Quinta 2 de Maio de 2024

Internacional

Oaxaca no marco da luta de classes na América Latina

Um salto de qualidade na auto-organização das massas

10 Oct 2006   |   comentários

Nos últimos anos, abriram-se na América Latina uma série de situações revolucionárias, com uma crescente participação de setores da classe trabalhadora, que colocaram o subcontinente na vanguarda da luta de classe mundial e do incipiente processo de recomposição da subjetividade do movimento operário. Em alguns desses processos se mostrou uma tendência das massas mobilizadas a buscarem constituir organismos de auto-organização, onde, frente à crise e deslegitimação dos regimes burgueses e o repúdio aos planos neoliberais, buscavam vias de coordenar as ações e resolver suas demandas.

Nas jornadas revolucionárias argentinas de 2001, as massas de todo o país responderam à crise económica que assolou o país como fruto de anos de política neoliberal ortodoxa com manifestações massivas dos setores populares e das classes médias, que se enfrentaram com as forças de repressão e derrubaram o presidente De la Rúa (e toda uma série de presidentes depois dele). Neste processo, surgiram em diferentes bairros e regiões as Assembléias Populares (ou "Assembléias de Vizinhos"), a forma que os setores que protagonizaram as jornadas encontraram de opor ao desacreditado regime argentino uma saída de "democracia popular". No entanto o principal setor social nesses organismos eram as classes médias, o que fazia com que estivesses separadas dos meios de produção, e, além disso, carentes de uma forma de coordenação entre as distintas assembléias, acabavam sendo impotentes para executar na prática suas próprias deliberações, com exceção daquelas que se restringiam a um nível estritamente local e que não superavam a mera amenização de algumas conseqüências da profunda crise económica e social, como a organização de refeitórios populares.

No ensaio revolucionário de 2003-2004 na Bolívia, que teve como consigna central a nacionalização dos hidrocarbonetos e levou à renúncia de Carlos Mesa (não muito tempo depois de este ter assumido o posto de Sánchez de Losada, também derrubado pela mobilização popular), a cidade de El Alto, que cerca a capital La Paz viveu uma verdadeira insurreição e passou a ser, na prática, controlada pelas Juntas de Vizinhos e pela Central Operária Regional de El Alto. O povo de El Alto, com muito peso dos Aymaras, controlava territorialmente a cidade e tinha o poder de impedir o abastecimento de La Paz de combustível e outros produtos. Num processo mais avançado e de caráter mais nacional do que o argentino, e que além disso tinha como eixo uma reivindicação que se chocava diretamente contra os interesses das multinacionais imperialistas no país, os trabalhadores e o povo de El Alto eram a vanguarda, que tomou a cidade e, ainda que organizados como "vizinhos" e não como classe, chegaram a controlar parte da distribuição de produtos essenciais para mover o país, impondo-se assim como força social.

Chegamos a Oaxaca, no sul do México, em 2006. Ainda que o surgimento da comuna e do poder da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca estejam limitados a uma região do país, representam um salto de qualidade com relação aos organismos paridos pelas situações revolucionárias descritas acima. Em primeiro lugar, em Oaxaca, os protagonistas são os trabalhadores da educação, assalariados que atuam organizados como classe. Estes trabalhadores, junto com as organizações de indígenas e camponeses, puseram de pé um organismo, a APPO, que apesar de não funcionar através dos métodos da democracia operária como eram os soviets na Rússia, e sim como uma frente única de tendências, representa algo mais próximo de uma espécie de organismo pré-soviético, de duplo poder, a partir do qual os trabalhadores definem cada passo da luta pela derrubada do governador Ulises Ruíz, garantem a ocupação Palácio do Governo e da Assembléia Legislativa, o controle das rádios da cidade que foram tomadas e postas a serviço da luta dos trabalhadores e do povo, o controle territorial e a auto-defesa, levados a cabo pelas milhares de barricadas espalhadas pela cidade.

Oaxaca é o exemplo vivo de como os trabalhadores vão forjando, no calor da luta de classes, organismos que são ao mesmo tempo ferramentas para conquistar suas demandas e um embrião de um poder operário e popular e antagónico ao poder da burguesia; que antes mesmo da tomada do poder já antecipam tarefas de organização da produção, da distribuição e da auto-defesa, ou seja, da organização da sociedade, de um novo Estado a ser construído sobre as ruínas do Estado burguês.

Como está retratado no artigo da página anterior, a comuna está repleta de contradições, não queremos de nenhuma forma transmitir uma visão idílica sobre ela. A combinação de uma reivindicação central que pode ser resolvida nos marcos do regime atual (ainda que não sem custos para as classes dominantes), dos limites da democracia direta na APPO e da brutal pressão que o governo exerce no sentido de "negociar ou reprimir", fazem com que a sombra de um desvio do processo pela via de uma traição das direções conciliadoras ronde permanentemente Oaxaca. Na prática isto só não se deu até agora porque a base radicalizada não o permitiu. Essa radicalização espontânea, que mesmo na ausência de uma direção e de um programa revolucionários tem resistido às tentativas de traição é um fato inédito na subjetividade das massas e pode estar antecipando fenómenos maiores. E, ainda que um desvio termine se concretizando, nada apagará o fato de que em 2006, no sul do México, os trabalhadores organizados como classe e aliados ao povo puseram de pé uma comuna, dirigida por um embrião de organismo de duplo poder. Esta experiência ficará marcada na história do proletariado do século XXI que começa a se levantar.

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