao consumo e o apoio essencial da burocracia stalinista e dos grandes PCs ocidentais para barrar o processo revolucionário em ascenso.

Pois bem, naquela fase, o patamar dos gastos militares não retrocede, se amplia e se aprofunda, para além das suas conjunturas de declínio relativo.

Fica patente como o PIB bélico é orgânico ao sistema. Lado a lado com a questão histórica de fundo – do ponto de vista de como funciona o capital em seus movimentos – de que para obter aquele crescimento parcial das forças produtivas o capitalismo precisou se basear em um nível sem precedentes, verdadeiramente colossal, de destruição de forças produtivas. Colossal porque inclui a destruição de capitais durante a Grande Depressão, durante a II Guerra e ainda assim precisou de outras muletas para poder lograr aqueles níveis de crescimento; a primeira grande muleta foi o “pacto de Yalta”, os já mencionados acordos políticos de conciliação de classe com os PCs e também a cooptação das burguesias coloniais nacionalistas para o mesmo fim, da conciliação e adaptação de classe. A segunda grande muleta foi o arrocho salarial do pós guerra, de toda uma classe trabalhadora esmagada pelo peso da devastação da II Guerra.

Dessa forma, mesmo com a perda de quase um terço do planeta para o outro bloco (onde capitais eram confiscados), a ampla destruição, histórica, de capitais deu passagem a um período de crescimento. O que tem a ver, na perspectiva de O capital, com a queda na composição orgânica do capital.

Já sabemos que isso durou pouco, que precisou contar com o fôlego da guerra da Coreia, que o sistema precisou incluir todo um setor bélico parasitário e dissipador no seu funcionamento “normal”, mas o fato igualmente histórico, revelador da tendência estrutural do capitalismo à estagnação, é o fato de que os “anos dourados” cedem lugar, em menos de duas décadas, à maior crise econômica desde os anos 1930.

Aqui também é importante observar que apesar de toda a funcionalidade do setor bélico para o sistema (e com toda a tensão geopolítica mundial, inclusive a Guerra Fria, dando pretexto para guerras), o militarismo não pôde ser a válvula de escape para a crise econômica na qual o capitalismo mergulhou ali, na virada dos anos 1960-70. Seguiu desproporcional, mas não representou solução, muito menos sustentada, para a crise na economia. O imperialismo tinha mais condições, mais vigor como imperialismo de primeira ordem, para impor sua vontade militar e recorrer ao elixir do setor bélico e não o fez. E nem pôde fazê-lo sequer mais adiante, quando caíram por terra seus grandes rivais da Guerra Fria.

Logo, a primeira hipótese com que se trabalha aqui é que há limitantes na própria economia real e na política para esticar gastos militares até onde o imperialismo tenha vontade, por mais estratégica que seja sua vontade. Sobre tais limitantes nos reportaremos mais adiante.
No momento, vale retomar a perspectiva histórica, dentro da qual a época dos “anos dourados” cede lugar à maior crise econômica desde os anos 1930.

O novo ciclo de ascenso revolucionário (mais ou menos de 1968-1981) se fecha sem o capitalismo conseguir vencer o pântano econômico. A luta de classes não cessara, embora as derrotas se acumulassem do nosso lado. Em meio a isso, o capitalismo desfechará – nos anos 1970-80 – aquela ofensiva política contra a classe trabalhadora e, agora sim, o resultado será um novo ciclo de crescimento/restauração, só que com suas características particulares, marca de um sistema em declínio histórico. Esse novo ciclo, por exemplo, não tem mais o perfil “dourado” do pós-Guerra: não há crescimento de forças produtivas de grande porte nas metrópoles centrais e sim, por exemplo, na China (os empregos norte-americanos vão “crescer” na China); a mais histórica das bolhas financeiras cresce sem cessar engendrando a cada passo importantes crises conjunturais; as taxas de crescimento serão menores do que no pós-Guerra e o próprio crescimento ou funcionamento do sistema se tornará dependente até o extremo de dívidas e de emissão de dólares; quanto ao setor bélico, mesmo sem uma guerra como a da Coreia ou a do Vietnã, mesmo contando com o trunfo da contrarrevolução galopante, não desce dos seus patamares históricos.

