Quinta 2 de Maio de 2024

Internacional

AMÉRICA LATINA

A visita de Lula a Cuba e as iniciativas da burguesia brasileira pela restauração capitalista

11 Mar 2010   |   comentários

A recente visita de Lula a Cuba esteve marcada por intensa polêmica nacional e internacional pela falta de condenação do presidente ao regime cubano quando morria um preso político, Orlando Zapata. O jornal espanhol El País condenou o mesmo governante que meses antes havia agraciado com o título de homem do ano, e até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) - como parte da campanha eleitoral de seu partido–,contrariando muito de sua política de governo para Cuba, foi a público repudiar a atitude de Lula. FHC bem como o PSDB e seu enlameado escudeiro, DEM, ecoaram as manchetes e editoriais de Folha, Globo, Estado de SP, entre vários outros.
Apesar de toda a gritaria nacional, Lula e seu silêncio frente ao regime cubano são funcionais a como a burguesia brasileira busca se localizar na restauração capitalista na Ilha, e não destoa da política trilhada pelo Estado brasileiro já há vários anos: estreitar laços comerciais, respaldar diplomaticamente Cuba sem se indispor muito com os EUA e, fundamentalmente, posicionar-se melhor na restauração atuando enfaticamente pelo triunfo de uma tática restauracionista distinta dos EUA e da burguesia gusana [verme em espanhol]. Esta tática defendida pelo Estado brasileiro conjuga-se melhor com os interesses da burocracia castrista e se constitui como uma armadilha às massas cubanas e latino-americanas, pois escondem uma restauração pela via “vietnamita” ou “chinesa” sob o discurso de integração dos povos latino-americanos.

Os diferentes duplos discursos sobre Cuba e Direitos Humanos

Sem solução de continuidade o DEM, atingido pelos recentes escândalos de corrupção no DF, afirmou a mesma coisa que os principais jornais nacionais – o governo Lula teria um duplo discurso quanto a direitos humanos, enquanto no Brasil gostaria de apurar responsabilidades e punir responsáveis por tortura faria “vista grossa” no Irã e em Cuba. Este mesmo DEM e grandes jornais que estiveram na linha de frente de condenar o III PNDH [1] e declarar que o “passado pertence ao passado” agora tenta se postular como defensor da liberdade de expressão, organização e protesto em Cuba, em sintonia com a burguesia gusana de Miami, para distrair dos escândalos de corrupção que os envolve e tentando fazer com que as pessoas esqueçam que são os campeões dos pedidos de criminalização do MST ou a publicarem raivosos editoriais contra a esquerda na USP, contra o demitido político Claudionor Brandão e exigindo punição aos trabalhadores da mesma universidade por realizarem greves políticas.

Lula, por sua vez, acendendo uma vela para os membros que estão atados por vários laços à burocracia castrista e, mais que tudo, acendendo outra aos interesses burgueses do Estado brasileiro não se pronuncia sobre questões que os EUA condenam energicamente ou que abalariam a relação com a burocracia castrista. Em meio à morte do dissidente cubano Lula não condenou o regime, não o saudou, não criticou nem mencionou as posições do preso político, saiu pela tangente e declarou “lamentar profundamente que uma pessoa se deixe morrer de fome”. O beneplácito com o regime cubano criticado pela mídia nativa é a realização de como Lula implementa uma política externa mostrando-se “de esquerda” para seu partido e ao mesmo tempo garantindo os interesses burgueses nacionais. Os interesses defendidos pela burguesia brasileira, bem como suas profundas ligações com o imperialismo – mesmo que tenha algumas iniciativas distintas para melhor garantir seu espaço regional –, impedem o desenvolvimento da “liderança regional” de Lula.

O processo de restauração capitalista e o papel brasileiro

Em Cuba combina-se a sobrevivência de conquistas das massas como a reforma agrária, independência frente ao imperialismo, algum nível de monopólio do comércio exterior e de nacionalização dos meios de produção que permitem seus avanços em saúde e educação, num Estado operário deformado em avançado processo de restauração capitalista, com um regime burocrático que conserva escandalosos privilégios, oprime e ataca as possibilidades das massas defenderem suas conquistas, impedindo sua auto-organização. O regime de partido único, o impedimento de desenvolver órgãos como conselhos operários, camponeses e de soldados, e nem sequer sindicatos livres, somados ao controle da imprensa e mídia incluída a Internet que atingem toda a população e não só os defensores de interesses imperialistas e dos gusanos de Miami mas de todo e qualquer crítico do regime mesmo que defensor da continuidade da propriedade nacionalizada minam diariamente a possibilidade de defesa deste Estado pelas massas do país. E assim, também, entrega-se o absurdo argumento democrático ao imperialismo que a poucas milhas de Havana tortura pessoas na prisão de Guantánamo e utiliza-se deste discurso como arma para a restauração. O discurso da democracia também é utilizado pela oposição patronal gusana que, levantando demagogicamente a defesa dos direitos humanos e a liberdade de expressão, buscam encobrir seus verdadeiros objetivos de fazer Cuba retroceder a uma colônia do imperialismo.

