Sexta 26 de Abril de 2024

Teoria

CARTAS CONTRA A MEDICINA DO CAPITAL – CARTA N.1

Medicina, medicamentos e médicos: a serviço da vida ou da morte?

15 Jul 2011   |   comentários

Digamos que você busca determinado medicamento para curar determinado mal-estar ou doença; digamos que seu médico receita determinada medicação para a cura de uma doença por ele diagnosticada em você. Digamos que os dois, médico e paciente, estejam convencidos de que medicamentos são fabricados para curar doenças.

A questão é: será verdadeira essa percepção? Até onde esta percepção pertence ao mundo das aparências nos marcos da sociedade capitalista?

Na verdade e no final de contas estamos muito mais diante de aparência e ilusão do que realidade. Estamos alimentando um fetiche: dentro dos limites daquela percepção, os dois – o médico e o chamado enfermo - estão equivocados, infelizmente profundamente equivocados.

Na verdade, tanto os medicamentos quanto os equipamentos de tratamento e diagnóstico médico são fabricados a partir de uma solene indiferença com relação à vida ou aos seus efeitos sociais e humanos.

Para entender esse aparente paradoxo basta que se tente refletir sobre as seguintes questões: qual é o objetivo principal, a motivação central para a produção de um determinado comprimido ou equipamento pela indústria médica capitalista? Será que a produção capitalista tem como objetivo ou pode ter como objetivo produzir para a vida, para a saúde? A produção de equipamentos, técnicas e medicamentos, acima de qualquer outra consideração – inclusive a médico-sanitária – deixa de ser, em algum momento, a produção de mercadorias?

Ou, de outro ângulo, o fato de que determinada mercadoria, ao final, ao ser consumida, revele propriedades medicamentosas, curativas, não será uma mera coincidência post factum? Ou, se atravessarmos o mundo da percepção imediata: seu papel como medicamento não será um valor de uso que a mercadoria precisa apresentar ou até aparentar para alcançar seu objetivo central e sua razão de ser produzida, que vem a ser a de funcionar como valor de troca?

A verdade é que sim. Aquele medicamento – todo medicamento, nos marcos da produção de mercadorias, do capitalismo – somente foi produzido porque prometia dar lucro. Porque, desde o início, desde o planejamento em seu momento zero e a cada passo da sua produção, prometia aumentar a acumulação do capital. Se não fosse para dar lucro o “produto” médico não seria planejado e nem fabricado. No capitalismo não se trata, portanto, de produzir um medicamento, mas uma mercadoria que dê lucro, um medicamento que ao ser vendido garanta um retorno maior do que o investido.

Essa é a essência da produção de medicamentos e equipamentos médico-hospitalares no capitalismo.

E é por essa simples razão – e por essa profunda determinação – que tais produtos produzem amplamente e regularmente danos, iatrogenias, efeitos colaterais pavorosos e também produzem a morte. Porque antes de serem feitos para curar são fabricados para dar lucro. Dito de outra forma: aquela indiferença acima mencionada em relação à vida termina se voltando contra a vida.

E é por isso que médicos bem intencionados – mas bastante ortodoxos, dependentes da indústria farmacêutica ao extremo de não conseguirem raciocinar por conta própria – e pacientes idem, médico-dependentes, terminam tendo a sensação de estarem subjugados por um poder estranho a eles, mais forte que eles. Porque no fundo o objetivo de produção daquele medicamento ou material do qual eles lançaram mão visando efeitos médicos não foi produzido por motivação fundamentalmente médica.

E esta é a razão também pela qual a engrenagem médica, no capitalismo decadente, do capitalismo dos oligopólios de remédios e equipamentos de diagnóstico, por exemplo, torna-se mera máquina ou instituição de disciplinamento e sujeição das massas trabalhadoras ao Estado burguês. Em outras palavras, assim como a religião, assim como a instituição escolar e especialmente a policial, a estrutura médico-hospitalar pretende que os médicos e os pacientes sejam meros reprodutores da ordem capitalista. Para tal, é crucial que os pacientes sejam passivos e acríticos e que os médicos sejam meros reprodutores das prescrições da indústria médico/hospitalar. Ou seja, que ambos funcionem como peças de uma engrenagem azeitada para garantir os lucros do mercado.