Nessa sequência, sem que tenha surgido qualquer imperialismo a ameaçar os USA, eis que a esfera econômica mergulha na sua maior crise histórica de todos os tempos, a atual, que se arrasta nos moldes de uma “estagnação secular”. E em um processo onde o melhor dos cenários seria, nas palavras de A Shaikh, uma estagnação arrastada de mais de década (o pior seria quebra de países, de bolhas, uma crise catastrófica).

Ora, se isso não é declínio histórico de um sistema, que outra coisa pode ser?
É neste ponto que podemos nos deter para um exame dos gastos militares, do setor bélico.

4. Por que o Estado precisa gastar.

Por que não retrocederam? Qual a característica do setor bélico, e também do capitalismo, que faz daquele setor um elemento orgânico do funcionamento do sistema, isto é, uma espécie de câncer do qual o sistema passa a depender?

De parte do sistema, a primeira observação em termos daquela retrospectiva histórica é que ele não mais opera automaticamente. Ele tende, seguindo suas leis naturais, a travar, estagnar.

Trotski chamou a atenção para este dado estrutural, mostrou um sistema que entra em modo decadente na era imperialista (com as forças produtivas se chocando com as fronteiras nacionais), destacou seu equilíbrio instável, na condição de um sistema que passa a se debater no pântano econômico (com crescente dificuldade para a acumulação ampliada do capital, com uma composição orgânica do capital decrescente, com menor base para valorização do capital), com exacerbação da concorrência inter-imperialista e daí, maiores tensões inter-estatais e na esfera da luta de classes; o sistema mergulha na era da crise, guerras e revoluções, em outras palavras; Trotski mostra que o sistema só continuará sobrevivendo enquanto não for superada a crise de direção política do proletariado. Enquanto isso, amplia-se e agrava-se a barbárie do custo social e ambiental dessa sobrevida do Ancient Régime no tempo.

De parte do capitalismo, na mesma época de Trotski, irá surgir Keynes, que vai propor, avant la lettre, o fim do liberalismo econômico. É o grande intelectual orgânico do capitalismo: entende a nova época, isto é que o sistema não funciona mais automaticamente, deixado ao sabor das suas leis e tendências econômicas. Vai alertar que a era do laissez faire acabou, que o Estado tem, doravante, que intervir pesado, gastar maciçamente, mexer com a taxa de juros da economia, para impedir o colapso, a revolução. Ou o Estado regula ou o sistema colapsa. Roosevelt vai fazê-lo sobretudo com os gastos militares e o dirigismo estatal da economia por conta da economia de guerra, Hitler já vinha nessa trilha desde antes, com sua ditadura política executando o mais concreto dirigismo econômico, e é o que fez Obama recentemente através dos colossais QE (quantitative easing, isto é, injeções monetárias astronômicas na economia), que triplicaram a base monetária por um lado, com todas as suas implicações estagnacionistas por outro, mas mas evitaram o colapso, muito pior. A tendência estagnacionista é estrutural; o keynesianismo, seja qual for seu formato, será a contra-tendência para tentar restaurar o equilíbrio rompido de um sistema que não mais funciona automaticamente.

Naquilo que interessa para o nosso problema, os gastos militares, como outros gastos e formas de parasitismo sobre os impostos, de punções sobre a economia real, de capitais fictícios, de crédito, não são apenas funcionais, são as formas a que o sistema recorre, keynesianamente, para não colapsar. Não são vitalidade, são recursos de UTI, de terapia intensiva para um doente terminal (o qual, bem entendido, em sua condição de morto-vivo, ou como se queira chamar, jamais desaparecerá sem a ação consciente e revolucionária da classe trabalhadora com seus partidos e órgãos de democracia de base).

