Segunda 29 de Abril de 2024

Internacional

Como era o jornal Charlie Hebdo?

11 Jan 2015   |   comentários

Charlie Hebdo ainda era um jornal verdadeiramente satírico, pós-68, radicalmente irreverente ? Ou foi um jornal que foi mudando com os anos?

Esse é um debate anterior a criação da “Frente republicana" e a instrumentalização cínica por parte do governo de Hollande assim como por Sarkozy e seus aliados do assassinato de dez jornalistas, cartunistas e funcionários da redação. Nestes últimos dias, logo após o atentado na rua Nicolas-Appert, onde se situava o jornal Charlie Hebdo, uma espécie de linha divisória separa a duas gerações militantes.

Charlie Hebdo ainda era um jornal verdadeiramente satírico, pós-68, radicalmente irreverente e uma referência em toda a esquerda, mesmo com todos os limites que a esquerda "realmente existe" possa ter? Ou, ao contrário, foi um jornal que foi mudando com os anos, nas águas turvas da "esquerda" republicano-laica e islamofóbica?

Nas manifestações que vem ocorrendo desde a noite do massacre, eram nítidos dois grupos. Aqueles para quem Charlie era um sucessor de Hara Kiri, o jornal satírico violentamente anti-gaullista inclusive frente a morte do General, um jornal que, frente a sua volta as bancas em 1992, tira sarro tanto contra Miterrand e a falsa esquerda, como contra o círculo do ex-presidente Chirac e seus amigos, com Pasqua(histórico Ministro de Chirac) e os CRS(tropa de choque da polícia francesa); um Charlie sem piedade pelo Partido Comunista Francês quando este se lança na aventura(desastrosa) da Esquerda Plural junto com o ex primeiro-ministro Lionel Jospin em 1997; um Charlie que denuncia as aventuras militares francesas no estrangeiro, disparando balas vermelhas sobre a extrema-direita e seus objetivos, contra os reacionários de todas as cores; um Charlie que, sem esconder certas críticas, apoiou também parcialmente a campanha LO-LCR nas eleições de 1999(LO- Luta Operária e LCR - antiga Liga Comunista Revolucionária, organização que deu origem ao atual NPA - Novo Partido Anticapitalista. Tratam-se das duas principais organizações trotskistas da França na época, em que formaram uma frente para disputar as eleições no país).

Por outro lado, estávamos os que a partir de 2002 deixamos de comprar o jornal, e os mais jovens, que só conhecia o jornal enquanto parte da imprensa "normal".

Pós 11 de setembro

Charlie se compunha de uma redação heterogênea, formada por um passado de esquerda. Mas os compromissos passados não são sempre uma garantia de que se irá conservar uma linha editorial ácida, subversiva e libertária, eternamente. E Charlie foi mudando de acordo com as conjunturas políticas, assim como ocorreu com as organizações de esquerda e extrema esquerda com as quais seus jornalistas tinham ligação. Uma esquerda fortemente afetada pelas mutações geopolíticas internacionais após os atentados de 11 de setembro, quando Jospin-Buffet-Voynet, o governo do Partido Socialista, Partido Comunista e os "Ecologistas", decidem seguir os passos de George Bush no Afeganistão. Frente aos impactos do fato, Charlie não deixou de ser afetado.

Entre os militantes mais jovens, ou entre os que deixaram de comprar o jornal naquele momento, muitos relembramos as edições de 2002, a de junho, por exemplo, assinada por Philippe Val, que na época era chefe de redação, atacando violentamente Noam Chomsky por ser "um dos norte-americanos que mais detestam os Estados Unidos, e um dos judeus que exercem uma crítica contra Israel cada vez mais aguda na medida que acredita que por ser judeu pode escapar da acusação de anti-semitismo"; ou, talvez, aquela de novembro de 2002, de Robert Misrahi, que prestava homenagem a Orianna Fallaci. Mas não a jornalista autora da biografia do grande poeta grego Alekos Panagoulis, mas sim a que escreveu "A raiva e o Orgulho", na qual escolhe o lado dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo.

