Sexta 29 de Março de 2024

Luta de classes

Quando a barbárie se torna realidade (ou da necessidade de um mundo novo)

18 Dec 2014   |   comentários

Leitor, penso que assim como eu você muitas vezes sente um estranhamento, uma angústia, frente à realidade que vivemos, uma realidade que por vezes parece irreal por sua brutalidade, a barbárie mesmo que vivenciamos; casos como o dos estudantes mexicanos desaparecidos, o assassinato de jovens negros nos EUA, o espancamento de um casal homoafetivo no metrô de SP, são apenas os mais próximos e evidentes de situações com que convivemos no dia a dia. (...)

Leitor, penso que assim como eu você muitas vezes sente um estranhamento, uma angústia, frente à realidade que vivemos, uma realidade que por vezes parece irreal por sua brutalidade, a barbárie mesmo que vivenciamos; casos como o dos estudantes mexicanos desaparecidos, o assassinato de jovens negros nos EUA, o espancamento de um casal homoafetivo no metrô de SP, são apenas os mais próximos e evidentes casos com que convivemos no dia a dia. Sabemos que a todo momento jovens são mortos pela polícia e pelo tráfico nas periferias das grandes cidades ao redor do mundo, que a violência policial atinge a população negra, que querer amar pessoas do mesmo sexo ainda pode trazer perigo para os amantes, e ainda são vistos como representantes do povo estúpidos como Bolsonaros e Felicianos.

Uma pergunta se impõe frente a isso: como é possível que esse tipo de coisa ainda aconteça? Como com todo avanço tecnológico e do conhecimento produzido pelo ser humano nos últimos séculos e a capacidade que vem daí de superarmos os preconceitos e os mitos que lhes dão base, ainda é normal que pessoas sejam mortas pela cor de sua pele, pelo seu gênero, pela sua orientação sexual?

Uma angústia, um estranhamento, de se ver e viver num mundo irracional, onde preconceitos tão atrasados são o corriqueiro e o comum, onde defender que se possa amar livremente, ou que a cor em nada define sobre o indivíduo; tudo isso é tido como ato criminoso, errado. Esse é o mundo louco onde o dinheiro vale mais que as pessoas, e seu gênero define seu valor. Mundo, em suma, onde é necessário defender, e não só, é necessário combater e lutar com unhas e dentes pelo óbvio. Muitas vezes, o que vivemos é um sentimento de impotência, pois nos sentimos tão solitários e isolados que qualquer ação pode parecer tão vã e sem sentido que essa impotência muitas vezes se torna desespero e apatia.

Utopia ou sentimento de fraternidade e de pertencimento

Minha geração, penso que assim já posso chamá-la, aquela que tem por volta de 25 e 35 anos, que se tornou adulta durante o final dos anos 90 e a primeira década do século XXI, viveu essas contradições e sentimentos de forma profunda.

Muitas vezes, a resposta a esse desespero e apatia era e é o consumismo desenfreado (para os setores da sociedade que tem essa possibilidade), o individualismo, o amor visto de forma idealizada e conservadora na busca da pretensa “alma gêmea”, a criminalidade nos setores mais precarizados da sociedade (inclusive como forma de buscar o tão sonhado consumismo redentor). Saídas individuais, quase sempre fracassadas, para problemas coletivos que em nosso isolamento não conseguimos perceber como tais.

Se vivo as contradições do mundo, se não posso consumir e ter amores, se as relações profundas não me são possíveis e a felicidade não está a minha porta, o problema só pode ser meu e apenas isso. Pois não é o que nos anunciam no bombardeio midiático veiculado por todos os canais e imprensa, no comercial da Coca-Cola e no de margarina, que a felicidade está a nossa mão e só depende de você alcançá-la?

Pensar um mundo novo, mundo emancipado, onde mesmo as coisas mais óbvias deveriam ser realidade (e não nos contentemos apenas com o óbvio), durante um longo período foi visto como uma utopia irrealizável, pois a história tinha chegado ao seu fim e não existiam alternativas, nos falavam os oráculos daquele período, isso é apenas um sonho.

