Um programa dos trabalhadores para enfrentar a crise da água
13 Nov 2014
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Por: Gilson Dantas
Na história da Sabesp, os dois últimos anos foram aqueles nos quais ela obteve seus maiores lucros líquidos em todos os tempos. De que forma? Já sabemos: superexplorando até o limite o sistema Cantareira (sua água é muito mais rentável já que demanda oito vezes menos produtos químicos do que outras mais poluídas como a do sistema Guarapiranga, para dar um exemplo). Justamente os dois últimos anos foram o momento de tomar providências diante da mega-crise que se avizinhava. A sede de lucro falou mais alto.
Como quarta maior companhia de saneamento básico do mundo, a cada ano a Sabesp remete um lucro líquido para seus acionistas no total de meio bilhão de reais. Foi assim em 2012 e 2013. Tudo isso poderia ter sido aplicado na solução do problema da água em São Paulo. No entanto, as obras de expansão do sistema de abastecimento jamais saem do papel e a manutenção da rede de encanação está como está. É uma empresa que vem perdendo seus engenheiros sanitaristas de 1990 para cá, sendo trocados por economistas e advogados. Na perspectiva do lucro, estes devem ser mais importantes do que aqueles.
Como imaginar, depois de tudo isso, que sem a reestatização e democratização das decisões da Sabesp (a partir dos que realmente garantem seu funcionamento) vai-se chegar a qualquer solução estratégica e não casuística para a crise?
Uma burguesia “ecocida”
Daí decorre seu comportamento ecocida: mataram o rio Anhangabaú, o pinheiros, o Tamanduateí. Depois foram buscar água no Guarapiranga e degradaram esta represa e também a Billings. Depois, mais longe, foram para cima do sistema Cantareira; agora querem ir buscar no rio Ribeira do Iguape ainda mais longe, ao sul. Obras cada vez mais longe porque foram poluindo as águas de perto. Isso é tudo menos estratégico. E veio a culminar, agora, com a mais grave agressão histórica ao sistema Cantareira.
Segundo o prof. I. Hespanhol, no Estadão de 1/11//14, dois mil anos depois eis que estamos fazendo igual aos romanos, isto é, estamos poluindo os rios mais próximos e indo buscar água cada vez mais longe, o que significa um paradigma insustentável.
Em outras palavras, aquela medida ambiental só pode ser imposta contra a vontade política e de lucro da classe dominante. E aqui não há a menor chance de qualquer movimento ambientalista conseguir esse objetivo se não contar com a classe trabalhadora como sujeito. A burguesia não tem vontade política. Nem pode ter.
Para dar um exemplo: a Lei de Proteção de Mananciais foi criada na década de 1970, mas jamais foi aplicada de fato. A bacia do Alto Tietê, bem chuvosa, teve seus mananciais degradados progressivamente. O mesmo com as bacias do Guarapiranga e Billings, onde os resultados de aplicação daquela lei foram inexpressivos, mexendo aqui e ali com algumas favelas e pouco mais que isso. E justamente na bacia do Alto Tietê os problemas de água são os mais graves do estado.
Uma abordagem mais profunda deveria considerar crime de lesa-humanidade desses políticos burgueses a transformação consciente de rios como o Tietê e o Pinheiros em rios mortos, definidos assim, inclusive por lei (Resolução Conamam 357), e como de uso preferencial para diluição de esgotos e efluentes. Não é apenas uma política ecocida, mas concebida por tecnocratas que beiram a sociopatia: como entra na cabeça de um ser humano que os rios que cortam São Paulo devam ser rios mortos, esgotos e depósitos de poluentes a céu aberto? E a represa Billings, o mais colossal manancial de águas dentro de São Paulo? Como essa tecnocracia burguesa pôde ser gestora da degradação da Billings ao invés de fazer dela um segundo Cantareira? Sua lógica é obviamente outra, oposta pela raiz ao interesse público.
Repressão contra os que protestam
Só que é muito pior que isso: a população está proibida de protestar! O governo que não cuida da água é o mesmo que cuida muito bem das forças de repressão e o mesmo que joga uma polícia bem aparelhada e bem paga, contra qualquer grupo popular que proteste contra essa insanidade pública das elites. Eles podem comprar água mineral até para tomar banho, mas e nós? E a classe trabalhadora? E quando vamos às ruas, como várias comunidades sem água estão indo, protestar? Eis que aqui aparece claramente o papel do Estado burguês: um bando de homens armados para defender os interesses da classe dominante, dos acionistas da Sabesp, por exemplo.
Nada mais clássico: a polícia está a postos para reprimir protestos populares contra a falta de água, mas não há equipes de manutenção para impedir o desperdício de 40% da água encanada e nem despoluir a Billings etc. Escasseiam medidas anticrise, mas abundam medidas antiprotesto popular.
Por uma saída dos trabalhadores para a crise da água
Por conta de tudo isso, desses graves problemas criados por sucessivos governos capitalistas, mas especialmente pelo grau de estresse que deixaram que golpeasse o sistema Cantareira e as demais bases do abastecimento de São Paulo e região, a combinação desses elementos mais a grande estiagem atual e as próximas, lançaram a classe trabalhadora em uma situação de calamidade. Cujos marcos não apontam para uma crise passageira, mesmo com a trégua das chuvas de verão.
E se o problema é claramente político, de sujeito político, podemos, desde as jornadas de junho de 2013 e do novo patamar das greves operárias deste ano, contar com novos elementos de subjetividade social para enfrentarmos a crise das águas e outras crises. A classe dominante irá, sem sombra de dúvida, descarregar sobre nossas costas e nosso bolso essa e outras crises. Esse é sempre seu plano B e plano A, disso podemos ter certeza.
