Sábado 4 de Maio de 2024

Teoria

Hungria, outubro de 1956

Homenagem aos 50 anos da revolução operária

10 Oct 2006   |   comentários

A criação do estado operário húngaro está diretamente ligada aos resultados da II Guerra Mundial, ou seja, das perspectivas abertas pela ordem de dominação de Yalta, um acordo do stalinismo e das nações imperialistas para dividir o mundo em duas “zonas de influência” . Aproveitando o ascenso revolucionário das massas nos anos imediatamente posteriores à guerra, que aterrorizou a burguesia mundial, e a presença do Exército Vermelho em todo o Leste Europeu, a burocracia soviética negociou o reconhecimento de sua influência sobre essa região fazendo com que o proletariado mundial pagasse um altíssimo preço: auxiliou direta e indiretamente a derrota das revoluções durante e depois da guerra.

Como resultado claro dos primeiros anos após a guerra, a URSS cumpriu o nefasto papel de sustentação do regime capitalista mundial, que nesse período estava extremamente dilacerado. Trotsky elaborou o seguinte prognóstico acerca desta questão, discutindo criticamente a “guerra da democracia contra o fascismo” :

Com um proletariado mundial que renuncia a uma política independente, uma aliança entre a União Soviética e as democracias imperialistas significaria o aumento da onipotência da burocracia de Moscou, sua posterior transformação em uma agência do imperialismo e o inevitável outogamento de concessões ao imperialismo na esfera económica.

Esse cenário político foi a base para o surgimento das “democracia populares” na Europa do Leste, o que o imperialista inglês Churchill chamou de “cortina de ferro” . Não podemos nesse artigo desenvolver todas as contradições da conformação de estados operários deformados, mas atentemos a outro prognóstico de Trotsky, que nos permite realizar uma definição dos profundos e extremamente contraditórios processos de conformação dos estados operários na Europa do Leste:

Sob a influência de circunstâncias completamente excepcionais (guerra, derrota, quebra financeira, pressão revolucionária das massas, etc), os partidos pequeno-burgueses, incluídos os stalinistas, possam ir mais longe do que eles mesmos querem na via de uma ruptura com a burguesia .

No entanto, o fortalecimento conjuntural do stalinismo não poderia passar à prova da história. Por exemplo, nos termos dos acordos do pós-guerras, a Hungria foi obrigada a pagar reparações à URSS e inclusive a sustentar o Exército Vermelho que se encontrava em seu território . Esse regime de opressão nacional em poucos anos assumiu uma dinâmica extremamente instável, mostrando como o fortalecimento do stalinismo e inclusive as condições que permitiram expandir o seu domínio mundialmente (1945-1948) haviam se esgotado.

De Berlim a Budapeste: o fio vermelho de 1917 percorre a história

Em fevereiro de 1956, o Vigésimo Congresso do PCUS condenou e atacou, sob a liderança de Khrushchev, o legado de Stálin, o culto à personalidade, os “excessos desnecessários” dos processos de Moscou (1936-1938) e levantou o slogan de “Volta à Lênin” . Claramente essa era uma tentativa do alto comando da burocracia stalinista, principalmente após a greve geral ocorrida em Berlim, sob a bandeira do “governo metalúrgico” , apenas alguns meses após a morte de Stálin, de assumir uma “auto-reforma” para que se mantivesse no poder.

O proletariado húngaro desafiou abertamente essa tentativa do regime: a revolução de 1956 é o ponto mais alto de uma série de processos iniciados também acompanhada com a insurreição de Poznan , na Polónia, no mesmo ano. Todos esses processos foram reprimidos duramente pelo exército russo, mas colocaram abertamente dois problemas fundamentais para os marxistas: a luta contra a opressão nacional por parte dos russos e a luta pela democracia operária contra a burocracia stalinista.

O processo revolucionário começou entre os dias 21 e 23 de outubro de 1956. Desde a greve geral na Alemanha Oriental, setores da intelectualidade húngara e da juventude universitária iniciaram uma série de “pequenas rebeliões” contra o PC . Mas foi somente em 1956 que o proletariado entra decisivamente em cena, expressando o seu profundo ódio à presença das tropas russas no país, começa a surgir nas fábricas assembléias que discutem os problemas de abastecimento, salários e a democratização dos sindicatos. Podem ser encontradas, como principais reivindicações, a supressão da pena de morte, o estabelecimento da liberdade de imprensa, a retirada das tropas soviéticas e a substituição de Matyas Rákosi por Imre Nagy na secretaria geral do Partido Comunista.

