Sábado 27 de Abril de 2024

Nacional

HÁ 44 ANOS DO GOLPE MILITAR

Os “anos de chumbo” e a Folha de São Paulo

28 Mar 2009   |   comentários

Embora o jornal Folha de São Paulo venha há bastante tempo querendo parecer “liberal” diante dos anos da ditadura (1964-85), trata-se de uma publicação que apoiou o golpe e a repressão estatal. Esse jornal aderiu ao discurso das lutas democráticas quando até mesmo os governos ditatoriais começaram a falar em uma volta lenta e, principalmente, segura da democracia.

Recentemente, esse jornal vem ocupando a atenção daqueles que discutem a ditadura, em função de sua proposta de revisão historiográfica, ao afirmar que a ditadura no Brasil teria sido mais “branda” do que nos demais países do Cone Sul, uma “ditabranda” . Certamente não é de hoje nem começou com a Folha o discurso de que a ditadura brasileira seria menos violenta e sangrenta que a de países como Argentina e Chile. Contudo, o peso social ocupado pelo jornal fez com que o tema ganhasse maior atenção, principalmente da direita

O caso

Essa polêmica da “ditabranda” teve início em função de um editorial acerca do governo Chávez, publicado pela Folha de São Paulo em 17 de fevereiro, visando atacar a “ditadura” de Chávez. Essa interpretação acerca da ditadura brasileira ficou mais clara dias depois, por meio de uma resposta a cartas de leitores. Segundo o jornal, “na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional” .

Para intensificar mais a polêmica, também em nota da redação, o jornal atacou dois renomados professores da USP, Maria Victoria de Mesquita Benevides e Fabio Konder Comparato, respondendo a carta enviada por ambos. Diante da carta dos professores, os editores da Folha afirmaram: “Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua ”˜indignação”™ é obviamente cínica e mentirosa” .

Tentando minimizar o impacto do uso infeliz do termo “ditabranda” , o próprio diretor de redação da Folha, Otavio Frias Filho, veio a público, em 8 de março, para retratar-se: “O uso da expressão ”˜ditabranda”™ (...) foi um erro. O termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis” . Mas, para ele, “é um fato que a ditadura militar brasileira, com toda a sua truculência, foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena ’ ou que a ditadura cubana, de esquerda” . Quanto aos ataques feitos a Comparato e Benevides, o diretor de redação afirmou: “Para se arvorar em tutores do comportamento democrático alheio, falta a esses democratas de fachada mostrar que repudiam, com o mesmo furor inquisitorial, os métodos das ditaduras de esquerda com as quais simpatizam” .

Quantos mortos fazem uma ditadura?

O método “científico” para se chegar à conclusão de que a ditadura brasileira foi mais “branda” é bastante simples: o número de mortos em função da repressão estatal é muito maior na Argentina, por exemplo, do que no Brasil. Ora, basta comparar os cerca de 400 mortos e desaparecidos no Brasil e os cerca de 30 mil da Argentina.

Efetivamente, em termos estatísticos, a ditadura brasileira assassinou menos pessoas ou foi responsável por uma quantidade menor de desaparecimentos. Não há consenso acerca desses dados, afinal, dependendo da fonte, eles podem oscilar entre 300 e 600 pessoas. Mas a Folha de São Paulo, quando faz menção a esse tipo de estatística, parece não levar em conta que, pelos dados oficiais, algo em torno a 30 mil pessoas no Brasil passaram pelas mãos da polícia política da ditadura, sendo interrogadas, torturadas, presas ou mesmo assassinadas pelo regime. Portanto, embora os números de mortos e desaparecidos no Brasil seja inferior aos números de outros países, uma quantidade significativa de brasileiros foi levada a delegacias para sofrer torturas físicas ou psicológicas. Esse número também pode nos levar a imaginar a quantidade de pessoas que, em função do medo provocado pela repressão, optaram pelo silêncio e pela abstenção política, como garantia de sua vida e de sua família. Os editores da Folha, claro, não sabem disso, pois estavam protegidos pelo apoio que davam à ditadura.

Um outro aspecto tem a ver com a própria formação do aparato estatal da ditadura no Brasil. Embora não seja exclusividade do Brasil, aqui a ditadura conseguiu consolidar por trás do regime grandes aparatos de formulação teórica e ideológica, em especial a Escola Superior de Guerra (ESG). Essa instituição, fundada em 1949 sob influência de sua congênere estadunidense, foi responsável pela elaboração da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que, mesmo antes do golpe de 1964, constituiu-se em um corpo ideológico e doutrinário que guiou civis e militares responsáveis pelas ações dos governos repressivos.

Esse projeto político formulado a partir da DSN tinha como objetivo fazer com que o país alcançasse um desenvolvimento económico dentro da lógica capitalista internacional. O Brasil seria uma “potência média” , girando em torno dos Estados Unidos, mas exercendo um forte poder político e económico sobre a região. Nesse projeto não cabia dissidências; eram inimigos, “agentes comunistas” , todos aqueles que assumissem posturas de oposição. Por outro lado, esse desenvolvimento económico seria alcançado por meio do arrocho salarial dos trabalhadores e do controle de suas organizações. Quanto ao eixo da “segurança” , cujo objetivo estava em impedir a infiltração do inimigo externo e derrotar as ações do inimigo interno, apontava para a necessidade tanto do controle ideológico da sociedade como de ações de coerção e violência, quando necessário.

