Sábado 27 de Abril de 2024

Cultura

Após dez anos, Sleater-Kinney lança "No cities to love"

07 Feb 2015   |   comentários

Dez anos depois, Sleater-Kinney está de volta, mostrando que sua música ainda tem um chão a percorrer. Em “No cities to love”, o oitavo disco da banda, elas mostram que seu ódio pelo estado de coisas dessa sociedade patriarcal, machista e capitalista não se desvaneceu.

We win, we lose
Only together do we break the rules
We win, we lose
Only together do we make the rules

- Sleater-Kinney, “Surface Envy”

O berço da banda de rock Sleater-Kinney foi o movimento das Riot Grrrls na década de 1990. Cansadas de ver o cenário do rock dominado por homens apenas, uma geração de jovens mulheres tomou para si a música como forma de gritar – literalmente – sobre seus problemas. Questões como aborto, violência contra as mulheres, temas políticos e ativismo de esquerda preenchiam as músicas furiosas das Riot Grrrls. Como nos primórdios do punk, para as Riot Grrrls a música era um grito de rebeldia contra o mundo; era crua, rasgante, sem se importar se soaria bem aos ouvidos da sociedade contra a qual se lançavam.

O centro do movimento era Olympia, no estado de Washington. As mulheres, organizadas em suas bandas, também fizeram do movimento Riot Grrrl uma cultura que ia além da música, organizando fanzines, organizações de mulheres, discussões feministas. Seus principais expoentes foram bandas como Bikini Kill, Bratmobile e L7. Tobi Vail e Kathleen Hanna formaram, em 1989, o fanzine feminista Jigsaw – no qual se criou o termo Riot Grrrl (que poderia ser traduzido por algo como garota revoltada, fazendo um trocadilho com a onomatopeia “grrr” e a palavra “girl” – garota), e posteriormente a principal banda do movimento, Bikini Kill e um fanzine de mesmo nome.

Nesse momento, Corin Tucker fez parte da linha de frente do movimento com sua banda Heavens to Betsy. Carrie Brownstein, por sua vez, fez parte da banda Excuse 17. Alguns anos depois, em 1994, as duas formaram a Sleater-Kinney que, após uma série de bateristas, se estabeleceu com Janet Weiss. Corin e Carrie alternavam-se nos vocais e ambas tocavam guitarras afinadas em uma entonação mais grave (Ré Bemol), o que permitia que o baixo, ausente na banda, fosse suprido, principalmente pela base desempenhada pela guitarra de Tucker.

Fazendo parte do último período do movimento Riot Grrrl, Sleater-Kinney levou adiante os temas feministas e políticos. Contudo, a banda foi além do próprio movimento. Entre 1994 e 2002 gravou seus seis primeiros discos, fiel ao estilo rasgado das Riot Grrrls. A partir de 2003, já como uma banda famosa nos Estados Unidos, elas participaram da turnê do Pearl Jam abrindo seus shows. Essa experiência foi decisiva para a virada que representaria seu próximo disco, “The Woods”, de 2005. As experimentações que fizeram no palco consolidaram-se em um disco mais denso, experimental, que, sem deixar de lado a fúria visceral e os temas políticos e sociais, deu ao som da banda uma marca própria mais profunda e vigorosa. Talvez tenha sido por atingir um patamar que parecia difícil de ultrapassar que a banda decidiu, em 2006, por um “hiato indefinido”.

Dez anos depois, Sleater-Kinney está de volta, mostrando que sua música ainda tem um chão a percorrer. Em “No cities to love”, o oitavo disco da banda, elas mostram que seu ódio pelo estado de coisas dessa sociedade patriarcal, machista e capitalista não se desvaneceu. “Price Tag”, por exemplo, que abre o disco, é uma crítica à sociedade de consumo, ao trabalho alienado, ao ritmo brutal que a sociedade do lucro impõe:

It’s 9am
We must clock in
The system waits for us
I stock the shelves
I work the rows
(...)
We never really checked
We never really check the price tag
When the cost comes in
It’s gonna be high
We love our bargains
We love the prices so low
With the good jobs gone
It’s gonna be raw

(São nove da manhã
Temos que bater o cartão
o sistema nos aguarda
eu estoco nas prateleiras
arrumo os corredores
(...)
Nós nunca realmente olhamos
Nunca olhamos para o preço
Quando o custo chegar
Ele vai ser alto
Nós amamos nossas pechinchas
Nós amamos os preços tão baixos
Com o fim dos bons empregos
Será nu e cru)