Nagy, representante de uma corrente reformista nacionalista, forma no final de outubro um novo governo, que o movimento de massas considera como uma conquista. Mas diferentemente de Nagy, preocupado em moldar o processo nos marcos de uma “auto-reforma” do regime, a classe trabalhadora dá tudo de si para aprofundar o processo revolucionário. As mobilizações de massas, os ataques às sedes do PC, os julgamentos populares contra os burocratas e dirigentes stalinistas e os ataques contra as tropas russas convergem em uma greve geral insurrecional que abalará profundamente o regime stalinista. Os conselhos operários se espalham por todo o país e criam, embrionariamente, um novo poder baseado no controle das fábricas e da produção, e também territorial.

Frente à pressão das massas. Nagy declara o abandono do pacto de Varsóvia, que subordinava o país à URSS. Não tarda a chegar a resposta dos russos: Nagy será preso e instaura-se o governo de János Kádár que buscava “negociar” com os conselhos enquanto abria e preparava a porta para uma brutal repressão do Exército Vermelho. Diziam os operários:

Camaradas, se o Partido Comunista quer continuar em seu papel dirigente deve proclamar imediatamente e com força tudo o que o povo húngaro reclama. Corresponde a nós e ao Partido Comunista pedir pública e oficialmente à Rússia e aos partidos comunistas amigos nossa imediata desvinculação do Pacto de Varsóvia e a retirada das tropas russas de nosso país... Os dirigentes soviéticos devem compreender que não podem transformar com as baionetas os sentimentos do povo húngaro, nem podem ganhar os jovens húngaros par ao marxismo-leninismo tentando transformá-los em russos.

Os conselhos operários, a dualidade de poderes e a revolução política

“Soldados! Vosso Estado foi criado ao preço de uma luta sangrenta para que tivésseis liberdade. Hoje é o 39º Aniversário dessa Revolução. Por que quereis esmagar nossa liberdade? Podeis ver que não são os donos de fábricas, nem os latifundiários, nem a burguesia, os que tomaram as armas contra vós, mas o povo húngaro que está lutando desesperadamente pelos mesmos direitos pelos quais lutastes em 1917” . Declaração dirigida aos soldados russos, Rádio Rackoczi, 7 de novembro

Em todas as partes devem formar-se Conselhos Operários. A tarefa dos Conselhos Operários é decidir cada questão relacionada com a produção, direção e cuidado das fábricas (...) A principal tarefa dos Conselhos é manter a ordem e a disciplina nos lugares de trabalho e retomar a produção. Devem defender com a ajuda de todos os operários sua vida comum e as fábricas (...), 28 de outubro

A classe operária húngara se colocou à frente de um levantamento contra a opressão nacional exercida pela URSS e contra a burocracia, com o desenvolvimento dos conselhos operários que se estenderam por todo o país e demandas que longe de defender a restauração capitalista, como afirmavam os burocratas soviéticos nas páginas do Pravda, sustentavam que deveria haver liberdade para os partidos que reconhecessem o regime socialista.

O desenvolvimento dos conselhos operários é o elemento mais avançado de todo o processo. Surgidos como uma iniciativa da própria burocracia dos sindicatos e da administração dos complexos industriais para conservar o controle sobre os operários, foram transformados em organismos de centralização da luta de massas do proletariado que, derrubando os burocratas, elegia os seus próprios representantes.

Os delegados operários, organizados em distintas seções, compunham um conselho de fábrica, que por sua vez se coordenavam através de conselhos de distritos. Seguindo esta forma de organização, surgiu o Conselho Central da grande Budapeste, que cumpriu um papel destacado frente a ausência de um organismo com alcance nacional e que também se pode comparar com o papel do soviet de São Petersburgo na revolução russa de 1905.

Quando os delegados do Conselho de Budapeste realizaram a leitura de suas reivindicações a Kádár, ele lhes respondeu: “Então o que vocês querem é um contra-governo” . Os conselhos operários foram exatamente os verdadeiros organismos de poder do proletariado em oposição ao poder da burocracia. O surgimento da dualidade de poderes colocava a seguinte alternativa: ou o proletariado e as massas oprimidas levavam o processo revolucionário até o final, derrubando a burocracia e instaurando a democracia operária dos conselhos, ou o núcleo duro da burocracia do PC húngaro, apoiando-se na força do exército soviético, derrotaria a classe operária, recrudescendo o seu domínio burocrático ao mesmo tempo em que expropriaria “pelo alto” algumas demandas do movimento revolucionário.