Este processo de restauração não se iniciou recentemente, mesmo que sob o mando de Raúl Castro combinado a alguma maior abertura de Obama tem dado sinais de aceleramento. O bloqueio do desenvolvimento da revolução em sua tarefa de transformação das relações sociais na Ilha e de sua extensão continental é garantida a ferro e fogo pela burocracia do Partido Comunista Cubano (PCC). Em repetidos processos revolucionários latino-americanos Cuba sob Fidel Castro atuou como bombeiro para que nenhum país seguisse o exemplo cubano, ou seja, expropriasse a burguesia. É conhecida a famosa frase de Fidel em 1979 quando a revolução nicaragüense tinha derrubado Somosa e seu exército, quando disse: “Não queremos uma nova Cuba na Nicarágua”. A continuidade no poder desta burocracia é uma arma apontada contra as massas e as conquistas da revolução cubana. Desde o fim da URSS esta camarilha deu passos decididos na restauração sob argumentos de um “regime especial”, flexibilizando o monopólio do comércio exterior e da nacionalização dos meios de produção; seu interesse fundamental é a transformação de seus privilégios na gestão de propriedades nacionalizadas e em joint-ventures com o capital estrangeiro para se tornar ela mesma proprietária, burguesia. Esta intenção que teria expressão em uma restauração “vietnamita ou chinesa” com o PCC conservando o poder mas tornando-se burguês, ao mesmo tempo enfrenta-se com dois poderosos obstáculos: o nível de consciência antiimperialista e de suas conquistas ainda conservado entre as massas e um plano distinto por parte dos EUA e gusanos.

A própria possibilidade de um desenvolvimento “chinês” da restauração em Cuba é mais limitada devido a seu mercado menor, seu não desenvolvimento de tecnologia nuclear, que lhe retirariam margens de manobra frente ao imperialismo estadunidense. Deste modo todos os passos restauracionistas da burocracia são bem arriscados pois uma completa restauração do capitalismo colocaria com toda força a pressão gusana pela retomada de suas propriedades e um avançado processo de aguda semi-colonização da Ilha.

Há distintos interesses nos EUA sobre como organizar a restauração, tendo havido algumas tentativas no governo Obama de uma política menos ligada ao embargo e ao programa integral dos gusanos, mas mesmo em seu governo a figura de Hillary Clinton é uma das principais expressões do programa gusano, constituindo-se como a principal política imperialista para a ilha caribenha. Nucleada em Miami a burguesia oriunda de burgueses cubanos fugidos (os gusanos) tem como projeto não só restaurar o capitalismo na Ilha mas restaurar suas propriedades industriais, comerciais, urbanas e de terras. Este setor cumpre um papel importante na manutenção do odioso embargo estadunidense a Cuba e na política de nenhum diálogo com a burocracia castrista; sua política se resume a fazer terra arrasada da revolução e ter um programa contra-revolucionário completo, fazendo a ilha voltar a ser um cassino, bordel e vasta exploração semi-colonial ianque.
Em meio a estes dois interesses restauracionistas contrapostos atua o Brasil de Lula.

Cuba, a pérola dos negócios caribenhos da burguesia brasileira

O Caribe se constitui como um importante ponto de apoio comercial para o superávit comercial do Brasil com o mundo. Mesmo representando apenas 7,18% do comércio exterior brasileiro em 2008 representava 60% do superávit. Enquanto na maioria dos países do mundo a pauta de exportações brasileiras é marcada por commodities e produtos industrializados de baixo valor agregado, para a ilha caribenha e região o Brasil exporta sobretudo manufaturados [2]. Cuba vem crescendo de importância no comércio exterior brasileiro. De 2000 a 2008 as exportações aumentaram 455% e o saldo 551%, e o Brasil já é o quarto maior parceiro comercial de Cuba e aposta em crescer neste comércio. O secretário-geral do Ministério da Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, delineou do seguinte modo a estratégia brasileira: "ser o parceiro número um de Cuba em seu processo de desenvolvimento econômico e social, e nas relações políticas também”, e aproveitar "as oportunidades que aparecem e existem para participar deste momento tão importante (na ilha)" [3].

