Quinta 18 de Abril de 2024

Cultura

Adeus, Sr. Spock

27 Feb 2015   |   comentários

Hoje se anunciou a triste notícia da morte do ator Leonard Nimoy, aos 83 anos de idade, por consequência de uma doença crônica no pulmão. Seu papel mais famoso foi o de Sr. Spock, da série Star Trek.

Hoje se anunciou a triste notícia da morte do ator Leonard Nimoy, aos 83 anos de idade, por consequência de uma doença crônica no pulmão. Nimoy era um artista bastante versátil e com uma rica produção, que incluía a literatura, a música, o teatro, o cinema e a fotografia. Mas, mesmo tendo desempenhado todas essas atividades, permaneceu durante cinco décadas, e permanecerá eternamente, vinculado à imagem do primeiro personagem que o tornou famoso: o Sr. Spock, personagem da série clássica de ficção científica para a televisão, Star Trek (Jornada nas Estrelas, no Brasil), que estrou em 1966 e, ironicamente, teve apenas três temporadas, apesar de seu sucesso ter gerado uma imensa “franquia” com diversas outras séries, filmes, animações, livros etc. que são produzidos até hoje.

A marca de Spock foi, para Nimoy, em diferentes épocas, tanto um estigma quanto um orgulho. Isso se expressa com grande relevo em seus dois livros autobiográficos: “Eu não sou Spock”, de 1977, e “Eu sou Spock”, de 1995. Faz todo o sentido: para alguém com o enorme talento de Nimoy, há algo de terrivelmente aprisionador em ser reconhecido década após década apenas por um papel. É uma verdadeira maldição que a indústria cultural legou a ele. Foi isso que o levou a nomear sua primeira auto-biografia, na qual, ainda que reconhecendo a imensa importância do papel de Spock tanto para sua carreira, como para sua vida pessoal, procurava se afirmar como um artista capaz de fazer mais do que interpretar o mesmo papel durante toda a vida. A reação de muitos dos fãs de Star Trek, que costumam carregar uma “ligeira” marca de fanatismo, não foi das melhores. Mas algumas décadas mais tarde, Nimoy resolveu “pedir desculpas” e, mais bem resolvido com o inelutável peso de ser o eterno Sr. Spock (já tendo uma brilhante carreira consolidada para além desse papel), intitulou seu segundo livro como “Eu sou Spock”.

Ao longo de sua vida e carreira, Nimoy participou de incontáveis encontros de fãs de Star Trek, os auto-intitulados "trekkers". Foram eles que, provavelmente, iniciaram a tradição, hoje já tão difundida, de fazer de um filme, livro ou programa de televisão uma espécie de “modo de vida”. Mas, afinal, o que há em Star Trek que mobilizou tão grandes paixões nos jovens dos anos 1960 e, ao longo de décadas, foi capaz de se perpetuar de alguma forma?

A série foi criada por Gene Roddenberry, e ao ser apresentada à emissora de televisão NBC em 1965, foi rejeitada. Seu episódio piloto ,“The Cage” (A jaula), trazia um enredo bastante incomum. A tripulação da nave Enterprise era presa por alienígenas, que sondavam seus desejos e manipulavam suas mentes, mantendo-os presos em jaulas, imersos nas ilusões que seus próprios desejos criavam por meio dos poderes de seus captores. A série finalmente foi produzida um ano depois pela CBS, mas havia condições: fora considerada “muito cabeça” e não ia decolar; eles queriam produzí-la, mas ela precisava ser mais “fácil de digerir”. Gene Roddenberry fez as mudanças exigidas, afinal, “quem paga a banda escolha a música”. O capitão da Enterprise, Cristopher Pike (interpretado por Jeffrey Hunter), foi trocado por James T. Kirk, interpretado pelo ator canastrão William Shatner, que tornaria Kirk conhecido, entre outras coisas, por ser um capitão “mulherengo”, com “jogo de cintura” para resolver as coisas por fora das “regras” e por seus golpes ridículos nas péssimas coreografias de luta da série. Mas de uma coisa Roddenberry fez questão de não abrir mão: o imediato – segundo homem em comando – da Enterprise, o alienígena da raça vulcana, Sr. Spock. Roddenberry o chamaria futuramente de “a consciência de Star Trek”, e tentaremos dizer um pouco o porquê disso.