Enfermos passivos, corpos domesticados e dóceis, sem pensamentos críticos ou ácidos em relação ao mandarinato médico; e uma medicina que seja prolongamento e parte do discurso do poder capitalista (como demonstrou Foucault). Estes são os marcos da medicina moderna. Estes foram os marcos da medicina e da saúde pública ao longo das três recentes décadas nas quais a ofensiva do capital contra o mundo do trabalho foi total, nas quais o mundo burguês e liberal parecia o único futuro da humanidade (ao mesmo tempo em que mergulhava a massa trabalhadora e o planeta nos marcos da barbárie e devastação a toda linha; justamente este será tema de uma próxima carta: a medicina na era da restauração burguesa).

O resultado atual é o fetiche da onipotência médica, da ingênua confiança na moderna tecnologia médica, da “medicina de rico”, da corpolatria, das falsas discussões sobre “aumento da expectativa de vida” passo a passo com a mais ampla miséria sanitária das massas trabalhadoras sem acesso à mínima atenção médica elementar quanto mais de qualidade.

O resultado endêmico desse processo é o desprezo da indústria médico-farmaceutica capitalista por toda forma de tratamento que não possa ser patenteada, que não possa ser embalada como produto lucrativo (hidroterapia, alimentos funcionais, por exemplo); é a absoluta carência do foco na prevenção e nos hábitos de risco ou contra a poluição dos alimentos, ares e águas; o resultado são os hospitais transmitindo doenças hospitalares e infecções de difícil cura ou até letais para quem ali foi se curar de outra doença; o resultado são os médicos não questionando se determinados exames potencialmente perigosos e destrutivos são justificáveis para o paciente ou não; o resultado são “tratamentos” que destroem as próprias defesas e imunidade do organismo já enfermo (as químios, os tratamentos radiativos); o resultado são tratamentos que liquidam com a capacidade natural de defesa do organismo a exemplo dos corticóides que inibem a produção dos esteróides naturais do nosso corpo, atrofiando nossas defesas; o resultado é a ênfase absoluta no “tratamento” (reducionista: reduzem o corpo a um órgão por exemplo) e a miséria do conhecimento preventivo por parte da engrenagem médica; o resultado é também a miséria das pesquisas médicas, em grande parte mal orientadas, pretendendo obter produtos para o mercado de saúde não para a saúde pública; o resultado é a decadência da formação médica (com o médico moderno atrofiando sua capacidade de diagnosticar, de sentir clinicamente o paciente como um ser humano singular e, ao mesmo tempo, médicos totalmente dependentes de exames modernos, caros e frequentemente inúteis, brutalmente invasivos e com grande margem de erro ); o resultado é a compulsão médica por receitar medicamentos caros, de uso continuado, exames caros; o resultado, por exemplo, são coisas como o boom ou epidemia de depressão – dentre outras doenças modernas – para a qual os médicos receitam poderosos medicamentos de ponta o que “coincide” com a colossal pressão da industria farmacêutica capitalista para vender mais anti-depressivos, mais medicamentos que valorizem seu capital.

O resultado é a prática da medicina oficial (e também a extra-oficial) transformada em um grande negócio. O chamado enfermo entra com o corpo e com a demanda de produtos e serviços lucrativos. O outro lado do balcão entra com os ganhos, os lucros e com sua função de reprodutores do poder do capital.

Ou como já escreveu um médico britânico, em 1975, o dr. Coleman: “Na realidade, os médicos não podem se definir como pertencentes a uma profissão; atualmente são pouco mais do que um braço comercial da indústria farmacêutica”. E, na prática fetichizada da super-especialização, são profissionais mais preocupados com um genérico do estômago ou com um genérico da próstata do que com o paciente singular que está na sua frente e que jamais poderia ser reduzido a um órgão, a uma doença ou a genérico de nada.

Gilson Dantas, Salvador, 9/7/11

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