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Teoria

A Revolução Russa e o Brasil - Parte II

A social-democracia e a transição ao anarquismo

20 Sep 2007 | Nosso objetivo é indicar definições sobre as primeiras organizações proletárias, principalmente da transição dos primeiros círculos socialistas para o anarquismo. Desta maneira, identificaremos os pequenos movimentos pelos quais transitou o proletariado e suas organizações para alcançar precisas definições sobre o tema da série de artigos: a compreensão histórica e marxista das greves de 1917 e 1918 no Brasil construídas sob a bandeira anarquista e a fundação do PCB.   |   comentários

É muito comum e difundida a idéia de que o movimento operário brasileiro começou com a imigração e com o movimento anarquista. Além de grosseiro erro histórico, sua aceitação contribui para negar o caráter da exploração capitalista que existia em vários ramos da produção neste período de transição. Temos, portanto, a intenção de estabelecer uma visão dialética desta “pré-história” do proletariado no Brasil, partindo de reconhecer que as implicações das teses que agora refutamos parcialmente serão submetidas à crítica em seu devido momento.

Em certas cidades desenvolveu-se uma tradição de lutas operárias desde o final do século XIX. O caso dos portos brasileiros que concentraram grande parte do proletariado é notório: Rio de Janeiro, Rio Grande e Santos foram importantes palcos do movimento operário, bem como no Nordeste, antigo pólo político e económico do país. As distintas profissões, portuários, cocheiros, carroceiros, ensacadores de café, ferroviários e operários da construção civil foram seus protagonistas. A formação da Companhia Docas de Santos, em 1889 concentrou e aumentou o proletariado paulista alterando também a economia do país: “A primeira etapa de formação da classe operária brasileira ocorreu a partir dos últimos anos do século XIX, ligada a um processo de transformações cujo eixo foi a expansão da economia cafeeira” [1]. No entanto, veremos o ciclo do café e o início do primeiro surto de industrialização, ainda que tenha conferido ao proletariado maior peso social, era muito incipiente: entre 1889 e 1902 o percentual de operários industriais cresceu de 0,4% da população para 1%.

As tentativas de fundação de um partido operário no Brasil (1890 - 1902) [2]

Boa parte dos estudos clássicos sobre a formação do proletariado afirma a tese de que o socialismo e o anarquismo pré-1917 devem ser entendidos sempre como movimentos à margem da política nacional, o que em certo sentido objetivo é verdadeiro: “a história destas associações é uma longa série de tentativas isoladas e de derrotas. Às vezes, os operários triunfavam. Mas eram quase sempre vitórias passageiras” [3]. Afirma-se ainda que:

“Uma característica comum envolveu as expressões do proletariado dos dois maiores centros urbanos do país: a carência de continuidade e a fraqueza da organização. É mesmo duvidoso falar-se de um movimento operário anterior ao período 1917-1921. Não se trata apenas da existência de vagas de fluxo e refluxo, constatáveis em qualquer movimento social. Há uma fraqueza mais profunda que se traduz na descontinuidade da luta operária. Tudo parece começar, crescer, desfazer-se e novamente recomeçar, sem que a experiência se acumule e dê origem a uma estrutura organizatória capaz de articular as explosões espontâneas” [4].

Devemos, portanto, avaliar como se formaram e se desenvolveram as organizações operárias e quais fios de continuidade legaram. Pudemos verificar que “a social-democracia brasileira nasceu às vésperas da República. A imigração estrangeira e a Abolição contribuíram para suscitar o seu aparecimento, porque ambas abriram caminho à industrialização” [5]. Já em 1891, “o pintor Teles Júnior, (...) surpreendia a Constituinte de Pernambuco. Apresentava o primeiro projeto de lei de 8 horas, no Brasil” . Surgiram as primeiras tentativas de organização de partidos operários, ainda disperso e numericamente pequeno e ganhava algum peso político, inclusive na vida política nacional. Destacamos três momentos abaixo.

O primeiro partido foi fundado em 1890, no Rio de Janeiro. Participaram 120 operários, presididos pelo tipógrafo Luiz França e Silva. Seu primeiro jornal Echo Popular afirmava: “Nunca, em tempo algum, a humanidade realizou quaisquer reformas, quaisquer melhoramentos, quaisquer benefícios, que não fosse pela ação combinada, pela ação disciplinada de todos aqueles que tinham interesses ou necessidade de conquistas essas reformas, esses melhoramentos ou esses benefícios.”