Partindo disso, pode-se entender que a repressão desencadeada no Brasil a partir de 1964 foi seletiva e eficiente, ou seja, calou não massas em grandes mobilizações de ruas, mas lideranças políticas e dissidências do próprio aparato estatal. Por exemplo, parte significativa das cassações efetuadas logo após o golpe foram de militares “nacionalistas” e de funcionários públicos supostamente “comunistas” . Por outro lado, não foram todos os presos políticos assassinados pelo regime, optando-se, por exemplo, por manter encarcerados alguns, por dias, meses ou mesmo anos.

Conclui-se, portanto, quer dadas as diferentes conjunturas de cada país, no Brasil os golpistas tiveram espaço para, primeiro, realizar uma repressão que tomava como base ideológica um corpo doutrinário consolidado ao longo dos debates realizados dentro da ESG e, segundo, optando por selecionar os cassados, os presos, os assassinados e os desaparecidos.

No Brasil, a ditadura interrompeu um processo de lutas que poderia ter levado a uma situação revolucionária, ou seja, foi um golpe preventivo que visava impedir o avanço das lutas dos trabalhadores, que começavam a ganhar corpo. Em países como Argentina e Chile as ditaduras vieram cronologicamente depois da ditadura brasileira, contando inclusive com apoio política e logístico do Brasil. Em 1973, no Chile, o golpe veio não apenas como resposta às tímidas políticas pretensamente “socialistas” de Allende como para interromper um processo de mobilização política que abria a possibilidade de uma situação de duplo poder, por meio dos cordões industriais.

Na Argentina, no mesmo momento em que Pinochet chegava ao poder no Chile, havia uma intenso processo de mobilização política, iniciado com uma revolta popular em Códoba (o codobazo), em 1969. Nesse processo não apenas foi derrubada uma primeira ditadura na Argentina como a classe operária do país veio a colocar no cenário político embriões de duplo poder. O golpe de 1976, portanto, veio como mecanismo para pór fim a uma possibilidade de crise revolucionária.

Percebe-se, portanto, que uma comparação entre Argentina, Brasil e Chile não pode ser feita simplesmente por meio de estatísticas. Se no Brasil a ditadura inaugurou uma política vitoriosa de ação contra a influência do comunismo na América Latina e impediu uma mobilização revolucionária da classe operária, em países como Argentina e Chile os golpes estancaram processos revolucionários que colocavam a classe trabalhadora como protagonista ativa das ações políticas.

Os ataques aos que lutam

Quanto aos ataques contra os professores Benevides e Comparato, chamados de cínicos e mentirosos por seu possível apoio ao governo cubano, trata-se de uma política de desqualificação de professores que vem defendendo posições progressistas, acerca da ditadura ou de outras questões. O jornal, embora tenha atacado os professores, não mostrou onde, quando e com que argumentos eles teriam feito a defesa do regime castrista. Não são citados documentos, pois a posição de apoio integral ao governo de Fidel Castro não é compartilhada pelos intelectuais ofendidos. Por exemplo, Comparato escreveu, em junho 2004, no mesmo Painel do Leitor da Folha, que “a mundialização humanista, pela qual lutamos, funda-se no respeito integral à democracia e aos direitos humanos, caminho que, infelizmente, não tem sido seguido pelo governo cubano” .

Os ataques a Benevides e Comparato não são por acaso. Comparato, por exemplo, vem sendo nas últimas décadas um dos principais jurista na luta pelas reparações dos crimes da ditadura e pela punição dos torturadores. Um dos processos de que é autor conseguiu uma primeira vitória, quando responsabilizou-se Carlos Alberto Brilhante Ustra pelas 47 mortes ocorridas em decorrência das ações do DOI-CODI de São Paulo na época que comandava o órgão, no início dos anos 1970.

Por outro lado, a Folha critica o governo liderado por Fidel Castro igualando-o à ditadura brasileira. Uma comparação destas certamente não deixaria contentes os ditos “revolucionários” de 1964. Ora, uma das motivações dos golpistas era justamente o medo à revolução que vinha transformando a situação económica, política e social em Cuba. O temido “fantasma do comunismo” havia entrado na América Latina por meio da ilha caribenha e era preciso evitar que chegasse ao Brasil.

Em nome da luta contra a “a acelerada marcha do país para a anarquia” , a Folha apoiou a derrubada de João Goulart e os governos que se seguiram ao golpe. Esse jornal, tentando hoje esconder sua simpatia pela “ditabranda” brasileira, minimiza as atrocidades cometidas pela repressão brasileira e ataca a “ditadura” cubana, pois essa, mesmo com avanços e reveses, atacou frontalmente a burguesia e o imperialismo. No Brasil, o objetivo da ditadura foi massacrar o movimento de massas que vinha se mobilizando. Não apoiamos o regime cubano, quando este massacra revolucionários que lutam contra a política da burocracia que domina o Estado. Mas defendemos as conquistas que ainda resta da revolução cubana, diante dos ataques reacionários da burguesia e da imprensa tanto brasileira quanto dos demais países.

Luta pelo direito à memória, à história e aos arquivos

Os ataques da Folha de São Paulo a Comparato e Benevides não são apenas um desaforo a supostos apoiadores do governo de Fidel Castro. O jornal está atacando tanto o direito à memória e à verdade como as pequenas, embora importantes, vitórias conquistadas ao longo das últimas décadas, sobretudo por meio do ativismo de familiares e ex-presos políticos. Nesse momento, como o fizeram milhares de pessoas que assinaram o manifesto contra a Folha de São Paulo ou que se concentraram no ato na sede do jornal, faz-se necessário, diante dos ataques dos editores do jornal, defender Comparato e qualquer outro ativista dos direitos humanos que venha a ser atacado. Mais do que nunca, faz-se necessário continuar e ampliar a luta pela punição dos torturadores e pela imediata abertura dos arquivos da ditadura.

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