Seja como for, o mal chamado “keynesianismo militar” é parte das contra-tendências – em termos de gastos estatais e indução pública da economia pelo Estado – parasitárias para tratar de manter o sistema de pé. É o seu botox, seu antibiótico, seu elixir, só que aplicado nos marcos de uma crise econômica onde o uso e o abuso desses remédios tem tudo a ver com a “estagnação secular” em curso. O antibiótico está perdendo o efeito. Ele não resolve e nem consegue atingir a questão de fundo: a composição orgânica do capital não cresce, ao passo que a dificuldade de valorização cresce e hoje o sistema, paradoxalmente, depende da China para manter seu equilíbrio global – atualmente sob questão; e, por fim, não houve destruição de capitais à altura de acalmar essas torrentes mais profundas da crise de sobreacumulação do capital. Em síntese, seja qual for a perspectiva de análise, a verdade é que sem destruição histórica de capitais, o sistema seguirá na esfera econômica, empantanado.

É preciso examinar o velho elixir bélico nestes marcos históricos. E também da crise atual à qual voltaremos ao final, na tentativa de fechar nossa hipótese.

5 O setor bélico, contra-tendência

Vejamos antes o setor bélico em si: ele é, sim, uma conveniente contra-tendência na crise em termos de gastos públicos (tanto que foi assumido nos próprios “anos dourados”, em escala orgânica, pelos USA); sua peculiaridade é a de que permite desviar forças produtivas para a esfera destrutiva: capitais sobreacumulados são empregados para produzir uma mercadoria de grande porte que não entra na circulação normal de mercadorias, isto é, o Estado compra as encomendas bélicas e as tira de circulação, não representa consumo produtivo, nos termos de K Marx; deste ponto de vista representa uma contra-tendência à imensa capacidade produtiva de um sistema que encontra cada vez menos chance de valorizá-la. É a economia da morte em função. É igualmente funcional para o imperialismo norte-americano, também, porque aumenta seu poder de coação, digamos, “extra-econômica” sobre os rivais: seu poderio militar – que segue sendo de primeira ordem – lhe dá vantagens òbvias nas tensões geopolíticas (lutas inter-estatais).

Estas são algumas das virtudes contra-tendenciais do descomunal setor bélico norte-americano.

Mas seria uma unilateralidade não considerar que os gastos militares não estão acima da economia, da “saúde econômica”, eles na verdade integram a economia e, portanto, a crise econômica; ou seja, mesmo o militarismo tendo sua dimensão política, sua independência relativa, continua dependente da economia. Não existe a agenda militar por um lado e a economia de outro. E nem se pode esquecer que, no conjunto da dinâmica histórica do capitalismo, sistema que depende de “pacificar” a luta de classes para sobreviver, que depende de impor sua hegemonia geopolítica na concorrência dos capitais, a questão da máquina de guerra adquire uma importância decisiva e contraditória. Esse elemento é particularmente agudo ou tende a se agravar nos marcos da crise econômica atual.
Por um lado, por conta do limitante que a crise econômica estabelece: déficit fiscal, endividamento colossal (maior do que o PIB), estagnação econômica, tudo isso tem a ver com a redução (mínima em todo caso) nos gastos militares dos Estados Unidos. Por outro, com o imperialismo norte-americano enfrentando enorme dificuldade econômica e também na defensiva em termos de hegemonia mundial, a máquina de guerra é a sua grande e mais eloquente vantagem frente a qualquer país ou bloco de países. Desde que não esqueçamos que a crise econômica segue sendo a base da decadência do sistema e que a resposta que o proletariado dará a esta crise é, esta sim, o elemento determinante.

Seja como for, em escala mais ampla, para um sistema que recompôs ou vai recompondo suas bases de classe sobre aquela parte do mundo de onde tinha sido expulso, e que parecia reinar triunfal, é notável a amplitude de sua crise histórica. Seja pelo flanco econômico, seja por sua defensiva, inclusive militar (Iraque, Afeganistão) no front geopolítico, seja também porque hoje, com o predomínio da urbanização sobre o campo e o crescimento avassalador do proletariado urbano (com destaque para o chinês), a esfera da luta de classes passa a ser o calcanhar de Aquiles do capitalismo.