A série era inovadora em muitos aspectos. À primeira vista era apenas uma ficção científica, retratando as viagens de cinco anos (o plano era que o programa tivesse cinco temporadas) da nave estelar Enterprise, cuja missão era, como diz a inesquecível abertura do programa, a de “explorar estranhos mundos novos, buscar novas vidas e novas civilizações, de ousadamente ir aonde nenhum homem havia ido antes.” Enfim, explorar o espaço, “a fronteira final”. E, sob esse pretexto, utilizando planetas distantes como alegorias, Star Trek tratava de questões inquietantes para a sociedade ocidental dos anos 1960. Alguns episódios eram mais “filosóficos”, outros mais “políticos” e, claro, outros mais ingênuos e sem grandes questões. Sob o enredo de uma nave no século XXIII, Star Trek falava das questões de seu tempo.

Era essa capacidade de Star Trek de discutir tais questões que fazia com que não importasse muito o fato de que era uma série de baixo orçamento, com “defeitos especiais” risíveis (já na época, que dirá cinquenta anos depois) e atores medíocres ou péssimos (o único que se salvava, sinceramente, era Nimoy, que mesmo assim ainda estava aquém de ser o grande ator que se tornaria com o tempo). É curioso como a produção procurava “driblar” seus problemas orçamentários com soluções improvisadas, que depois ironicamente se tornariam “clássicos” da série, como o caso do teletransporte, adotado como uma alternativa cenográfica viável para fugir dos custos proibitivos de colocar em cena uma nave aterrissando.

Alguns pontos, que hoje podem parecer secundários, na época eram bastante questionadores. Em plena guerra fria, com a mentalidade Macartista de caça aos comunistas ainda dominando os EUA, Roddenberry colocou na mesma ponte de comando da Enterpise um personagem americano (Kirk, o capitão da nave, claro) e um russo, Pavel Andreivitch Tchekov, oficial de navegação interpretado por Walter Koenig. Não apenas isso, mas Roddenberry colocou uma personagem mulher, negra e africana, a tenente Uhura (interpretada por Nichelle Nichols). Mas, claro, como não poderia ser perfeito, mesmo assim ainda pesava um sutil estigma de inferioridade, pois cabe a Uhura o trabalho “menos prestigiado” de oficial de comunicações (vulgarmente falando, a “telefonista” da nave).

Após a primeira temporada Nichelle Nichols queria deixar o elenco de Star Trek para se dedicar aos musicais. Contudo, ela foi convencida a mudar de ideia por ninguém menos que Martin Luther King, um fã da série. Em uma conversa, ele disse lhe disse: “Você é a nossa imagem de onde estamos indo, você está 300 anos no futuro, e isso significa que é aí que estamos e isso acontece agora. Continue fazendo o que está fazendo, você é a nossa inspiração”. Em seguida, Nichols diz que pretende deixar o programa, e King argumenta: “Você não entende, pela primeira vez nós somos vistos como devemos ser vistos. Você não tem um papel negro. Você tem um papel igual.” A atriz Whopi Goldberg, que interpretaria posteriormente o papel de Guinan na série de Star Trek dos anos 1990, “Deep Space Nine”, viu Uhura quando criança e teve uma impressão semelhante à de King, dizendo à família: “Eu acabei de ver uma mulher negra na televisão, e ela não era uma empregada doméstica!”.
A ideia de Roddenberry era exatamente essa: situando Star Trek três séculos no futuro, ele queria apresentar a seus contemporâneos o sonho de uma humanidade evoluída e harmônica, onde questões como o racismo ou a guerra entre nações (que não existem mais no universo de Star Trek) pertenceriam a um passado remoto. A Federação dos Planetas Unidos não tinha dinheiro, nem disputas entre si. Enviava naves como a Enterprise não para colonizar, mas para estabelecer contato, adquirir conhecimento, explorar, numa relação faternal entre as diferentes civilizações e raças.

