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Cultura

Eu receberia as piores noticias dos seus lindos lábios: a sede de lucro não respeita a vida

09 Mar 2015   |   comentários

“Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” invadiu as prateleiras das livrarias e tem levado esse confronto que ocorre no interior do Brasil de forma velada e distante da imprensa aos olhos dos leitores.

Em 2012 os cinemas brasileiros receberam a estreia do filme “Eu receberias as piores noticias dos seus lindos lábios”. Infelizmente o pouco que se falou dele foi motivado apenas pela presença da nudez de Camila Pitanga, que interpreta, de forma belíssima, a personagem Lavínia; e o contexto social e cultural no qual o romance está inserido nem sequer foi notado. O filme de Beto Brant e Renato Ciasca se originou do livro homônimo de Marçal Aquino, que nos conta a história da paixão vivida entre Cauby – fotógrafo, principal narrador e personagem - e Lavínia, que se passa no interior do Pará.

No livro, percorrendo as primeiras páginas encontraremos Lavínia; o estereótipo da mulher que arrebata os homens e que, quando passa pela vida deles deixa grandes estragos, a mulher para qual a metáfora perfeita é: furacão. Cauby é o homem arrebatado, assim como Ernani – pastor casado com Lavínia. Nos surpreendemos quando nos deparamos com a história dessa personagem e reconhecemos que ela é clichê, como tantas outras histórias de meninas que acabaram na prostituição. É cruel reparar que a história da menina, filha de mãe alcoólatra, pai desconhecido, que largou a mãe dela quando ainda grávida de seis meses, que foi abusada aos 14 anos pelo padrasto e acabou se prostituindo para sobreviver, é mais uma história clichê. Não deveria ser comum, mas vivemos em uma sociedade tão deturpada, que é mais uma pra conta de milhares de histórias que se repetem e se tornam naturais em cada esquina. Assim como a história de Lavínia, a narrativa a princípio cria a expectativa de uma história clichê de paixão avassaladora entre o anti-herói e a louca; paixão que não acabará bem, muito provavelmente. Mas o pano de fundo é o que mais nos interessa e é também o trunfo que o filme terá sobre o livro.

A narrativa de Marçal Aquino merece inúmeros elogios, é densa, envolvente, e nos dá a possibilidade de estarmos frente a uma história real. Sentimos que somos mais um dos personagens que conversa com Cauby, sentados na varanda da pensão que ele frequenta. E aqui já está dado o pano de fundo, que no filme será expandido: as mineradoras e madeireiras em confronto com a população local e a super exploração do meio ambiente em busca de lucro por essas, o alto lucro que as igrejas evangélicas conseguem explorando a fé (fato que foi suprimido no filme em detrimento a outras críticas, infelizmente) e o desrespeito à cultura indígena local.

Um das primeiras cenas do filme é uma passagem muito curta do livro. Cauby é chamado a fotografar três índios presos por terem sacrificado uma índia em um ritual. De início já há a denuncia sobre o desrespeito à cultura indígena. Coloca-se os índios sob as leis do homem branco e ele é taxado de selvagem por não obedecê-las. Os forçam a um novo estilo de vida onde ele não se encaixa; e a resposta mais imediata a essa nova conjuntura é a de marginalizá-lo. Encontramos a imagem de um índio travestido, tendo como única maneira de sobrevivência se adaptar a essa sociedade que se cria forçadamente em volta das mineradoras e madeireiras; adaptação que se dá através da aculturação.

Assim como no livro, Beto Brant e Renato Ciasca criam uma narrativa fragmentária. Entre as imagens de sexo entre Cauby e Lavínia, o passado dessa personagem, que se confunde com o presente; há, também, as imagens das balsas que descem o rio, que corta a cidade, carregadas de madeira, que sobem o rio com tratores que virão para aumentar a exploração e o desmatamento; balsas que no estopim da guerra entre a comunidade local e as madeireiras e mineradoras serão incendiadas, nas cenas do livro.

Cauby é um personagem embriagado pela paixão que nutre por Lavínia, ela é a unica coisa que importa a ele, todo o resto é mais que secundarizado; ele pressente o clima de confronto existente na cidade, mas não depreende muita atenção ao que está ocorrendo. Em contrapartida Ernani - o pastor, marido de Lavínia, que a salvou da prostituição e a levou de Vitória para a cidade no interior do Pará, para onde foi designado para pregar por sua igreja – possui um papel social; denuncia em suas pregações o mal que as mineradoras e madeireiras fazem ao meio ambiente e a comunidade em nome do lucro. E através de passagens da bíblia exorta a comunidade a resistir e enfrentar esse mal, que o capital causa. Não por acaso será o primeiro morto pelos capangas representantes das empresas presentes na cidade. Morte que deflagrará a revolta popular na região.

Há no filme uma cena real, entre as cenas reais das balsas, já mencionadas aqui, e a dos descampados em meio as florestas, que foi gravada na cidade em que o filme foi filmado, que chama a atenção. A cena apresenta uma assembleia conduzida pelos moradores locais, todos com traços visivelmente indígenas, líderes dos sindicatos, que se referem ao governo como um “governo latifundiário”. Toda a história que se passa como pano de fundo ao romance não é ficção, é a história real, que de tempos em tempos é lembrada por reportagens especiais na grande imprensa e depois esquecida e abafada sob os números de grandes lucros.

Na obra original de Marçal Aquino há outros personagens que não aparecem no filme. Personagens que trazem mais camadas a obra, como a Dona Jane, dona de uma pensão, que salva Cauby depois do seu apedrejamento; ou seu Altino, o Careca; o chinês Chang, fotografo da cidade e pedófilo. Todos personagens locais que constroem a comunidade onde a historia se passa.

A narrativa de Marçal Aquino já valeria pelo romance que ele traz, pelo puro prazer da leitura. Mas encontrar nessa obra essa denúncia e vê-la tratada com mais afinco no filme que ela originou torna-a ainda maior. “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” invadiu as prateleiras das livrarias e tem levado esse confronto que ocorre no interior do Brasil de forma velada e distante da imprensa aos olhos dos leitores. A arte da escrita de Aquino, e das imagens de Renato Ciasca e Beto Brant é bela, envolvente e cumpre o papel de denunciar aquilo que finge não se ver.

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