Com o sujeito proletário finalmente em maioria mundial, a emergência política, classista e estratégica dos trabalhadores ganha potencial de fogo maior que nunca, passa a ser área sensível dessa crise histórica do sistema.

6 Considerações finais

No contexto dessa análise, não se pode deixar de considerar o fato de que o imperialismo já tentou recentemente lançar mão do militarismo como o meio para retomar sua hegemonia e formatar seu “século americano”. Foram os anos neoconservadores, desde o atentado das Torres Gêmeas até mais ou menos o ano de 2009. Invadiram o Afeganistão em 2001, o Iraque em 2003, vinham de vento em popa. Sabemos que aquela era W Bush não conseguiu se impor; ao contrário, teve que dar passagem ao débil governo Obama, ao recuo no Iraque (2011) e no Afeganistão, e o que é pior, sem estabilizar um regime a seu favor em nenhum destes dois países; ao lado disso, temos a ambivalência norte-americana na Síria, os acordos com o rival Irã. Tudo isso em meio a algumas vitórias, é certo, mas carregadas de contradições (derrota da Primavera Árabe, o governo militar pró-ianque no Egito, o arremedo de governo fantoche na Líbia etc).

O setor bélico teve, portanto, seu momento de novo auge com os neocons, que teve como efeito revelar o novo patamar da crise de hegemonia dos Estados Unidos.

E aí chegamos à atual eclosão da crise econômica, ao desabamento do Lehman Brothers, seguida da mais profunda crise fiscal e de dívida pública, desindustrialização, dependência de dinheiro externo para seguir funcionando. Tiveram que cortar algum gasto militar, em parte também por conta da retirada das tropas e armas daqueles dois países (ao mesmo tempo em que, diga-se de passagem, “enxugaram” gastos com infantaria mas concentraram na tecnificação da máquina bélica, nos aviões não-tripulados, tropas de elite, na espionagem ou softpower – onde em todo caso receberam o golpe do vazamento do wikileaks - , na guerra biológica, nos satélites, nos bombardeios cirúrgicos de alta tecnologia inclusive contra lideranças inimigas. Ou seja, cortaram um pouco ali e sofisticaram em outros pontos).

A crise econômica apareceu como limitante. Inclusive da hegemonia norte-americana: nesta crise aparece, eloquente, a sua fraqueza produtiva. Sempre há que levar em conta que evitaram eclosão da crise trocando hipoteca podre por dinheiro público e inundando a economia de dólar, porém sem expansão da produção; e os Estados Unidos vivem de dinheiro impresso e de dívidas, ao mesmo tempo em que não têm como reduzir mais a taxa de juros. Nesses marcos, temos um Obama mais fraco internamente, enfrentando uma recuperação débil e sem perspectiva de solução na medida em que a Europa siga, como está, afundando. O mesmo Obama enfrenta resistência importante no seu intento de enfraquecer sua moeda concorrente, o euro (ou seja, obrigando a Alemanha a emitir euro para impedir quebra de algum elo da eurozona, o que teria repercussão impactante sobre a economia global e a banca norte-americana). Não é como antes, onde a Alemanha se alinhava quase automaticamente com Washington.

Esse mesmo governo norte-americano também enfrenta uma China que aumenta seus gastos militares (embora absolutamente detrás dos USA e também defasada em tecnologia militar; em 2013, foram 9,5% da China contra 39% dos USA, em gastos militares; no caso chinês também há que levar em conta suas debilidades estruturais: os investimentos imperialistas são muito fortes por lá, enquanto os investimentos diretos chineses no exterior são em minérios, energia e não em parques industriais de exportação e, além disso, por parte de uma economia que está começando a esfriar).

Geopoliticamente, os Estados Unidos se defrontam com uma Europa que não se anima, inspirada pelos estrategistas dos EUA, a barrar as pretensões da Rússia (depende do seu gás no inverno), ao mesmo tempo em que Obama tem que jogar um xadrez muito delicado, e de risco, na tentativa de impedir uma aliança econômico-militar sino-russa. Em outra região, no Oriente Médio, a mais explosiva situação do momento, os Estados Unidos não estão operando na condição plena de superpotência militar.