É nítido o sentimento de urgência e a influência da crise econômica que chacoalhou os EUA nas novas músicas. Segundo Corin Tucker, ela procurou em “Price Tag” mostrar a realidade de “alguém que trabalha em um emprego em troca de um salário mínimo e tenta conseguir sustentar as necessidades de sua família”. Diz querer retratar “a luta econômica que considero estar acontecendo na América”, e que falar dela de uma forma que consiga atrair as pessoas, fazê-las se sentir parte dela, torna essa mensagem muito mais forte. É uma realidade das mulheres trabalhadoras, não apenas nos EUA, mas no mundo inteiro. Musicalmente, as guitarras e vocais de Corin e Carrie continuam procurando novas formas, tentando fugir da fórmula fácil de fazer sempre mais do mesmo, como é com a maioria dos grupos e, particularmente, com os que obtém sucesso, já que a indústria fonográfica seguirá exigindo “novos sucessos” para gerar lucro.

Dessa forma, Sleater-Kinney mantém o fundamental para os artistas: sua independência, em todos os sentidos. Se voltaram a gravar após um intervalos de dez anos, isso não foi por um ímpeto de “caça-níquel”, de requentar velhas músicas e ganhar mais dinheiro repetindo o que já haviam feito, mas sim porque sentiram desejo e necessidade de fazer sua arte e dizer algo. Toda sua trajetória anterior lhes dá muito orgulho, assim como de ter feito parte de um dos últimos movimentos musicais dessa época que realmente teve algo a dizer e a mudar no mundo. No entanto, o que elas procuram é algo novo; a arte perde o sentido quando se transforma em uma mera repetição de padrões, pois então se torna mecânica, rotineira, perde qualquer potencial criador, contestador, transformador. Essas mulheres, que fizeram parte da luta feminista no rock, sabem disso. O que procuram é uma forma autêntica de expressar aquilo que elas ainda têm a dizer. E é realmente incrível ver que, após oito discos e vinte anos, elas ainda conseguem se reinventar utilizando nada mais do que suas guitarras, uma bateria e suas vozes. O jogo de sons que são capazes de fazer, a inventividade de seus riffs e letras é surpreendente.

Nesse mesmo sentido é muito poderosa a forma como, mesmo tendo sido linha de frente do movimento Riot Grrrl, a Sleater-Kinney nunca se apegou ao rótulo de uma “banda de rock de mulheres”, pois, como disse Carrie, sempre tentaram existir “para além dessas definições”. Assim, por mais que a música crua e rude das Riot Grrrls seja parte de sua história e constituição, Sleater-Kinney procura ser mais do que isso. Carrie afirma que “é muito raro que uma banda de homens seja questionada ‘por que vocês são uma banda só de homens?’, essa é uma pergunta que nunca foi feita”. Essa forma de encarar sua participação na luta pela independência feminina, por sua participação no rock nos trás uma analogia muito interessante para pensarmos a luta das mulheres como um todo, em que, ao mesmo tempo que se faz necessário uma reivindicação do gênero na luta contra o machismo e a opressão, a perspectiva é que essa identidade se dissolva na conquista efetiva da igualdade plena.

Seu disco vem sendo aclamado pela crítica e apontado por muitos como “o melhor” de sua carreira. Quanto a isso, deixamos para cada um julgar em meio a uma obra já considerável de uma banda que merece ser muito mais reconhecida e ouvida. De meu ponto de vista, não parece nem um pouco exagerado o julgamento do crítico Greil Marcus que, em 2001, afirmou na revista Time que Sleater-Kinney era “a melhor banda de rock da América”. O que é interessante é que parece ser algo unânime entre elas que não há muitos herdeiros de seu caminho. Janet Weiss afirmou em entrevista à PBS que sentia falta da “urgência” que ela possuem como banda em outros grupos musicais, e que “muitas músicas provocavam um sentimento de que eram como abraços, reconfortantes, suaves, não-ameaçadoras, e eu não me envolvo tanto com esse tipo de música quanto com esse tipo de música muito visceral, física.”

Faço minhas as palavras de Janet. Que o rock visceral de Sleater-Kinney possa servir de combustível paras as novas lutas, e que as novas lutas possam abrir caminho para bandas com a mesma força e vitalidade que Sleater-Kinney.

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