Segunda 29 de Abril de 2024

Teoria

A luta de classes e os marinheiros no pré-1964: uma tentativa de resistir ao golpe*

09 Feb 2007   |   comentários

Nos anos anteriores a 1964, junto ao ascenso operário e popular, ocorriam fraturas na base das Forças Armadas. Este processo teve um desenvolvimento marcante entre os marinheiros antes do golpe e ficou conhecido pela “Rebelião dos Marinheiros” . Este processo e a rebelião trazem à tona, enquanto tendências, questões estratégicas à classe operária internacionalmente.

A “Rebelião dos Marinheiros” foi um levante dirigido pela Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) que ocupou o Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara de 25 a 27 de março. O levante criou divisões e rupturas nas Forças Armadas. Isto é desconhecido pela classe operária. Também são desconhecidos os elementos embrionários de auto-organização e duplo poder na Marinha [1] , a vontade dos praças em forjar uma aliança com a classe operária e sua tentativa de resistir ao golpe.

Esta história e suas lições foram criminosamente apagadas. O Partido Comunista Brasileiro, que dirigia a maioria dos sindicatos e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), cumpriu um papel criminoso como direção da classe operária, e ainda hoje intelectuais e importantes dirigentes e quadros do PT e outros partidos, forjados nesta experiência, distorcem e escondem o que ocorria entre os marinheiros para justificar sua estratégia de conciliação de classes. Nós revolucionários precisamos arrebatar o conhecimento de nossa história das mãos destes senhores para fundamentar para a classe operária a necessidade e lições históricas para uma estratégia revolucionária.

A luta de classes e a AMFNB

A AMFNB surgiu em 1962 no bojo do ascenso operário e popular. Ela organizava baixas patentes (da 1ª à 4ª de 16) e conseguiu o apoio das massas dos marinheiros. Dois fatores fundamentais, entrelaçados, marcaram-na: o ascenso operário e as condições de vida e trabalho dos marinheiros.

O ascenso operário e popular se expressava, por exemplo, no ascenso grevístico desde final dos anos 50, crescentes lutas camponesas e sua expressão nas Ligas Camponesas, e por rebeliões na base das Forças Armadas. Os marinheiros faziam parte do processo: organizaram-se de forma similar a um sindicato, suas aspirações e limites eram diretamente influenciados pelo ascenso, muitos liam o jornal das Ligas, por exemplo.

O segundo motor cruza-se com este. A Marinha estava marcada por um profundo antagonismo entre oficiais e marinheiros [2] , os primeiros vindos das classes dominantes e os praças dos setores mais empobrecidos, sobretudo do campo nordestino. O Almirantado era parte integrante do golpe; os marinheiros, por outro lado, muitos deles simpáticos às Ligas Camponesas e às reformas de base, e organizavam-se como trabalhadores. Contribuía a isto também a dura opressão que sofriam: mal podiam sair dos navios, comiam em cozinhas separadas por patente, não podiam se casar, ouvir rádio, votar e ser eleitos, e seus salários não chegavam sequer a um salário mínimo.

A AMFNB, possibilidades e limites

A AMFNB evoluiu de mero sindicato assistencialista a um sindicato com elementos de auto-organização. A primeira direção da AMFNB foram os conciliadores. A evolução da entidade se acentuou em 63 quando os combativos, com base nos setores mais proletários da Marinha (navios e centros de distribuição), conquistaram a direção. Os combativos foram expressão e limite do que ocorria na base. Parte de seus membros era do PCB e alguns eram da POLOP [3]. Havia confiança no que havia mais à esquerda, porém esta direção também conciliava com os oficiais, defendia que os oficiais e os marinheiros “recebessem cada um o seu” , ao mesmo tempo em que dava vazão ao desejo da base defendendo um funcionamento distinto para a AMFNB: delegados eleitos por navio e repartição. A associação funcionou entre 63 e 64 com elementos de auto-organização, baseando-se nos delegados e centenas de marinheiros que freqüentavam e dormiam na sede entre reuniões e assembléias.

As contradições na AMFNB traziam à tona o maior limite do processo, a direção do movimento operário. Suprimindo praticamente toda auto-organização, conseguiram impedir as possibilidades de desenvolvimento do próprio movimento operário como de sua aliança com os marinheiros. Apesar destes limites, a AMFNB trazia à tona a espontaneidade dos marinheiros, e por esta via era prestigiosa dentro e fora da Marinha. A Tribuna do Mar, órgão da associação, ajudava a organizar as outras armas. A AMFNB era produto e motor do despertar dos marinheiros. Isto se expressava, por exemplo, em como as deliberações da associação chegavam até aos navios em alto-mar em poucas horas. Um diretor afirma que, sabiam que “os transmissores dos navios eram usados secretamente para enviar mensagens mas como e quem fazia, era um mistério (...) Sentíamos que era uma massa humana em movimento e disposta a enfrentar qualquer obstáculo que se interpusesse no seu caminho.” [4] .