Qual o significado de tudo isso do ponto de vista do maquinário bélico e dos gastos militares? Será que podemos afirmar que os USA terão que recuar do militarismo, considerando que estão perdendo nas demais esferas (economia e geopolítica)? Será que, pura e simplesmente, vão aceitar sua decadência e se ajustar pacificamente a um tabuleiro mundial multipolar (e mais ainda, nos marcos de dependência sua em relação à China como credora deles)?

Será que o crescente problema da divida estatal, que drena gastos fiscais vinte e quatro horas por dia, dos gastos para tentar conter deflação, depressão, não irá impactar profundamente o setor bélico (que é elixir mas apenas na mesmo proporção que o Estado tenha margem de recursos para gastar)?

A resposta a esta questão se encontra em outra pergunta: como imaginar que o imperialismo de primeira ordem, que não está conseguindo dar as cartas na esfera econômica e na geopolítica, vai entregar o seu maior e mais forte ativo, a força das armas? Que não vai usá-lo? Por acaso é da natureza de uma serpente, quando acuada, ficar mais mansa ou mais agressiva?

Nossa hipótese é que por mais que seu enorme poderio militar norte-americano fracassou (em casos como Iraque, Afeganistão) em seu papel de recuperação da sua influência global, mas o setor bélico segue sendo seu maior cacife. Não invencível: ele pode perfeitamente ser vencido pela luta de classes inclusive dentro dos USA e a partir de uma, duas, dez vitórias revolucionárias da classe trabalhadora mundo afora. Essa é a perspectiva que pode salvar a humanidade. E diante dela, o militarismo não é invencível para nada. Mas seria superficial de nossa parte pensar que o imperialismo pode mudar sua natureza.

O mais lógico aqui nos parece ser pensar como Esteban Mercatante , que nos adverte que “seria tolice subestimar o poderio norte-americano e interpretar unilateralmente seus sinais de decadência. ´Enquanto seu poder econômico e político se debilita, sua máquina bélica se fortalece. E de longe continua sendo a força mais poderosa para defender a ordem capitalista, respondendo às ameaças ao seu domínio em todo o planeta”.

Mesmo com seu desprestígio, isto é, mesmo levantando farsa atrás de farsa (como o “terrorismo internacional”, as intervenções “humanitárias” na África, na ex-Iugoslávia ou as armas de “destruição em massa de S Hussein”; ou mesmo com o próprio 11 de setembro, hoje bastante desmascarado por pesquisadores independentes), e mesmo manipulando o povo norte-americano, o fato é que eles não podem abrir mão daquilo em que são mais fortes. Inclusive ao custo de uma ditadura nos Estados Unidos, que lhes facilite o uso da máquina de guerra.
O imperialismo deixou acontecer, por exemplo, Pearl Harbour, 11/9, pode “deixar” muito mais, se o objetivo for o de tentar deter um mais profundo e perigoso declínio de sua hegemonia, que já faz água por todo lado. Obama vem perdendo poder para os republicanos no Congresso, por exemplo. Há uma franca crise de hegemonia.

O que também é verdade, para concluir, é que crise de hegemonia, nos marcos da maior crise econômica de sua história, significa, também, que o imperialismo já se vê obrigado a manobrar cada vez mais quando precisa fazer um movimento ofensivo; e não pode impor, por outro lado, sua vontade onde quer e nem como quer. Nesta brecha é que deve se basear a classe trabalhadora e, contando com seu peso majoritário (pela primeira vez na história) e seu decisivo papel na produção, tratando de forjar suas direções políticas classistas para varrer o capitalismo e seu militarismo de uma vez por todas.

[1Para uma análise mais completa, da qual estes comentários são devedores, ver: Claudia Cinatti, “El fin de la ‘Obamanía’”, disponível em http://www.izquierdadiario.com.ar/El-fin-de-la-Obamania

[2Dado do US Defense budget stops growing, de maio 2009, s/a, do site www.strategypage.com

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