O momento importante é a restauração capitalista e o Brasil aposta em acelerar as joint-ventures. Deste modo Cuba já se constitui como um dos principais locais de investimento brasileiro na América Latina. Desde 2008 a Petrobras já investiu R$ 1 bilhão (US$ 540 milhões). Durante a visita de Lula a Souza Cruz, gigante nacional de cigarros, anunciou renovação de sua fábrica em joint-venture, a maior da Ilha, e o BNDES liberou US$ 300 milhões para a Odebrecht, uma das maiores construtoras brasileiras e maior acionista da Braskem, a maior empresa petroquímica das Américas, para modernização do porto de Mariel. Esta obra orçada em US$ 600 milhões é uma dádiva à Odebrecht que tem a totalidade de seu investimento arcado pelo Estado brasileiro e ainda a obrigação contratual do Estado cubano em utilizar construtoras brasileiras. Estes investimentos se dão concomitantemente aos empréstimos ao Estado cubano terem totalizado US$ 1 bilhão de 2003 a 2010 e estarem orçado para subirem mais 30% até 2012, rendendo juros ao Estado brasileiro [4].

Estes negócios além de auferirem juros e lucros hoje vão armando a burguesia brasileira e seu Estado como sócios da burocracia e apostando suas fichas em uma restauração vietnamita ou chinesa. Esta aposta arriscada depende dos EUA abrirem mão de sua política de terra arrasada e retorno das propriedades, e mais importante, de as massas não impedirem este terrível retrocesso histórico que significaria a restauração capitalista na Ilha.

Como defender as conquistas das massas cubanas?

“É obrigação dos revolucionários defender cada conquista da classe operária, ainda que possam estar distorcidas pela pressão de forças hostis. Aqueles que não consigam defender velhas posições nunca conquistarão novas.” (Leon Trotsky, “Balance sheet of the finnish events”, Fourth International, junho de 1940).

As massas cubanas ainda conservam importante espírito igualitário que significa um freio à restauração e às pretensões da burocracia em tornar-se burguesia, e mais ainda, um profundo sentimento antiimperialista que é um freio maior à restauração gusano-ianque. Deste modo o perigo interno da burocracia somado a seu aval pela maior parte da esquerda latino-americana contribuem a disfarçar a restauração como integração dos povos. A forma de prestar solidariedade e o programa contra a restauração constituem um nó importante da política revolucionária em nosso continente. Por isto é chave se desvencilhar das posições defendidas pelas correntes governistas e mesmo grupos anti-governistas como o PCB e diversos agrupamentos populistas que atrelam sua defesa da revolução à defesa da burocracia castrista, fazendo vista grossa ao papel que esta cumpre na restauração e desarmando as massas de sua necessidade de colocar abaixo esta burocracia para erguer conselhos operários e camponeses (sovietes), isto é, organismos de autodeterminação dos produtores e consumidores, para acabar com os privilégios da casta burocrática, restaurar a propriedade nacionalizada e o monopólio do comércio exterior, e colocar Cuba como um bastião da revolução continental e internacional. Defendemos também a consigna de liberdade aos partidos, somente àqueles que defendem as conquistas da revolução, começando pela independência de Cuba do imperialismo, nos separando da burguesia que levanta a democracia como forma de encobrir o seu interesse restauracionista. Mas há que compreender que não se trata da luta só pela democracia formal e sim da questão estratégica da participação das massas na direção de seu Estado.
Distinguir entre a forma política (regime e governo) e o conteúdo social nesses estados operários deformados, ainda que em avançado processo de restauração, o que tem que ser combatido e o que tem que ser defendido, foi e é a chave dos marxistas para não nos perdermos no programa a ser levantado [5]. Este método elementar foi desconsiderado inclusive por organizações que se reivindicam do trotskismo, tomando de forma unilateral os elementos componentes e caindo, portanto, em posições anti-marxistas.

Assim aconteceu com a LIT (corrente internacional do PSTU brasileiro), que passou de levantar nos anos 80 a consigna de “Cuba + democracia” e a “liberdade de partidos”, sem nenhum limite, o que levou a um duplo erro. Por um lado, embelezavam o castrismo falando que só se tratava de um pouco mais de democracia na Ilha, e, por outro, ficando junto aos gusanos de Miami ao coincidir na demagogia da demanda democrática defendida por esses gusanos inimigos de Cuba e das massas cubanas e latino-americanas.

Agora o PSTU e sua corrente internacional (a LIT) passaram ao extremo oposto, considerando que já haveria ocorrido a restauração capitalista na Ilha, e que hoje deveria que ocorrer uma “revolução democrática”, entendida como liberdade de organização política e sindical como etapa a uma nova revolução social na Ilha, começando tudo do zero [6]. Esta posição de desarticular as tarefas democráticas, para uma primeira etapa, das tarefas socialistas, pode, facilmente, escorregar e coincidir com o programa dos gusanos e seu uso interessado da “democracia” para promover sua restauração, sendo que os gusanos constituem um perigo de primeira ordem às conquistas da revolução e sua falaciosa defesa da “democracia” precisa ser energicamente desmascarada.
Os gusanos podem se representar no partido Democrata ou Republicano, mas não deixam de ser a base social da contrarrevolução imperialista em Cuba. Aos revolucionários cabe lutar pela liberdade para as massas atuarem em seus interesses e não da democracia em geral, que por outro lado nem existe, pois a democracia só pode ser burguesa ou proletária.

