Quinta 2 de Maio de 2024

Teoria

Acerca da Semana de Ciências Sociais da USP

“Que (crítica à) democracia é essa?”

16 Jun 2009   |   comentários

Para os efeitos deste comentário crítico, restringiremos nosso foco à última mesa da semana, que reuniu os profs. Fernando Limongi (Ciência Política), Paulo Eduardo Arantes (Filosofia), e o dirigente político do MES/PSOL Roberto Robaina. O tema proposto para a mesa foi: “Democracia: balanço e perspectivas” .

Concepções de democracia

Como foi ressaltado por todos os debatedores, o tema era amplo e ensejava diversos ângulos de abordagem. O prof. Limongi, representando ostensivamente uma ala direita da Faculdade na mesa (Limongi é reconhecidamente “tucano” ), defendeu uma concepção essencialmente liberal através da defesa de um conceito “técnico” de democracia.

Para ele, democracia seria o regime em que os indivíduos possuem a “possibilidade de escolha” . Assim, uma das marcas mais fortes dos regimes democráticos estaria no fato de que neles os governantes não apenas permitem periodicamente uma competição aberta pelo poder político (eleições), mas que aceitem o resultado no caso de serem derrotados, dando margem assim a uma circulação ou alternância no poder.

O que esta concepção (apesar de sua simplicidade e de seu forte apelo ao senso comum atualmente existente) esconde, quando vista mais de perto, é que nas democracias burguesas o fundamental nunca está submetido à possibilidade de “escolha” , mas mantém-se rigorosamente fora do campo de alternativas disponibilizadas aos “indivíduos” : a propriedade privada dos meios de produção.

Porém esta crítica não foi feita por nenhum dos demais debatedores, e nem mesmo uma bem mais amena do que esta.

Já Paulo Arantes, que tem o mérito inegável de ter-se mantido no lado progressista dos conflitos mais importantes ocorridos na USP nos últimos anos ’ a ocupação da reitoria em 2007, e o atual movimento em defesa do Sintusp e pela reintegração do Claudionor Brandão ’, mostrou-se, no entanto, muito mais débil quando o assunto foi travar o bom combate teórico.

Em sua intervenção, ocupou-se centralmente de comparar, ressaltando as diferenças entre ambos, o momento histórico atual e aquele compreendido entre os anos 1945-1964. Para Arantes, (forçando bastante a realidade dos fatos), em todo o período pré-64 simplesmente inexistia o conceito de democracia, e isso tanto nos meios de esquerda quanto nos da direita. Assim, enquanto a direita pró-imperialista alinhava-se com o discurso de “defesa do mundo livre” (livre, e não necessariamente democrático), em oposição ao bloco encabeçado pela URSS stalinista, a esquerda da época estaria preocupada, sobretudo, com o desenvolvimento nacional. Nesse sentido, a grande questão era, no fundo, a industrialização do país, e no caso dos líderes camponeses, uma melhor distribuição de terras. Porém o conceito de democracia, ainda segundo a argumentação de Arantes, não tinha em nenhum caso qualquer relevância específica, ou ainda mais enfaticamente, ele simplesmente “não existiu” em todo o período.

Concluindo sua argumentação, a experiência da ditadura militar após 1964 impós a questão democrática como um centro de gravidade em torno do qual seria impossível não orbitar. Contudo, que seja bem entendido: como de costume, sua discussão não era a de quem vangloria a miserável democracia em que vivemos, mas ao contrário: era a de quem reconhece, sem poupar acidez, sem poupar sarcasmo e inclusive uma boa dose de auto-ironia (o que não deixa de lhe atrair a simpatia de muitos estudantes), de quem reconhece exatamente os limites da democracia atual, os atentados diários que ela sofre, os limites estreitos que a estrangulam... porém que enxerga tudo isso com a lucidez trágica dos críticos puros (“críticos críticos?” ), e proclama de maneira contundente que a democracia representa cada vez menos, e no entanto estamos todos cada vez mais atados a ela, cada vez mais incapazes de romper com ela e de combatê-la com qualquer vestígio de eficácia!

Enfim, do ponto de vista histórico, ainda que possamos dar razão a Paulo Arantes quanto ao fato de que não existia naquele momento uma fetichização da democracia (dos proprietários) como a que vigora hoje; e isso até porque havia naquele então uma disputa aberta entre regimes sociais mutuamente excludentes, e porque havia uma ampla experiência revolucionária ao alcance da mão (ou da memória histórica de curto prazo). Ainda assim, dizíamos, não podemos deixar de indicar o insensato de sua simplificação da história, quando na verdade, naquele mesmo período tratado por Arantes, a ala mais pró-imperialista da burguesia se agrupava como União Democrática Nacional (a UDN golpista, que abusava da verborragia democrática contra seus adversários bonapartistas, a começar por Vargas, em cujo regime ditatorial a UDN deu seus primeiros passos, a partir de 1942). E o mesmo quando lembramos que a esquerda da época estava polarizada justamente em torno da política do PCB, que apesar de ser um partido absolutamente burocrático (era de fato um mero satélite da burocracia totalitária do Kremlin) perseguia uma política de colaboração de classes assentada na estratégia da aliança com a “burguesia democrática” para a “revolução antifeudal” ...

