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Cultura

Jyoti, a filha da Índia

06 Mar 2015   |   comentários

O documentário India's Daughter retrata a história do estupro e assassinato de Jyoti. Ele foi banido pelo governo indiano e tem sido criticado por ativistas de direitos humanos por dar voz aos assassinos de Jyoti.

“Uma garota pode fazer tudo.”

 Jyoti Nirbhaya

Dezembro de 2012, Nova Deli. A jovem Jyoti Nirbhaya, de 23 anos, voltava do cinema com um amigo a bordo de um ônibus. Ela comemorava o fim de suas provas na faculdade, onde estudava para ser fisioterapeuta. Depois desses exames, faltavam apenas seis meses de internato para que Jyoti se formasse e aliviasse a situação de pobreza crônica de sua família. Seus pais haviam vendido sua pequena propriedade para custear os estudos da filha. Ela havia pedido que utilizassem o dinheiro que guardaram para seu dote para que ela pudesse completar os estudos. Fizeram todos os sacrifícios possíveis para que Jyoti conseguisse levar seu sonho adiante; vizinhos, amigos, familiares ficaram chocados com a atitude da família: por que fazem tudo isso por uma mulher? A cultura patriarcal do país ditava que o costume seria mandar o filho estudar caso fosse homem; uma mulher deveria se preparar para o casamento. Eles ousaram descumprir essa tradição.

Nessa noite, contudo, o sonho de Jyoti e de sua família foi destruído brutalmente. Seis homens, incluindo o dono do ônibus onde viajavam, agrediram Jyoti e seu amigo Awindra, e a estupraram coletivamente; em seguida, arremessaram-nos para fora do ônibus e seguiram viagem. Quando Jyoti, treze dias depois, morreu no hospital em decorrência dos ferimentos sofridos, o país já havia se levantado aos milhares, com jovens e mulheres indo às ruas gritar contra a bestial cultura do estupro que faz com que casos como o de Jyoti sejam recorrentes e sistematicamente silenciados. Na Índia, uma mulher é estuprada a cada vinte minutos, de acordo com as estatísticas oficiais, que certamente são muito subestimadas se levarmos em consideração a enorme carga de vergonha que recai sobre as vítimas dessa violência.

Os protestos que ocorreram após o estupro e assassinato de Jyoti expressaram a liberação de uma fúria longamente contida pela violência contra as mulheres, sobre a qual recai uma pesada lei do silêncio, um tabu que obriga as mulheres a carregarem o fardo de sua opressão sobre seus próprios ombros. O tamanho e a força das manifestações foi tal, que, mesmo reprimidas violentamente pela polícia, não foram caladas, o que forçou o governo a ter que “mostrar serviço”, colocando de pé um comitê jurídico que ouviu 80.000 propostas de medidas para diminuir a violência contra as mulheres, implementando uma parte delas. De acordo com a declaração de uma das participantes nas manifestações, um ano após a morte de Jyoti, ela não viu “absolutamente nenhuma mudança na cultura do estupro e a brutalidade ligada a essa”, mas entendia como “uma mudança bem vinda que o tabu em torno da discussão sobre o estupro e a violência sexual tenha sido quebrado”.

A Filha da Índia

Recentemente, o caso de Jyoti voltou à tona devido ao lançamento do documentário “India’s daughter” (A filha da Índia), dirigido por Leslee Udwin e produzido pela emissora britânica BBC. A ideia era que o documentário fosse transmitido no dia 8 de março, dia internacional de luta das mulheres, simultaneamente na Índia, Dinamarca, Suécia, Suíça, Reino Unido e Noruega. Contudo, os planos mudaram depois que o governo da Índia conseguiu a proibição judicial da exibição do documentário no país. A BBC adiantou a transmissão no Reino Unido de “India’s daughter” para o dia 4 de março. Desde então, o documentário viralizou na internet, e já contava com milhares de visualizações no YouTube, até que a própria BBC reivindicou os direitos autorais e retirou ele do site.

O governo da Índia acusou o filme de trazer uma imagem negativa e distorcida do país. Paradoxalmente, o documentário de Udwin tem sido criticado igualmente por ativistas de direitos humanos por dar voz a um dos condenados pelo estupro de Jyoti, Mukesh Singh, que é um dos principais personagens do filme e fala livremente o que pensa.

Sim, as palavras de Mukesh são revoltantes, nos enchem de dor e tristeza. Ele, entre outras barbaridades, afirma que “uma mulher é muito mais responsável pelo estupro do que um homem”, e responsabiliza Jyoti por estar fora de casa, à noite, acompanhada por um homem que não era seu parente, marido ou sequer seu namorado. Diz ainda que, quando uma mulher é estuprada, ele deve ficar em silêncio e aceitar, e que Jyoti só foi agredida e arremessada para fora do ônibus porque reagiu. Assim, ela seria responsável tanto pelo seu estupro, quanto pelo seu assassinato.