O apoio a Israel e suas caricaturas

Val não para por aí e continua em 2006, durante a ofensiva de Israel contra o Líbano que "se alguém olha o mapa do mundo, quando se dirige para o Leste, mais além das fronteiras da Europa, da Grécia, o mundo democrático acaba. Somente existe um pequeno local avançado no Oriente Médio: o Estado de Israel. E então, nada até o Japão(...) Entre Tel-Aviv e Tóquio reinam poderes arbitrários cuja única maneira de manter-se no poder é alimentando em populações com 80% de analfabetismo um grande ódio contra o Ocidente".

Alguns meses antes, logo após que Charlie tinha republicado as caricaturas de Maomé produzidas por eles originalmente para o jornal conservador dinamarquês Jyllands-Posten, Val, um dos organizadores do "Manifesto dos 12", assina ao lado de, entre outros, Bernard-Henri Lévy e Ayaan Irsi Ali, cenógrafa de "Submissão" - curta-metragem anti-islâmico de Theo Van Gogh. Pode ser lido no "Manifesto", publicado no Charlie, que depois de "ter vencido ao fascismo, ao nazismo e ao stalinismo, o mundo tem que enfrentar a uma nova ameaça global e de tipo totalitária: o islamismo". Os assinantes reivindicam as virtudes do pacifismo. "Esta luta, afirmam, não será ganha pelas armas, senão no terreno das idéias. Não se trata de um choque de civilizações ou de um antagonismo Ocidente-Oriente, mas sim de uma luta global que opões democratas aos teocratas’’. Este texto, publicado no momento em que prosseguia a ocupação imperialista no Afeganistão e Iraque, não engana ninguém com seu suposto pacifismo.

Entre a complacência e a cumplicidade

Não é a publicação das caricaturas de Maomé em 2006 que faz de Charlie Hebdo um jornal pouco recomendável aos anti-racistas, nem mesmo suas publicações no contexto singular da "cruzada imperialista" pós 11 de setembro. O problema não são as piadas sistemáticas contra os islâmicos, caricaturados como seres barbudos, nem as mulheres com niqab, que encontramos em cada edição. Tampouco o problema são as charges com os judeus e os judeus ortodoxos, ou os católicos tradicionais. Um diário satírico de esquerda que nunca escondeu sua forte crítica as Igrejas não tem porque censurar-se. E muito menos é o papel da extrema esquerda advogar pela auto-censura.

O problema se situa no fato de que, assim como uma parte da esquerda radical e da extrema esquerda francesa, Charlie fez, da defesa da laicidade, uma nova religião, e nesse caminho renunciou a toda delimitação política. O problema se situa a partir do momento que a sátira, que necessita ser profundamente irreverente, se transformou, precisamente, em uma linha política escorregadia ao sionismo, em nome da luta contra o ’’obscurantismo muçulmano’’ e ainda mais compatível, com o passar do tempo, com a idéia de unidade ’’da civilização’’ contra ’’a barbárie’’.

Caso encerrado

Hoje, nas circunstâncias mais trágica e abomináveis, esse caso é encerrado. Os jornalistas não estão mais presentes para defender seu jornal, cuja trajetória não pode reduzir-se as mudanças pós-2001 e cuja história não pode ser enxergada apenas após a passagem completa de seu redator, Philipe Val, ao campo do "sarkozismo". Seria, isso sim, "caricaturar", não somente o que foi o jornal durante muitos anos, mas também o que foram seus leitores.

A história da imprensa satírica de esquerda francesa está cheia de exemplos de jornais que não puderam resistir a tentação. É o caso de "Guerra Social’’, de Gustave Hervé, jornal anti-militarista transformado em social-patriota em 1914, do qual nasce " Le canard enchaîné".

A França, nos dias atuais, "está em guerra", segundo o primeiro ministro Valls; está em guerra "contra o terrorismo" e "por nossos valores". Para a burguesia, as primeiras batalhas foram ganhas, com grande vantagem. 88 mil policiais, com todas as televisões e os meios de comunicações juntos para perseguir e matar a três assassinos. É suficiente para apagar da memória o assassinato de Rémi Fraisse.

O outro terreno de combate é o próprio Charlie Hebdo. Hoje em dia, todo mundo é "Charlie": da bolsa Nasdaq até Nova Iorque, passando pelo Google, que fez uma doação de 250 mil euros para reativar o jornal, até o governo, prometendo financiá-lo com milhões de euros. Ter um jornal da "tradição de 68" para expandir a política do governo, é sempre melhor que a Imprensa Oficial.

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