Cabe aos trabalhadores se coordenarem e construírem a ferramenta política, o seu partido, seus organismos de base, que concentrem as lutas sociais e operárias para deter a barbárie em que esse sistema vem transformando a nossa vida cotidiana.
Sem pressão política, de rua, da classe trabalhadora, a casta política não vai tomar a medida-chave para encaminhar a solução histórica da crise: reestatizar a Sabesp, confiscada sem indenização, para que, sob controle dos trabalhadores, ela possa ser o verdadeiro epicentro de um comitê anticrise. Em aliança com os consumidores pobres, com os bairros, com as residências mais necessitadas. Não dá para discutir seriamente a questão por fora desses marcos. Afinal, por conta da privatização da Sabesp é que também se chegou a esse patamar de crise e a própria água virou commodity, artigo de luxo. Como alguém pode pensar que uma empresa, a Sabesp, que tem que gerar lucros para seus acionistas, pode se preocupar com o bem comum, com o abastecimento das comunidades pobres etc? Não pode. E por isso vai aumentar a conta de água, vai sugar mais recursos públicos, vai seguir engordando sua burocracia e seus altos salários. Só vai tomar providências (e a essa altura da crise, pífias, fisiológicas) se elas não comprometerem seus lucros.
Outra coisa que também dificulta estrategicamente a solução do problema das águas em São Paulo é a ampla e profunda poluição dos mananciais, de represas como a Billings, dos rios que passam por São Paulo e também das nascentes. Este não aproveitamento e degradação de várias Cantareiras que estão geograficamente mais próximas de São Paulo é um brutal obstáculo em termos de abastecimento. Todas estas águas, se limpas, estariam disponíveis com um custo bem menor de distribuição (são mais próximas que o sistema Cantareira). Para serem utilizadas como água potável, teriam que ser objeto de um plano emergencial de limpeza e a poluição industrial e de esgotos teria que ser barrada. Isso demoraria não uma geração, pois poderia ser executado já, imediatamente, com um programa de emergência igualmente massivo e maciço. Através da contratação de todo um exército de trabalhadores.
No entanto, resta o problema de quem vai ser o gestor e o executor de uma estratégia dessa natureza. A burguesia não pode fazê-lo pela simples razão de que essa sujeira ambiental é funcional para seus lucros. Ter uma cloaca na “porta da fábrica” para jogar seus resíduos e efluentes industriais de graça – não ter que trata-los – é cômodo e reduz custos. Só os trabalhadores, a partir de seus sindicatos e organizações de base, em aliança com a população usuária, pode garantir uma solução de fundo para a crise que está posta.
E se é certo que entre as nossas bandeiras estratégicas deve constar a reestatização da Sabesp sem indenização e sob controle dos trabalhadores (com abertura de seus livros contábeis) e a criação de um comitê anticrise fundado em representantes dos trabalhadores da região, das indústrias e de toda a bacia que abastece a região, também parece claro que sem a confluência da juventude operária e estudantil poucos passos poderão ser dados nesse sentido. É um passo essencial, crítico.
Para que os trabalhadores transformem seus sindicatos em ferramentas de luta, teremos que varrer a burocracia dos sindicatos, que em sua maioria estão hoje estatizados e/ou cooptados pelo governo (por isso não estão intervindo vigorosamente contra a crise de desabastecimento). Essa burocracia se alinha, no essencial, com a patronal e com os agentes de Estado que criaram essa calamidade. Se comportam como se a crise não fosse com eles.
Nenhuma família sem água
Há que levantar bandeiras que imediatamente permitam aquela confluência e, especialmente, a aliança entre os trabalhadores e povo pobre em defesa da água para todos, da deselitização e desmercantilização desse bem comum. É necessário exigir providências imediatas para que nenhuma família pobre passe qualquer privação de água:
- Formação de comitês de bairro, com a presença ativa e deliberativa da juventude trabalhadora para o confisco de garrafões de água dos supermercados;
- Imediato recrutamento de carros-pipa para os bairros pobres, subsidiados pelo governo e sob controle daqueles comitês bairriais;
- Interdição de toda piscina em clube rico, todo gasto supérfluo de água pelas classes ricas, e que caixas d´agua de clubes ricos sejam postas à disposição dos bairros pobres;
- Criação de forças-tarefa e contratação imediata de trabalhadores para levantar uma rede de poços artesianos nos bairros pobres;
- Contratação imediata pela Sabesp de milhares de trabalhadores para deter o desperdício de 40% da água das encanações; não aceitamos nenhum aumento da taxa de água;
- Rejeitar todo comitê ou fórum anticrise em que não sejam os representantes de base dos trabalhadores que tomem as decisões centrais e administrem as ações;
- Pelo fim da casta política em estatais como a Sabesp, nas secretarias de Estado etc. e pela defesa de que todos recebam salário igual ao de um professor; pelo confisco sob controle dos trabalhadores de toda empresa que polua nossas águas;
- Pela contratação imediata de trabalhadores para despoluir nossos mananciais, garantir o tratamento de todo esgoto urbano e pela proibição de casas nas margens das represas, pela regeneração de suas margens, neste caso, garantindo imediatamente moradia decente e gratuita para os pobres urbanos que foram tangidos para essas regiões de mananciais hídricos.
Estas são apenas algumas dentre outras demandas de luta imediata, que as massas trabalhadoras pobres podem e devem levantar. Em suma, um programa e uma estratégia dos trabalhadores para uma solução de fundo – imediata e estratégica – para, em aliança com a juventude e o povo pobre, darmos uma saída independente da burguesia ecocida para a crise da água.
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