Quinta 25 de Abril de 2024

Ditadura Militar

RELATÓRIO CNV

A grande mentira da Comissão da Verdade

12 Dec 2014   |   comentários

Com lágrimas de crocodilo e cinicamente, a presidente Dilma declarou que “reverenciava o pacto político que nos levou à redemocratização”.

Depois de um longo trabalho investigativo e de coleta de dados, a chamada Comissão da Verdade (CNV), dirigida por um colegiado de seis membros instituído pelo governo Dilma, entregou, dias atrás, em sessão solene, o relatório final, de mais de 4 mil páginas.

Altas autoridades do governo e mais a direção da Comissão Nacional da Verdade celebraram a entrega do relatório em sua condição de grande evento de conciliação nacional. Leia-se: uma celebração da conciliação entre os torturadores e mandantes de Estado e os torturados e vítimas da ditadura que mandou no país por 21 anos.

Com lágrimas de crocodilo e cinicamente, a presidente Dilma declarou que “reverenciava o pacto político que nos levou à redemocratização”. Por sua vez, o coordenador da Comissão, com ares de quem vive no mundo das nuvens, afirmou ter a convicção de que as violências cometidas no período da ditadura não voltarão a ocorrer, “não se repetirão nunca mais”.

São autoridades adaptadas aos gabinetes tranquilos, climatizados e que só tomam conhecimento das atrocidades de um aparato repressivo de Estado de forma indireta, literária e midiática; não querem tomar conhecimento do aparato todo-poderoso e ainda mais sofisticado e violento que o de décadas atrás, abertamente focado no massacre ao povo pobre, negro e precarizado das favelas e periferias das grandes cidades, nos Amarildos e Cláudias.

Aliás, o golpe civil-militar de 1964, que rasgou a Constituição então vigente, que derrubou o governo e implantou a tortura como política de Estado, foi desfechado precisamente contra a classe trabalhadora que, naquele momento, se sublevava e convergia para uma aliança com camponeses e soldados revoltados, enfrentando o regime e o poder burguês.

Um dos membros da Comissão (Rosa Cardoso) sinalizou, em entrevista, que “os trabalhadores foram o alvo primordial do golpe de 1964 e que havia uma ditadura fabril dentro da ditadura”; também foi ela quem denunciou duas dezenas de empresas onde a patronal entregava trabalhadores para os porões da ditadura e citou o exemplo da Petrobrás que “foi totalmente militarizada” durante a ditadura, realizando quase mil demissões e investigando quase dois mil funcionários.

Nada disso evidentemente ganhou destaque nas “recomendações” finais da Comissão (CNV). Ela que sequer propôs a revogação da malfadada Lei da Anistia, ou seja, do pacto nas alturas que garantiu a impunidade dos generais-ditadores e de todos os agentes de repressão citados no próprio relatório. Na verdade, esse relatório, assim como o choro de Dilma, lavou a cara dos assassinos da ditadura militar.

Livrou a cara das forças de repressão que hoje continuam executando o mesmo modelo dos militares, de crimes de lesa humanidade contra o povo pobre aqui e no Haiti, onde o governo age com tropas de ocupação pró-USA. Os investigadores honestos e defensores dos direitos humanos que se dedicaram a produzir aquele relatório da Comissão terminaram ativa ou passivamente sendo cúmplices de uma reciclagem daquele acordo que anistiou o inanistiável, os crimes de tortura em defesa do Estado burguês.

É absolutamente contraditório concluir que a repressão lesa humanidade era “política de Estado e de conhecimento de toda a linha de comando do governo”, e em seguida avalizar a lei de Anistia que legitimou aquilo tudo. O coordenador da Comissão, Dallari, sintetizou tudo isso ao lamentar que é “frustrante” que as Forças Armadas que foram protagonistas da violação sistemática de direitos elementares não reconheçam sequer que violaram, mataram, torturaram, estupraram. Seu lamento chega a ser patético, impotente, diplomático, já que a própria Comissão preservou a Lei da Anistia.