A segunda tentativa ocorreu em 1892, novamente no Rio, buscando formar um partido nacional. O congresso do Partido Operário do Brasil durou mais de um mês e participaram cerca de 400 trabalhadores e intelectuais, passando a editar o jornal O Socialista. Reproduzimos aqui um trecho do seu relatório ao III Congresso da II Internacional de 1893: “Considerando que a socialização da produção concentra todas as rendas, no estado atual de gestão da propriedade, nas mãos da classe capitalista, enquanto a classe operária é submetida a uma exploração física e moral cada vez mais acentuada; e que, nas condições económicas da sociedade atual, a classe operária não poderá jamais se libertar da tutela do capital a não ser que ela se apodere dos meios de produção, isto é, das máquinas, ferramentas, matérias-primas” [6]. Afirma Fausto que “o programa aprovado foi lido na Câmara dos Deputados pelo Deputado Lauro Muller, que defendeu a instituição das oito horas diárias de trabalho” . Propunham também um programa de reivindicações democráticas, tais como o direito de organização e a jornada de oito horas etc. Foram um dos primeiros que entraram em contato com a Internacional para os preparativos do congresso, no qual uma de suas sessões foi presidida por Engels.

Estas organizações tiveram curta duração, já que não consolidaram uma experiência efetiva no movimento operário: “O núcleo de França e Silva se declarava contrário às greves, defendendo a necessidade de conceder direitos aos trabalhadores através de negociações” [7]. Esse partido desapareceu após as eleições do mesmo ano, obtendo a ínfima votação de 804 votos e oscilava entre os limites de um “trabalhismo” patronal e a social-democracia. Sofreram estes partidos, além das dificuldades de se organizar e da tendência polar ou a se incorporar ao regime ou perecer em pequenos círculos intelectuais, um duro golpe em 1893, com a eclosão da Revolta Armada do Rio de Janeiro e com a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, com a intensificação da repressão do Estado. Os socialistas organizaram somente em 1902 outra tentativa de organização, dez anos depois. Antes disso tentaram entre 1894-5 seguir as resoluções da II Internacional com a comemoração do 1º de maio, a primeira reprimida com a prisão de nove dirigentes e a segunda realizada pelo círculo de Silvério Fontes, o Círculo Socialista, fundado em dezembro de 1899 em Santos, um importante centro republicano e abolicionista [8]: em 1895 “a cidade proletária” manifestou-se nas comemorações do primeiro de maio, no interior das uniões, ligas e sedes operárias.

Em São Paulo, 1896, será fundado o Partido Democrata Socialista, que contará com a maior base operária e longevidade das organizações socialistas, tendo editado o jornal O Socialista durante dois anos. Outra organização do Rio Grande do Sul foi o círculo do jornal Echo Operário, que circulou entre 1896-1899. Durante esses anos, ocorreu uma forte crise económica que reavivou a atividade operária e gerou uma onda de greves nacionalmente, tanto que em 1900 foi fundado com esse impulso o jornal Avanti!, “principal veículo de organização e de propaganda das idéias socialistas nesta segunda fase da história da social-democracia no Brasil, inaugurada com o século XX [9]” . Neste mesmo ano, o círculo de Silvério Fontes, na cidade de Santos, promoveu uma fusão com a União Operária, sociedade mutualista fundada em 1890 por um mestre da construção civil [10].

Neste período, dois documentos elaborados por núcleos socialistas, o primeiro de 1893 e o segundo de 1896 [11], aos Congressos da II Internacional, revelam o importante caráter internacionalista desses primeiros círculos e também os seus limites:

“Esse tipo de aproximação com o movimento internacional confirma-se numa correspondência firmada entre Engels e Kautsky, em janeiro de 1893. Kautsky recebera um artigo sobre o Partido Operário do Brasil e seu programa.” Engels, no entanto, afirmará: “Passei a Ede (Eduard Bernstein) o periódico brasileiro, porém lhe disse que a importância destes partidos sul-americanos está sempre em relação inversa com o alarde de seus programas” [12].

Crises e encruzilhadas

Em 1902, a nova tentativa de reagrupamento foi realizada com a fundação do Partido Socialista Brasileiro e reunia militantes antigos como Fontes, os editores do Avanti!, entre outros, com exceção dos socialistas do Rio de Janeiro. Esta foi uma importante debilidade, já que era a maior cidade brasileira, capital da República e o maior centro industrial até a I Guerra Mundial. O PSB não deixou de ser uma federação de organizações locais, sem alcançar caráter nacional, mas encabeçou a primeira manifestação pública do 1º. de maio no ano de sua fundação. No ano seguinte, uma nova onda de greves tomaria conta do país. Sem precedentes até então, surgiriam os primeiros sindicatos, mas os anarquistas tomariam a dianteira nesse processo, sob uma nova chave.