Do ponto de vista teórico, temos que concluir que, com seu discurso, Paulo Arantes elidiu precisamente os elementos que permitiriam sair da armadilha de que a maioria da esquerda atual é presa. Ao que tudo indica, por sua argumentação, a esquerda (e o debate político em seu conjunto) da época ainda não alcançava o patamar democrático; muito mais correto seria dizer, no entanto, que os dias atuais é que representam um enorme retrocesso com relação a uma época em que, apesar de suas misérias, estavam em jogo os alicerces da organização da vida social . A ilusão de que “não há vida fora da democracia liberal” , também ela, é algo historicamente construído, e determinado pelas décadas de derrotas dos explorados e de ofensiva burguesa sem quartel ’ e precisamente agora, diante de nós, vê os seus pilares ruindo com a maior crise capitalista de que se tem notícia.

Porém também esta delimitação com relação ao “pensamento crítico” semi-marxista de Paulo Arantes, só poderia ser feita a partir das idéias que compõem o núcleo revolucionário do marxismo. E, mais uma vez, tal crítica não foi feita, por parte do debatedor que sentava à sua esquerda; veremos agora o porquê.

Roberto Robaina, falando desde o início como político, e explicitando esta sua condição para todos, tentou abordar a questão proposta, do balanço e das perspectivas da democracia, partindo do processo efetivo pelo qual se forjou o atual regime democrático-burguês. Resgatou a década de lutas operárias e populares que se estendeu do final dos anos 1970 (a partir do ABC paulista) até o final dos anos 1980 (quando foi aprovada a atual Constituição Federal e celebraram-se as primeiras eleições presidenciais diretas). Porém, ao contrário de mostrar como aquelas pujantes lutas de classes pararam a meio caminho, pois impuseram a mudança no regime político burguês, mas não derrubaram o modo de produção capitalista; Robaina defendeu os pilares da visão historiográfica petista, a saber: que aquele movimento operário, aquelas lutas sociais, foram vitoriosas pois “conquistaram a democracia” , e então o atual regime democrático (sem definição explícita de classe) constituiria um terreno aparentemente neutro, “permeável” à difusão dos interesses de classe, que se cristalizariam nos poros do aparelho de Estado, dando lugar a “tensões democráticas” que representam a herança daquelas grandiosas lutas, e que se debatem contra as heranças do passado com as quais foram obrigadas a se amalgamar. Até aqui, um discurso que até poderia aparentar uma falsa sofisticação, não fosse por um “detalhe” : para Robaina, assim como para a sua corrente o MES, e sua principal figura Luciana (“Gerdau” ) Genro, essas supostas “tensões democráticas” se expressariam na atual conjuntura nas... forças repressivas do estado! Na Polícia Federal! Nas polícias militares! Nos “delegados honestos” , que (a argumentação é do MES e consta de sua tese para o próximo Congresso do PSOL, disponível em www.psol.org.br), com todo direito passam “por cima das leis” para impor a “verdade” !!

Assim se entende por que os estudantes de Ciências Sociais, que lotaram um auditório para presenciar o debate, realizada numa sexta-feira à noite, não puderam partilhar sequer de uma rudimentar crítica marxista do fetichismo da democracia burguesa (o “marxismo” de Robaina não ofereceu isso); por que não foram elucidados os erros de uma “teoria crítica” que, apesar de proporcionar divertidas piruetas teóricas, conduz à mais plena esterilidade política; e (pior de tudo) por quê, ao final de uma semana de debates com um título tão sugestivo ’e inteligentemente provocativo- terminou sem que caísse a máscara democrática dos teóricos liberais filo-tucanos , e sem que ganhasse um novo e fresco impulso entre os estudantes o combate à política reacionária de “democratas” do talhe de um José Serra e seus lacaios entre as autoridades acadêmicas.

Epílogo

Este artigo já estava finalizado quando a tropa de choque invadiu a universidade, a mando da reitora Suely Vilela e do governador José Serra, tentando botar a greve dos trabalhadores, e com ela toda a comunidade universitária, de joelhos diante dos desígnios autoritários e privatistas do comando tucano.

Que as cenas grotescas que a PM protagonizou no campus poucos dias depois disso, em 09/06/2009, façam vibrar os nervos e aguçar o pensamento dos estudantes e de todos os setores progressistas da universidade.

Elas servem como uma clara advertência para o futuro, e selam o balanço daquela rodada de debates sobre a democracia na USP: sem travar um grande combate ideológico pelo conceito de democracia, mostrando que a mesma só é genuína se se expande para a auto-organização dos trabalhadores e de todos os explorados, e que, ao contrário, estrangulada nas mãos de teóricos comprometidos com os interesses de classe dos capitalistas, serve apenas para isso ’ permitir que sejam considerados “democratas” os senhores que comandam a instalação da barbárie, da opressão, da tirania. Esse destino não podemos aceitar!

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