E era um sonho, esses são sempre necessários, mais não um sonho vão a ser vivido de forma onírica apenas durante o sono, mas sonho concreto, que devia e deve ser possível de realizar. Não utopia, não lugar inexistente, não apenas imaginação, mas expressão do sentimento de que faço parte de uma realidade que está para além do indivíduo, que faço parte de uma história e de um grupo, que as pessoas ao meu lado sentem e sofrem e amam e são felizes como eu mesmo e que juntos podemos construir uma nova realidade, um mundo novo.

Não o sentimento de fraternidade e humanidade superficial ministrado pelas religiões como narcótico para expiar os sofrimentos mundanos, mas um sentimento de fraternidade humana profundamente profano e terreno que não precisa de nenhum deus para nos ligar.

As lutas, as barricadas, os piquetes
(as cicatrizes ganhas juntas soldam nossa solidariedade)

Quando comecei a escrever esse texto vi que talvez pudesse estar sendo muito pessimista, olhando os novos fenômenos sob uma perspectiva por demais negativa. Desculpe, leitor, se foi essa a impressão que te ficou também, era justamente o contrário o que queria lhe dizer.

Pois se vemos a barbárie a que chegou a sociedade burguesa com esses massacres de estudantes, perseguições aos jovens negros e todas as demais brutalidades, o que torna nossa angústia e estranhamento não impotência, não desespero, mas antes revolta, indignação e luta é que todos esses fenômenos geraram uma profunda mobilização dos oprimidos, mostram que frente a todo esse caos capitalista “uma flor nasce na asfalto”. E essa não é mais débil e frágil, tendo de ser protegida e preservada, mas tem a potência das mobilizações massivas no México, que levam milhões às ruas contra seu regime carcomido, a força e pujança das mobilizações negras nos EUA e todos os demais fenômenos de luta que acontecem em todo o mundo.

Vivemos um novo momento onde os oprimidos se colocam novamente em luta para tomar em suas mãos os rumos de sua história, assim como já fizeram muitas e muitas vezes no passado. São esses os momentos em que as novas relações e uma nova solidariedade se forjam e se aprofundam.

Todas e todos aqueles que já participaram e irão participar de lutas sociais veem como nesses momentos o sentimento de solidariedade humana com os que estão a seu lado dão saltos, se tornam profundos e sólidos.

Esses momentos, quando os oprimidos se colocam em luta, apontam o mundo novo que queremos e devemos criar, mundo onde fraternidade e solidariedade humanas, onde abertura para as diferenças e reconhecimento de nossa unidade enquanto gênero humano se afirmem e se tornem realidade.

Os novos ventos, esse novo "espírito de época" que vemos ao redor do mundo já não são mais algo distante, chegou inclusive em nosso país, que durante um primeiro momento parecia nadar contra a tormenta se mantendo um mar de águas calmas. Desde junho do ano passado, o Brasil entrou na espiral das lutas sociais e dos trabalhadores ao redor do mundo; manifestações massivas como não aconteciam há décadas, ondas de greves que se espalham de norte a sul mostram que também aqui não aceitamos mais passivamente a barbárie, a irracionalidade e opressão capitalista e nas lutas, nas barricadas e piquetes mostramos nossa indignação e a disposição de mudarmos isso.

Quando nos colocamos em luta, nós oprimidos vemos que se eles, os capitalistas, os opressores, representam essa barbárie, esse mundo irracional, expressam o velho e o já superado, aquilo que se mantém mas que há muito já demonstra sua podridão, nós somos o novo e o grande, o que aponta a criatividade e que se sabe capaz de realizar. Quando nas ruas e nas lutas tomamos nosso futuro em nossas mãos, vemos, sentimos e comunicamos nossa força, capaz de parar um país e de pôr aqueles que até ontem dominavam, a tremer.

Lutemos, portanto, e nessa luta vamos forjar e aprofundar os novos sentimentos e relações que queremos, pois se nada temos a perder, temos um mundo novo a ganhar e criar.

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