Sexta 19 de Abril de 2024

Cultura

A beleza real pelos traços de Negahamburguer

02 Mar 2015   |   comentários

Os desenhos de Negahamburguer, de forma simples, passaram a dar força para que mulheres aceitem seu corpo.

"Os momentos que vivi e que serão relatados foram frutos de uma mentalidade machista que convivi ao longo dos anos. Para muitos homens (e muitas mulheres), a mulher é obrigada a ser perfeita, bonita, cheirosa, e, ainda por cima, ter atitudes exemplares na sociedade."

Me vejo falando que não deixo mais os meus braços muito magros aparecerem em fotos, em resposta recebo o “Beleza Real”, de Negahamburguer. Negahamburguer surgiu para os olhos do público na internet com as suas ilustrações. Suas personagens femininas (que recebem o nome de Negahamburguer) com corpos e formas reais falam contra a imagem feminina idealizada e trazem à tona a beleza de um corpo real. Após atrair o interesse de um público, conseguiu lançar através de um crowndfudding sua obra, o livro que tenho agora em mãos.

​Negahamburguer é na verdade Evelyn Queiróz, ilustradora que leva sua arte a muros, telas, redes sociais e livros. Nas redes sociais sua arte se tornou um alento às mulheres que têm sua auto-estima devastada por campanhas publicitárias e todo um sistema que torna o corpo feminino – principalmente, mas não só ele – um produto que deve estar dentro de um padrão para ser aceito. Os desenhos de Negahamburguer, de forma simples, passaram a dar força para que mulheres aceitem seu corpo. Parte dessas mulheres passaram a buscar Evelyn, e contar suas histórias de vida e o quanto as ilustrações dela ajudavam-nas a superar os dramas que os seus corpos traziam. E foi isso que a estimulou a montar sua obra: "Durante o ano de 2013 passei a receber, através da internet, muitas histórias de pessoas que se identificavam com as ilustrações da Negahamburguer - personagem que incorpora valores de uma beleza real e se opõe aos padrões estéticos e de gênero estabelecidos na sociedade atual. Estes valores são reproduzidos pela mídia e em sua maioria estimulam preconceitos e violência. Ao longo desse período, me deparei com um grande volume de material e senti a necessidade de criar um projeto que evidenciasse as dificuldades diárias das mulheres que me mandam seus relatos, retratando histórias que as marcaram profundamente.”

​Apesar dos belos traços e da simpatia que cada Negahamburguer invoca, Evelyn não faz uma arte que quer ser apenas "bonitinha". As ilustrações dela são questionadoras, transformadoras, e revelam um corpo que existe para além das campanhas publicitárias, um corpo imperfeito e belo. O livro "Beleza real" encanta e choca; a primeira história com a qual nos deparamos é a de uma mulher que aos 13 anos foi estuprada, e relata o que ocorreu de forma crua. A Negahamburguer desse relato aparece com o sangue entre as pernas e o pulso fechado erguido. Apesar de tudo, a força de enfrentar, de voltar, de ressurgir com força.

​Cada Negahamburguer virá com a sua história, um relato pequeno, mas denso, de mulheres reais que sofreram com a exigência do corpo perfeito, as opressões por não estarem dentro dos padrões aceitáveis, por serem mulheres em um mundo machista e capitalista que transforma o corpo em um produto, industrializa o corpo feminino e o expõe como ele deve ser - segundo a lógica do lucro - em grandes outdoors, revistas e comerciais.

​Encontramos entre os relatos mulheres que foram oprimidas em relações amorosas abusivas onde seus parceiros exigiam delas a perfeição e as torturavam lembrando-as de cada defeito que eles enxergavam nelas e as diminuindo através disso. Não são só os parceiros que trazem essa exigência, é muito comum também que mães queiram que as filhas tenham o corpo ideal desde muito cedo, impondo a elas dietas malucas, comentários e humilhações que aumentam uma insegurança que a sociedade por si só já causaria a essas meninas. Mães que querem das filhas aquilo que elas foram ensinadas a buscar a vida inteira. Além disso, é surpreendente notar ao longo das histórias dessas mulheres que os traumas são vindos de uma idade muito nova: aos 9, 12, 17 anos as mulheres já sofrem em casa, na rua ou na escola. A crueldade desse preconceito não respeita nem a infância. Em realidade, não respeita nada, é um preconceito tão cruel a ponto de ser direcionado a mulheres carecas durante o tratamento contra o câncer, que são obrigadas a escutar comentários de como era “feio” elas se exibirem assim. Não há respeito nenhum pelo outro e pelo o que se pode fazê-lo sentir.

A sociedade impõe à mulher uma busca por uma perfeição impossível e inexistente. Às gordas exigem que elas emagreçam, às magras que elas engordem. Essa situação é posta em varias das histórias presentes nos livros, a ponto de um dos relatos ter o título: "Gorda era ruim. Magra era ruim." E mesmo quando perfeita fisicamente ao olhar da sociedade, é necessário que a mulher seja diminuida de alguma forma, surgem daí os sensos comuns que dizem: "tão bonitinha e tão burrinha". E é um erro pensar que isso é algo individual. Essa imposição à mulher de que ela seja perfeita, dentro dos padrões, dá lucro aos capitalistas que tentam vender todo tipo de coisa para facilitar essa busca pela padronização do corpo feminino, que torna-se um objeto a ser vendido tambem. A lógica do mercado é vender às mulheres todos os produtos para serem perfeitas para, então, se tornarem aceitas como objeto sexual - único papel que, segundo a sociedade, a mulher pode ocupar.

A exigência da perfeição não é só física, há também a exigência de que o comportamento seja "aceitável". A roupa que deve ser usada, quando se deve fazer sexo, o julgamento à "mãe solteira" quando na palavra de uma das personagens é ’um absurdo a expressão "mãe solteira". No que ser mãe está relacionado com o fato de ser ou não solteira?’ Enfim, todo um arsenal para diminuir a mulher e restringí-las ao ambiente doméstico, o único ambiente ao qual a sociedade diz que elas pertencem.

A sociedade planta nas mulheres a insegurança, a baixa auto-estima, e as diminui causando grandes sofrimentos, que levam muitas dessas mulheres oprimidas a pensarem em dar uma saída individual. É recorrente em meio aos relatos encontrarmos mulheres que se feriam e que tentaram ou pensaram em tentar o suicídio. Aqui temos os relatos daquelas que estão enfrentando ou enfrentaram essa opressão, mas há aquelas que não conseguiram enfrentar - não por falta de força.

Todas essas opressões e preconceitos servem para a manutenção do patriarcado e do capitalismo; para que a burguesia se mantenha no poder. Elas atuam para a diminuição e enfraquecimento de uma classe. E quando é ensinado aos homens reproduzirem essa ideologia, se divide uma classe inteira que se perde se odiando quando deviam se unir contra a burguesia que cria essa ideogia sempre visando seu lucro e manutenção como classe dominante. É nesse marco que a arte de Negahamburguer se torna importante. Quando ela enaltece o corpo feminino como ele realmente é, ela dá força a mulheres que estão perdidas em uma busca desnecessária pelo padrão imposto. Pode parecer ingênuo dizer que apenas uma ilustração pode fortalecer uma mulher, mas quando um indivíduo que foi ensinado a ser reconhecido apenas pela sua aparência se reconhece belo, ele se fortalece e passa a conseguir se colocar como sujeito; e Negahamburguer consegue isso.

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