Spock foi o personagem mais rico da série, pois tinha uma dimensão conflitiva. Seu aspecto físico era o de um “alienígena de baixo orçamento”, com um par de orelhas pontudas e uma cara ligeiramente esverdeada, além de sobrancelhas arqueadas e um corte de cabelo tigelinha. Mas a diferença marcante entre a raça vulcana e os humanos era seu comportamento sempre lógico e racional. Spock, contudo, era mais complexo: sua mãe era humana, seu pai Vulcano. Assim, ele era o personagem que expressava o conflito entre o racional e o passional; ainda que desejasse ardentemente ser racional e lógico (seria esse desejo lógico? Pode o desejo ser lógico?), às vezes “deixava escapar” suas emoções.

Ele se destacou fortemente entre as personagens da série, e teve momentos em que demonstrou em suas ações o que Gene Roddenberry queria transmitir com a “humanidade melhor” de Star Trek, como quando sacrificou sua própria vida para salvar a tripulação da nave, na clássica cena do segundo longa-metragem, "A Ira de Khan. “O interesse de muitos sobrepuja o interesse de poucos, ou de um”, diz ele ao seu capitão e amigo Kirk, ao morrer. Uma questão mais do que atual, em uma humanidade empurrada pelo capitalismo ao individualismo mais perverso.

Não foi apenas no papel de Spock que Nimoy contribuiu para fazer de Star Trek uma série que sonhava um futuro melhor. Ele também foi responsável pela direção de dois dos longas-metragens da série, o terceiro (À procura de Spock) – em que Spock está no centro da trama – e o quarto (A jornada para casa), no qual tem responsabilidade também pelo enredo. Nimoy não se contentou em repetir a mesma fórmula, e fez um filme muito diferente daquilo que consolidou o sucesso anterior da série. Não há vilão aqui, e Nimoy colocou no centro da trama uma questão que lhe preocupava: a destruição ambiental, representada ali pelas baleias em risco de extinção. Retornando ao século XX para resgatar uma baleia (sim, é uma ideia cretina, mas o filme é melhor do que isso), a tripulação da Enterprise se choca diversas vezes com os hábitos selvagens e primitivos dos habitantes do século XX. Mais uma vez, Star Trek encarna uma vertente crítica à nossa sociedade, mas desta vez trazendo um ingrediente novo: o humor.

Mas a série clássica de Star Trek também teve seus péssimos momentos. Ainda nos anos 1960, após as duas primeiras excelentes temporadas da série, ela decaiu vertiginosamente em todos os aspectos. De uma série questionadora, passou a exibir episódios que, por exemplo, celebravam o patriotismo americano no mais infeliz estilo anti-comunista (sim, eles dão um jeito de celebrar os Estados Unidos alguns séculos depois que ele já deixou de existir). Uma pena, mas o público não deixou barato, e a audiência decaiu rapidamente, fazendo com que a série fosse cancelada duas temporadas antes do previsto inicialmente, para a revolta dos "trekkers". Esse movimento, contudo, não foi ao acaso e foi calculado pela CBS, que mudou seu horário e reduziu seu orçamento, levando Gene Roddenberry a se desgastar e se afastar da produção. Talvez as questões que a série suscitava estivessem incomodando... Além disso, há o péssimo quinto filme da série, dirigido por William Shatner, que, não contente em ser um mau ator, quis ser um mau diretor. Um encontro com “deus” é o tema do filme, permeado de clichês.

Essa história, que é uma das mais célebres da história da televisão, e que marcou a vida de mais de uma geração, se confunde à história de vida de Leonard Nimoy. Nos deixa hoje o homem que foi Spock e que, com sua dedicação a esse personagem, ajudou a que muitos de nós sonhássemos a possibilidade de um mundo mais justo. Seu legado permanece vivo. A tristeza que hoje toma seus fãs não deve obscurecer o alegre fato de que ele teve, no fim das contas, uma vida longa e próspera.

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