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Cultura

Aos vinte anos de Pieces of You, de Jewel

25 Feb 2015   |   comentários

Há vinte anos atrás uma jovem do remoto estado americano do Alasca, de apenas 20 anos, com o exótico nome de Jewel (jóia, em inglês) lançava seu álbum de estreia, “Pieces of You”.

I’m a modern day troubadour trying to find justice with six strings
Trying to make the world make sense out of me
Trying to be loved completely, trying to love honestly

(sou uma trovadora moderna procurando justiça com seis cordas
Tentando fazer o mundo fazer sentido para mim
Tentando ser amada por completo, tentando amar honestamente)

- Stephenville, TX. Goodbye Alice in Wonderland.

Há vinte anos atrás uma jovem do remoto estado americano do Alasca, de apenas 20 anos, com o exótico nome de Jewel (jóia, em inglês) lançava seu álbum de estreia, “Pieces of You”. Era um disco que parecia ter tudo para ficar relegado ao esquecimento, ou circular de forma restrita entre um pequeno público de fãs de música folk tristonha. Afinal, era uma época em que a indústria musical movimentava uma quantidade imensa de capital, e os músicos, inclusive os iniciantes, contavam com uma produção impressionante para tornar sua música “vendável”, ao gosto do público ou, melhor dizendo, ao gosto que a indústria musical moldou no público. Nesse contexto, uma menina com um violão canta suas tristezas e angústias. Não era exatamente uma “fórmula de sucesso” comercial.

Nos idos de 1995, a revolução musical da internet que se consolidou com força com a popularização do Napster, tornando uma prática comum em todo mundo a difusão gratuita e “ilegal” de música pela internet, ainda não havia surgido e ameaçado os exorbitantes lucros das gravadoras. Ainda não existia, como hoje, uma possibilidade maior (ainda que mesmo hoje esta seja muito restrita perto do enorme capital da indústria cultural) de independência musical dos artistas, que passaram a partir do início desse século a ter novas formas de procurar seu público, seja com gravadoras menores ou mesmo colocando por conta própria sua produção na internet – como seria com o avassalador fenômeno dos Strokes no início da década seguinte, mostrando que era necessário repensar a forma de difusão da produção artística.

Em um contexto que antecedia todas essas possibilidades, a jovem Jewel conseguiu assinar um contrato com a Atlantic Records e gravar um disco que, em 58 minutos, reunia 14 faixas de um som intimista, de forte carga emotiva, e com faixas que eram quase todas apenas gravações muito simples de Jewel cantando com seu violão. Nada mais que isso, mesmo contanto com a produção de Ben Keith, que trazia em seu currículo a produção de Neil Young. Quando lançado, “Pieces of You” correspondeu a essa previsível expectativa, e não fez barulho algum. Mas, em 1996, quando foi lançado seu primeiro single, “Who will save your soul”, Pieces of You explodiu, fazendo com que, exatamente dois anos após seu lançamento, “Pieces of You” chegasse ao quarto lugar na Billboard 200, um dos mais importantes “medidores de sucesso” (lucro) da indústria fonográfica. Foi um dos álbuns de estreia mais vendidos de todos os tempos, alcançando a marca de mais de 12 milhões de cópias vendidas apenas nos EUA. Obviamente, foi por fruto de seu tardio sucesso de vendas, e não por qualquer de suas qualidades, que o disco foi incluído entre os “200 definitivos” do “Rock and Roll Hall of Fame”, (mesmo que seja bem difícil classificá-lo como um disco de “rock”).

O sucesso de Jewel é um fenômeno curioso. Ela nasceu em uma família que se mudou para o Alasca como “pioneiros”, com a política do governo americano de dar terras aos que se propusessem a “colonizar” terras pouco habitadas do território americano (política conhecida pelo nome de “Homestead” e que foi utilizada muito na colonização do oeste americano no século XVIII, colocando os homesteads contra os índios nativo-americanos). Sua carreira musical se iniciou cedo, ao lado do pai, cantando em bares sujos do Alasca. Passou, depois, algum tempo morando em uma van e vivendo de shows, até assinar seu contrato com a Atlantic.

Sua música mistura letras que falam de amor, abandono, solidão, saudades; temas muito comuns da música pop. Há também com alguma frequência algum tipo de denúncia social, em geral mesclado a uma certa dose de espiritualismo, de incitamento à bondade e a uma vida distante dos padrões do individualismo, do consumismo, do imediatismo e outros valores tão presentes nesse capitalismo degradado em que vivemos. Mas a força assustadora que a música de Jewel tem em seus bons momentos vem do fato de que, em uma época de tantas produções musicais “pré-fabricadas”, ao gosto do mercado, feitas sob encomenda para “estourar” entre os adolescentes, é impossível deixar de sentir a intensidade e autenticidade das composições de Jewel e da forma como canta. Sua bela e poderosa voz transmite, às vezes mesmo cantando uma ingênua e tola canção de amor, a intensidade de quem vive por, pela e para sua arte. E, se é verdade que em discos posteriores, particularmente em seu sexto álbum “0304”, Jewel chegou a se confundir com mais um produto pop padronizado, não se pode dizer isso de seu impressionante disco de estreia.

Há algo de impactante na dolorosa ingenuidade que destila sua tristeza nos acordes de “Pieces of You”. A música que nomeia o álbum (mas que não foi um dos grandes sucessos comerciais do disco) é uma das que mais expressa essa marca. Tratando do machismo, homofobia e antissemitismo, a música não apresenta uma visão política da questão, mas sim um sentimento doloroso de quem sofre por viver em um mundo onde há intolerância e ódio contra quem, de acordo com a letra, mostra àqueles que odeiam os pedaços de si mesmos que eles não desejam ver ou conhecer. Fala do ódio que é uma máscara, que é a aversão àquilo que se reprime. A mesma dor diante do mundo, a dor de alguém que perde sua ingenuidade ao ver no mundo motivos para questionar os valores e os preceitos que esta ensina dia após dia, está presente na primeira música escrita por Jewel quando ela tinha 16 anos, durante e após sua viagem pegando carona pelo México: “Who will save your soul”. Misturando uma espécie de sutil pregação moralista-cristã com a crítica social, a música fala sobre a hipocrisia de uma sociedade que oprime e esmaga. E a assustada conivência e cumplicidade de tantos que são esmagados, mas também esmagam, por desespero.

Essa mesma tristeza profunda aparece em músicas que falam de temas íntimos, como a rejeição amorosa em “foolish games” ou a dilacerante angústia de ver alguém que se ama viver em coma em uma cama após um trágico acidente, na comovente canção “Adrian”. É essa força imensa, comovente, que Jewel é capaz de colocar em suas canções, que faz de “Pieces of You” um disco que merece ser lembrado, aos vinte anos de seu lançamento. Jewel continua cantando e fazendo sua arte, sempre na corda bamba, no dilema de uma artista que procura olhar para o mundo com os olhos de quem não simplesmente aceita as coisas como são, mas que não deixa de ser uma queridinha do pop, submetida a todas as pressões da sempre presente possibilidade de transformação de sua música em apenas uma mercadoria a mais para gerar lucros.

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