Nosso problema não é apenas “conhecer a história” ou “lembrar os desaparecidos”. Isso também é essencial. Mas a grande verdade que a Comissão não quer tomar conhecimento oficial é que o passado não passou. E esta verdade tem que ter um valor prático: desmantelar o atual aparato repressivo defensor da patronal e exterminador de pobres e de todo aquele que protestar contra a exploração do trabalho, de gênero, de raça ou contra violação de direitos humanos básicos.

O que a Comissão (CNV) demonstrou com seu gesto teatral, midiático, foi que essa tarefa não pode ser feita pelos representantes das elites que mandam no Estado; é tarefa para o ativismo social aliando-se com a classe trabalhadora em organismos de base e de combate.

Quem viu a entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, declarando abertamente que a anistia aos torturadores é definitiva, que não se rasga a Constituição, que o passado é intocável, que nenhuma lei internacional está acima do STF ou de que temos que perdoar (também) os agentes e mandantes da tortura, sabe que a cúpula do regime pensa da mesma forma que os golpistas de 1964. É o mesmo pensamento de classe.

Primeiro eles mesmos rasgam a Constituição, em 1964, depois exigem que se respeite a Constituição escrita por eles, pelos vencedores. Quem ouviu o militar da reserva, J. Bolsonaro, estuprador confesso, declarar que defender direitos humanos é defender “a vagabundagem”; quem viu as declarações do Clube Militar de que a Comissão (CNV) é feita de “socialistas para proteger terroristas e esquerdistas”, deve por as barbas de molho e entender, de uma vez por todas, que os golpistas estão aí, as forças de repressão e tortura estão no poder, os mandantes da ditadura são os mandantes da ordem política nacional. E Dilma é cúmplice de tudo isso.

Em junho, aqui em Brasília, houve uma marcha, nas dependências do Setor Militar Urbano, onde vivem altos mandos militares, e que saiu às ruas se autoproclamando Marcha da Família com Deus pela Liberdade, pedindo a volta dos militares ao poder e tudo mais. É um problema muito mais de classe do que de meia dúzia de “viúvas da ditadura”. É um problema que não se resolve com a recomendação da Comissão (CNV) de que é preciso “ensinar a polícia a respeitar os direitos humanos”. Ou de separar memória de justiça, como se fossem etapas congeladas e onde já se vão quase meio século de “memorialismo” e impunidade.

A tortura contra trabalhadores, ativistas sociais e democratas não era prática isolada de agentes de Estado tresloucados, era política de Estado, como a própria Comissão reconheceu oficialmente. O problema é que não adianta reconhecer isso no papel, em reunião com a presidente Dilma dentro do palácio, e depois preservar a Lei de Anistia e, finalmente, não denunciar as forças repressivas atuais, forjadas na cultura de esmagar todo e qualquer movimento de massa e perseguir o ativismo social. E vale repetir: o mesmo governo que fala em nome “da verdade” é o governo que precisa dos Bolsonaro, se apoia no seu partido político (PP), que é o do Maluf, para governar. Aqui a mensagem é clara: comissões organizadas pelo governo não vão a lugar algum a não ser à conciliação de classe, a acordos com a repressão golpista, à memória pela memória, ao pacto da impunidade, à diplomacia em relação à truculência policial cotidiana contra pobres e negros e à mentira.

A verdade e a justiça só podem ser uma conquista do ativismo social, liderado pela classe que vive do trabalho e seus órgãos de base, a classe que sofre cotidianamente a exploração no trabalho e as algemas da ditadura implacável e perversa do chão de fábrica. Só haverá saída de verdade a partir do momento em que essa classe assuma a consciência de combate e portanto de que seus direitos mais elementares, sociais e humanos, seus e dos seus filhos, são violados todos os dias, no trabalho, nas ruas e no direito à vida plena.

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