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Cultura

“Carne Osso” – Um retrato da carne mais barata do mercado

10 Dec 2014   |   comentários

O documentário Carne Osso retrata, na voz dos próprios trabalhadores e de especialistas, o nível absurdo de exploração que existe hoje nos frigoríficos brasileiros. Uma verdadeira máquina de moer gente.

Escravidão assalariada. Assim falava Marx do trabalho sob o capitalismo. Isso, no século XIX, quando os operários começavam a se organizar para arrancar seus primeiros direitos, quando as jornadas de trabalho se estendiam até doze, catorze horas, para homens, mulheres, crianças e velhos. Sem férias, décimo terceiro, aposentadoria, nenhum tipo de direito.

O mundo mudou muito desde então, esse tipo de barbaridade não acontece mais. É isso que querem nos fazer acreditar. Que o capitalismo mudou, já não é selvagem, bárbaro e brutal, que oferece condições aos trabalhadores de ter uma vida digna, de crescerem na carreira, de se superarem. Sim, é verdade que as lutas dos trabalhadores impuseram muitas conquistas, muitos direitos arrancados ao custo de vidas, de lutas imensas. Nada veio de graça, nem nunca virá, para os que carregam o peso do mundo sob seus ombros.

Só que se não veio de graça, também não permanece de graça. A corrida para aumentar os lucros é uma constante de cada patrão nesse mundo, e há apenas dois jeitos de um patrão aumentar seu lucro: aumentando a mais-valia relativa, ou seja, a produtividade do trabalho, com máquinas melhores, novas técnicas etc. ou aumentando a mais-valia absoluta, ou seja, comendo cada vez mais o couro do trabalhador, fazendo estalar cada vez mais o chicote no seu lombo, diminuído seu salário, aumentando seu ritmo de produção, tirando mais lucro do seu suor. A tecnologia avança, mas nunca no mesmo passo que a sede de lucro. E aí é que os patrões querem voltar aos “bons e velhos tempos” em que a exploração do trabalhador pode seguir desenfreada e sem limites. Querem arrancar cada conquista já obtida e impor o aumento da exploração.

No Brasil, que nas últimas décadas passou por um processo de desindustrialização, ou seja, de reprimarização da economia fazendo crescer a importância relativa das commodities, dos produtos agrícolas e pecuária, esse setor é um dos que mais quer competir no mercado global. E, para competir com os grandes, é necessário alguns sacrifícios a mais; dos trabalhadores, claro. Um exemplo de empresa bem sucedida nesse país é o gigante dos frigoríficos JBS Friboi, que no terceiro trimeste desse ano viu seu lucro crescer em cinco vezes, atingindo 1,1bilhão de reais. Como crescem tanto essas cifras? O documentário “Carne Osso” (2011), de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, mostra o “ingrediente secreto” de tanto sucesso: baratear a carne... dos trabalhadores. Doenças, assedio, superexploração até o limite do insuportável. Do trabalhador, deixam só o bagaço, que jogam fora, tirando dele cada centavo de lucro possível.

3700 frangos desossados por hora, 136 movimentos por minuto. Vemos a esteira correndo, as mãos ágeis trabalhando, atentas, cada décimo de segundo conta. No fundo, as vozes dos trabalhadores contam sua rotina sob a ditadura patronal: “Era 10 cubinhos, mas era por segundo. Era muita, muita carne; muita, muita, não sei como te explicar. Tinha que encher 365.000 buraquinhos.” Diz uma trabalhadora. Depois outra: “Se acertasse uma mosca no rosto não dava tempo de fazer assim com a mão.” E outro: “O ritmo é muito acelerado (...) tem épocas que eles firmam um contrato de exportação lá, tantas toneladas, eles têm que fazer. Aumenta a velocidade da linha e tem que andar.” E outra: “Você tem que cumprir o que eles colocarem na esteira. Eu acredito que era uns seis segundos para você desossar uma peça.” As vozes se seguem narrando unanimemente a brutalidade da rotina, as imposições selvagens dos patrões. Não se pode conversar, não se pode ir ao banheiro; quem atrasa, paga. Quem atrasa muito, perde o emprego. Tem que dar conta. É o capitalismo moderno: máquinas e produtividade do século XXI, ritmo de trabalho do século XIX.