As insuficiências da social-democracia no Brasil estiveram ligadas, como buscamos demonstrar, a inúmeros determinantes. O deslocamento do centro económico para São Paulo e com isso a substituição de parte da mão de obra por uma massa de imigrantes (em torno de 50% da força de trabalho) vindos em sua maioria de países onde o anarquismo era hegemónico, os limites internacionalmente postos pelo marxismo da II Internacional; forneceram, contudo, os primeiros esquemas interpretativos baseados no marxismo que não foram enriquecidos criticamente e perderam continuidade, principalmente quando entrou em ascensão o anarquismo.

Especialmente sobre a imigração estrangeira Fausto a considerará de forma particular, pois “incidiu contraditoriamente no comportamento operário em geral e nas concepções ideológicas dos setores organizados da classe” , demonstrando que esta era uma determinação estrutural do capitalismo brasileiro em formação aliada a abundante oferta de trabalho que de certa maneira “reduzia o alcance das lutas operárias” e era mecanismo de diminuição permanente dos salários. Ademais, frente a um regime oligárquico, o anarquismo encontrou terreno fértil para concentrar pequenos núcleos de vanguarda frente à influência do doutrinarismo burguês sobre parte das organizações socialistas. No próximo artigo, conheceremos as distintas experiências anarquistas, particularmente os movimentos e congressos operários de importante relevância antes de 1917 para compreender o desenvolvimento prático desta corrente durante mais de uma década de luta de classes.

[1FAUSTO, B. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). Difel, 1976, p. 13. A evolução da exportação cafeeira: de 1889 a 1896 cresce de 2.041.5003 sacas por ano para 4.960.067 e em 1901 para 9.613.080, Conf. GITAHY, M. L. Ventos do Mar. Trabalhadores do Porto, movimento operário e cultura urbana em Santos, 1889 ’ 1914. Unesp, 1992, p. 30

[2Ver livro de Edgar Carone Movimento Operário no Brasil (1887 ’ 1944). Difel, 1979 como referência para o estudo do tema a partir dos documentos históricos.

[3HARDMAN, História da industria e do trabalho no Brasil. Das origens aos anos 20. Ã tica, 1991, p. 189

[4FAUSTO “Conflito Social na República Oligárquica: a greve de 1917” . Simpósio, México, 1974

[5BANDEIRA, M. O ano vermelho. A revolução russa e seus reflexos no Brasil. Expressão Popular, 2004, p. 20

[6Relatório da Comissão Executiva do Partido Operário do Brasil apresentado ao Congresso Socialista Internacional de Zurique, 1893.

[7FAUSTO, idem, p. 44

[8“A social-democracia brasileira, que teve em Silvério Fontes o seu mais completo líder, mereceu uma citação no livro Lê Socialisme et le Congrès, de Londres, editado em 1897 para divulgar o Congresso Socialista Internacional: ”˜No Brasil, o socialismo encontra-se em estado embrionário. Cresce mais nas províncias do Sul, São Paulo e Rio Grande do Sul, graças à imigração italiana e alemã. Em Santos, existe a União Operária, um partido operário, social-democrata. Os homens mais em vista da social-democracia brasileira são os senhores Silvério Fontes, Sóter de Araújo, Carlos Escobar, Esperidião de Médicis, Mariano Garcia, Cirilo Costa, Benedito Ramos” , BANDEIRA, M. idem,p. 25

[9O jornal era dirigido por Alcebíades Bertolotti, António Piccarolo e Vicente Vacirca. Conf. HARDMAN, idem, p. 193

[10Cf. GITAHY, idem, p. 60

[11Editado pela Associação Geral dos Operários de São Paulo, Allgemeiner Arbeiterverein, por Peter Konen. Eram muitas as confusões e lacunas presentes nos documentos. Buscavam, contudo, atingir visão de classe da formação do capitalista: aparecem nos textos definições como “eliminar completamente todos os elementos autoritários da sociedade atual, para evitar a sorte da revolução de 1789, de onde saiu a burguesia que hoje nos oprime” - do documento de 1893 -, ou, no caso do documento de 1896, de que “O país inteiro sugere o espetáculo do inacabado; ele apresenta enorme contrastes: de um lado, restos de barbárie, de outro, aspectos muito modernos.”

[12HARDMAN, idem, p. 181-2

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