A segunda alternativa se impós: embora os conselhos lutassem na prática como organismos de poder operário, a sua estratégia foi a de pressionar a própria burocracia do PC para que se realizassem demandas que, em quase sua totalidade, atentavam contra ela própria. O primeiro “alvo” das massas foi Nagy que, mesmo tendo uma certa disposição para reformar o regime, implementou-os com pífios resultados. Similar estratégia não se alterou com o governo Kádár (ver quadro), já que os conselhos operários tentavam pressioná-lo para que negociasse com os russos a volta de Nagy e a retirada das tropas. Essa perspectiva estratégica dos conselhos os deixou impossibilitados para transformar a dualidade de poderes a favor do proletariado.

A ação revolucionária do proletariado húngaro foi heróica: criaram as suas próprias milícias e conselhos, estilhaçaram a burocracia e o Partido Comunista e os desafiaram abertamente colocando a questão do poder, que para os marxistas significa, nas condições colocadas para a URSS e a Europa do Leste, a revolução política. Levantaram a novamente a bandeira vermelha de 1917 e desafiaram a burocracia dirigente ao demonstrar na prática todos os principais elementos do programa da revolução política, desenvolvido a partir da luta das “Oposições de Esquerda” e, posteriormente, da IV Internacional. No entanto, a ausência de um partido revolucionário reunindo todas as qualidades do velho bolchevismo e, além disso, enriquecido pela experiência mundial dos últimos anos, tal como afirmou Trotsky em A Revolução Traída, não permitiu que se desenvolvesse uma ação consciente pela tomada do poder e que se colocassem as esperanças nas concessões em figuras como Nagy, representante de um setor da burocracia stalinista que defendia a auto-reforma.

Nos 50 anos do outubro de 1956, nós marxistas devemos levantar com toda a força a bandeira da revolução proletária internacional: Viva da revolução húngara de 1956 e os seus mártires!

Os imperialistas e a “luta pela liberdade”

O imperialismo, em 1956, buscava confundir o proletariado no Ocidente realizando uma propaganda reacionária: tratavam os revolucionários húngaros como “defensores da liberdade” . Nestes 50 anos da revolução, até a Secretaria de Estado (EUA) C. Rice discursou em favor da revolução húngara, seguindo os passos do presidente Kennedy em 1957. Nada mais falso, pois os acordos de divisão do mundo com a URSS tinham como pilar fundamental a “coexistência pacífica” . Reproduzimos aqui qual era o verdadeiro espírito dos operário poloneses, que assim como os húngaros, combateram a burocracia stalinista com base na defesa das conquistas da revolução proletária:

“Combatemos a todos que tem a impressão de que nossa democratização é uma primeira etapa no retorno à democracia burguesa. No curso da campanha eleitoral realizamos uma agitação favorável aos candidatos que sabemos querer construir o socialismo, mas um socialismo em cujo seio se viva mais livremente, mais democraticamente do que hoje em dia” . Carta dos operários da fábrica Zerán de Varsóvia ao Comitê Central do Partido, reproduzido de La Verité, 27 de outubro de 1956.

Resolução do Conselho Operário do 11º Distrito de Budapeste

12 de novembro de 1956

“Os trabalhadores representantes dos operários das fábricas do Distrito decidiram unanimemente que no interesse da construção socialista da Hungria e do futuro do povo húngaro, estão dispostos a reassumir o trabalho nas seguintes condições:

1. Queremos sublinhar que a classe operária revolucionária considera que as fábricas e as terras pertencem ao povo trabalhador;

2. O Parlamento Operário reconhece o regime de Kadar como parte das negociações, supondo que o governo, para assegurar sua própria legalidade, procederá a reorganizar-se de acordo aos desejos do povo;

3. O povo depositou sua fé nos Conselhos Operários para assegurar que se realizará o desejo do povo; demandaremos que se estenda a autoridade dos Conselhos Operários no campo económico, cultural e social;

4. No interesse da preservação da ordem e do restabelecimento da paz, demandamos que se fixe data para eleições livres nas quais só poderão participar aqueles partidos que reconhecem e sempre reconheceram a ordem socialista, baseada no princípio de que os meios de produção pertencem à sociedade;

5. Demandamos a imediata libertação dos membros do governo de Imre Nagy que foi eleito pela revolução, assim como a liberdade de todos os combatentes;

6. Demandamos que se ordene imediatamente o cessar fogo, assim como a pronta retirada das tropas soviéticas de Budapeste, visto que as autoridades húngaras podem assegurar a ordem com a força de trabalho; e demandamos que tão logo os operários tenham reassumido o trabalho, o governo húngaro abra negociações para a retirada gradual e ordenada das tropas soviéticas do território do país, e mantenha o povo informado do progresso das negociações;

7. A força policial deve ser organizada com os trabalhadores honestos das fábricas e com as unidades de exército leais ao povo.

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