Não é apenas Mukesh que ganha voz no documentário para “defender” o estupro. Os advogados de defesa dos criminosos também têm grande destaque. Um deles diz que “Uma mulher é como uma flor. Ela fornece uma performance de boa aparência, muito suave, agradável. Mas, por outro lado, o homem é como um espinho. Forte, duro o suficiente. Essa flor sempre precisa de proteção. Se você coloca essa flor em uma sarjeta, ela é estragada. Se você coloca essa flor em um templo, ela será adorada.” E, em um momento posterior, afirma que “eles abandonaram nossa cultura indiana. Eles estavam sob a imaginação da cultura dos filmes, na qual eles podem fazer qualquer coisa. (...) Ela não deveria ser colocada na rua como comida. A ‘dama’, por outro lado, você poderia dizer ‘garota’ ou ‘mulher’, são (sic) mais preciosas que uma jóia, que um diamante. Cabe a você decidir como você quer manter o diamante em suas mãos. Se você colocar o diamante na rua, certamente o cão irá apanhá-lo, você não pode impedir isso. (...) Você está falando de uma amizade entre homem e mulher. Me desculpe, isso não tem espaço na nossa sociedade. Uma mulher significa que eu imediatamente coloco o sexo em seus olhos. Nós temos a melhor cultura, em nossa cultura não há lugar para uma mulher.”

Essas declarações aterradoras fazem com que o filme seja uma afronta àqueles que lutam pelos direitos das mulheres, contra a cultura do estupro e o patriarcado? Com certeza não. Pelo contrário: ao demonstrar que não apenas o criminoso justifica abertamente seu crime, mas que também o faz seu advogado, um homem “culto” e que, diferente dos condenados, tem uma condição material de vida bastante farta, Udwin revela a verdadeira dimensão do problema. Não se trata de um caso de “sujeitos loucos”, párias da sociedade. Eles expressam para a câmera, sem nenhum pudor, o que a sociedade os ensinou a pensar, e como os ensinou a agir. Condená-los à morte, tal como ocorreu no julgamento (com exceção do menor que tomou parte no crime e que foi condenado a três anos de reclusão), não irá resolver um problema que é, de fato, uma herança cultural e social muitíssimo profunda, e que é mantida pelo Estado, pela polícia, pelo capitalismo. Por isso o governo indiano quis proibir a exibição de “India’s daughter”, e por isso cabe a nós reivindicar o filme como um autêntico e provocante documento da barbárie capitalista.

Seria um exagero, um disparate, uma bizarrice, dizer que a cultura do estupro na Índia (e no mundo) está relacionada ao capitalismo, já que ela o precede em pelo menos alguns séculos ou milênios? Outro grande trunfo do filme de Udwin é mostrar que não. Ao retratar a miséria a que está submetido o povo indiano, “India’s daughter” mostra que a cultura do estupro faz parte da barbárie capitalista. Ao mostrar que, para conseguir manter seus estudos, Jyoti era obrigada a trabalhar em um Call Center das oito da noite às quatro da manhã, dormindo quatro horas por noite, o filme deixa transparecer um aspecto fundamental da opressão patriarcal retrabalhada sob o capitalismo: a inferiorização social das mulheres serve para aumentar a exploração e o lucro. O crime de Jyoti foi lutar contra isso e acreditar que “uma garota é capaz de fazer tudo”. O filme dá voz aos agressores, mas também aos que amaram Jyoti. E fica como uma lição, tão simples quanto verdadeira, a declaração de sua mãe, que afirma, como numa resposta direta às declarações do agressor e do advogado: “sempre que há um crime a garota é culpada, ‘ela não deveria sair’, ‘ela não deveria andar tão tarde na rua ou usar tais roupas’. São os homens que deveriam ser acusados e interrogados sobre o porquê de fazerem isso. Eles não deveriam fazer isso”.

E, como mais uma herança para nós, Jyoti nos deixa a mensagem de que não se trata de lutar por “vingança” contra esse ou aquele criminoso. Seu amigo relata um episódio em que a jovem teve sua bolsa roubada por um garoto, e um policial o pega em flagrante e começa a espancá-lo. Jyoti o impede, e diz que isso não ensinaria nada a ele. Pergunta ao garoto porque havia feito aquilo, ao que ele responde que via as coisas que eles tinham e também queria ter elas; ele queria ter direito ao mínimo. Jyoti lhe dá o que ele pedia e pede que prometa não mais fazer aquilo. Parece um gesto pequeno e que, sem dúvida, não resolve o problema do garoto e dos milhões de garotos como ele. Mas nessa pequena ação de Jyoti subjaz uma mensagem fundamental para aqueles que desejam lhe fazer justiça: o problema não é meramente dos agressores a quem Udwin dá voz em seu filme; o problema é da sociedade patriarcal capitalista. Para fazer justiça a Jyoti, é essa que devemos derrubar, sustentando sua firme convicção: “uma garota pode fazer tudo”. E “India’s daughter” é um instrumento para essa luta.

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