Entrevistando auditores e fiscais, médicos do trabalho e especialistas, o filme apenas confirma com estatísticas o que os relatos sombrios dos trabalhadores afirmavam. O mercado frigorífico emprega 750 mil pessoas. Comparado com outros ramos de trabalho, os números de doenças são assustadores: seis vezes mais queimados; 743% de risco a mais de lesões no punho; duas vezes mais traumatismo de abdômen; três vezes mais traumatismo de cabeça; três vezes mais traumatismo de ombro e braço; 3,41 vezes mais transtornos mentais.

Mas, afinal, não existem leis que regulamentam o trabalho? Que impõem certos limites à exploração patronal? “Carne Osso” também entra um pouco nesse tema, e fica nítido que a lei tem lado – da burguesia, claro – quando Valter, auditor fiscal do trabalho, conta sobre as punições para empresas que desrespeitam as regulamentações: o valor máximo da multa é de seis, sete mil reais. Quem paga tem 50% de desconto, segundo a legislação brasileira. Fazendo uma rápida conta, Valter demonstra: “se você lavrar 50 autos de infração numa grande unidade dá 150 mil, isso não faz nem cócegas pra mudar o processo produtivo”. E conclui, dizendo que a auditoria depois só volta dali uns dois, três anos. Lembra do 1,1 bilhão de reais por trimestre da JBS? Então, pense nesses 150 mil a cada três anos como um pequeno “investimento” a se pagar. Quando os trabalhadores “estragam”, é só jogar fora e pegar outros. Se uma máquina estraga o patrão ainda tem que comprar outra; com o trabalhador, é mais fácil: nem tem que comprar, é só pagar o salário até ele não servir mais, e trocar gratuitamente depois.

O mais tocante em “Carne Osso” sem dúvida são os relatos dos próprios trabalhadores. Somadas às doenças quase certas, há a constante ameaça, como expressa muito bem um dos peões: “O pai de família que tá ali, ele depende do emprego. Então, por mais que ele reclame, ele fale com o pessoal de comissão de CIPA, de técnico, ele também tem o medo, ele tem receio. Porque ele fica cobrando, não vê a solução dele, ele começa a cobrar e começam a mudar ele de setor, de serviço, então ele tem o receio de ser mandado embora.”

Os transtornos mentais são todo um capítulo à parte, que tem também seu espaço no filme. Um trabalhador diz: “Eu sempre achava que a depressão era uma farsa da pessoa (...) mas aquilo vai, vai, vai que te leva. Queira ou não queira”; e outra, emocionada, lembra como se tornou insuportável estar dentro da fábrica: “Eu começava a chorar, eu não queria mais ficar lá dentro”.

Como as leis e os advogados, a medicina e os médicos também tomam seu lado nesse conflito, e a voz dos trabalhadores mais uma vez denuncia, dessa vez a cumplicidade era pra esconder as dores e as lesões causadas pelo trabalho. Um médico que atendia os trabalhadores ganhou um apelido: “Dr. Diclofenaco”, um anti-inflamatório, pois tudo o que ele fazia era passar uma receita de diclofenaco e mandar para casa. Tudo para garantir o interesse dos patrões.

Acuados pela justiça, a medicina, as regras, as máquinas, enfim, o mundo dos patrões, os trabalhadores de frigoríficos continuam como um dos setores mais brutalmente explorados, fazendo parte dessa hipócrita “locomotiva” que alimenta a economia nacional. Resta a nós transformar a revolta que gera assistir a dura verdade apresentada em “Carne Osso” em um alimento para não nos conformarmos com uma realidade assim. Para tomarmos como nossas as dores de nossos irmãos de classe.

Assista “Carne Osso” clicando aqui.

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