Cabe às massas cubanas organizar a luta contra os privilégios da burocracia, destroná-la e substituí-la erguendo seus órgãos de auto-organização, para reverter as medidas da restauração de tipo “chinesa” ou “vietnamita” em curso, assentando bases firmes para a construção de um partido revolucionário que recoloque Cuba como parte da luta do proletariado continental, com o objetivo de constituir a única integração latino-americana progressista: os Estados Unidos Socialistas da América Latina. Começando pela luta anti-imperialista de retirada do embargo ianque e exigindo a retirada imediata das milhares de tropas ianques postadas ameaçadoramente ao lado de Cuba, na ocupação do Haiti e no resto do continente.

[1Para mais informação sobre o PNDH e a demagogia de Lula veja “Punição dos mandantes, assassinos, torturadores e seus apoiadores”, de Leandro Ventura em http://www.ler-qi.org/spip.php?article2141, e também “Mais demagogia lulista com as mulheres e os trabalhadores” de Clarissa Menezes e Diana Assunção em http://www.ler-qi.org/spip.php?article2164.

[2Para maiores informações ver “Os interesses brasileiros e acordos com os EUA na maior inserção em Honduras, na América Latina e Caribe” de Leandro Ventura, Jornal Palavra Operária n.64, 12/2009, disponível em www.ler-qi.org.

[3Entrevista ao Jornal do Brasil em 17/10/2009

[4Informações publicadas no Globo de 25/02/2010

[5Esclarecemos que muito diferente das opiniões teóricas e politicamente falsas de correntes como o stalinismo ou as diversas correntes populistas e reformistas, que consideram Cuba um “estado socialista”, desconsiderando o papel contrarrevolucionário da burocracia que impõe um regime de ditadura pessoal, o inverso da ditadura do proletariado e da democracia soviética, nossa caracterização sobre o Estado cubano é de que estamos diante de um “estado operário deformado”, que já nasceu burocratizado por uma direção pequeno-burguesa (Fidel, M26) que não tinha como estratégia a ditadura do proletariado e que se viu obrigada a expropriar a burguesia e o imperialismo como mecanismo de defesa (a contragolpe), com um regime moldado aos interesses e privilégios de uma burocracia parasita e contra as tarefas imediatas e históricas da revolução continental e internacional e a democracia de massas. Sem ser “socialista” Cuba segue sendo um “estado operário deformado” em que a burocracia castrista cada vez mais degrada as bases da revolução das massas e da propriedade nacionalizada, numa perspectiva de restauração capitalista, porém sem ter ainda se transformado em um estado burguês. Daí que nos remetemos aos ensinamentos de Leon Trotsky quando da discussão (1939-1940) com dirigentes do SWP que se negavam a defender a URSS diante dos ataques imperialistas e do nazismo alemão, por considerar apenas seu regime burocratizado e de terror imposto pela burocracia stalinista.

[6Em sua revista Correo Internacional nº 122, de agosto de 2006, pode-se conhecer a política e estratégia da LIT para Cuba. Em artigo assinado por seu dirigente Alejandro Iturbe (“O que se discute por detrás da sucessão de Fidel?”), depois de relatar o inegável avanço da restauração capitalista implementada pela burocracia castrista, em Cuba “surgiu um novo estado capitalista no qual a economia funciona de acordo com a lei capitalista do lucro”. Portanto, não estaria mais colocada como tarefa principal defender Cuba “dos norte-americanos e ‘gusanos’”, posto que a discussão sobre Cuba “não é um possível risco de transformação do carácter económico-social do estado, mas antes a alteração ou não do seu regime político”. Trata-se, para a LIT-CI, de lutar pela “democratização” do regime cubano, já que as bases econômicas da revolução cubana – propriedade nacionalizada, monopólio do comércio exterior – foram restauradas e sequer “a principal ameaça à independência cubana não provém nem do imperialismo norte-americano nem dos contrarevolucionários que vivem em Miami”. Infelizmente, a realidade – mãe da verdade – seguirá demonstrando que essa antimarxista política da LIT terminará confundida com as reacionárias e demagógicas proposições de “democratização” alardeadas pelo bloco pró-imperialista – gusanos, Obama e burguesias latino-americanas, incluindo a brasileira, Lula e o PT – , por mais que esses companheiros obviamente sejam antiimperialistas e anti-gusanos.

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