Mesmo sob uma direção reformista, a pressão da luta de classes e o reflexo em sua base faziam que a AMFNB organizasse um minucioso planejamento e preparação militar para que se fosse necessário tomar os quartéis pudesse fazê-lo. Quando ocorreu a “rebelião dos sargentos” , em setembro de 63, a diretoria temendo represálias resolveu realizar este plano.

Capitani, um diretor, recebeu da diretoria a ordem de “tomar o Quartel dos Marinheiros. (...) Conversei com todos os marinheiros de confiança (...) os sentinelas de serviço naquele horário que não forem de inteira confiança não serão acordados e deveremos substituí-los por outros companheiros (...) semelhante orientação foi dada também nos navios(...) foi a primeira experiência de ação baseada em um plano.” Um mensageiro da diretoria avisa Capitani para levantar o plano e ele e os marinheiros desorganizam a tomada do quartel, “o mais impressionante é que foi traçado, levado à prática, houve um recuo sem que o Comando do Quartel tomasse conhecimento (...) Os fatos demonstraram o quanto a marujada estava coesa e predisposta a agir em nome da Associação (...) isso só foi possível porque já havia discutido muitas vezes com meus companheiros de confiança um plano” [5].

A pressão da base também forjava uma aliança com os operários e camponeses. Os diretores mantinham contato com sindicalistas, organizavam cursos de autodefesa para a direção das Ligas, chegavam inclusive a tomar decisões conjuntas com as Ligas, como sobre a repressão a um acampamento. Medidas que minavam uma base do Estado, a separação entre sociedade e corpo repressor. Na Marinha e nas Forças Armadas esta pressão da base e da situação, potencializada a partir dos elementos de auto-organização, faziam com que a associação expressasse parte do mais avançado no ascenso operário e popular: elementos embrionários de duplo poder em relação ao almirantado e seus planos anti-operários e golpistas.

A luta de classes levava à direção: os avanços e limites dos marinheiros na luta de classes

Os próprios diretores reconheciam que eram levados pela luta de classes: “tinha a sensação de que eu não decidia nada” , e sem o controle a “diretoria era forçada a agir na defensiva” [6]. A separação entre a base e a direção ocorreu quando a intervenção da AMFNB na luta de classes foi mais aguda: na “revolta dos sargentos” , na “rebelião dos marinheiros” e na resistência ao golpe.

Na “revolta dos sargentos” de 1963 a diretoria orientou a sede de Brasília de ler um apoio aos sargentos da aeronáutica e nada mais. A regional, porém, participou da tomada de prédios públicos e num tiroteio. Temendo represálias e tentando alcançar a situação, a diretoria organizou a tomada dos quartéis e navios (relatado acima).

A “rebelião dos marinheiros” e a resistência ao golpe são um processo só, marcado pela mesma contradição. Em 1964 havia uma maior polarização nacional com reflexos no antagonismo entre praças oficiais e, ao mesmo tempo, o papel do PCB e do PTB reforçava a diretoria da AMFNB e a conciliação. A base estava radicalizada, disposta a tomar em armas com os operários, resolver suas demandas por si mesma e, por outro lado, a direção conseguia ser um freio maior.

Em março, a diretoria programou um ato-festa no Sindicato dos Metalúrgicos. O almirantado o proibiu. Sabia-se também que o almirantado queria atacar os marinheiros. Os marinheiros que serviam café ao almirantado haviam informado os diretores que eles seriam presos naquele mês, na preparação do golpe. No dia do ato, 25 de março, eclodiram os primeiros confrontos diretos: marinheiros presos sem justificativas; diretores da AMFNB presos; oficiais jogados ao mar pelos marinheiros; marinheiros metralhados no caminho do sindicato. O ato ocorreu e reuniu cerca de 4mil marinheiros. Desde o começo já era uma revolta.

Vários marinheiros defendiam ir à prisão e ver se prenderiam ou enfrentariam a massa. A diretoria propunha dispersar, não cair em provocação. Sem sucesso, até surgir uma proposta encampada pela diretoria e que foi vitoriosa: vigília até a libertação. Parecia um esfriamento, mas a situação também lhe criava dificuldades. Sindicatos, a população, traziam comida e solidariedade; alguns marinheiros deixavam a ocupação para retornar em centenas. Sem controle, a Marinha resolveu reprimir. Enviaram a mais especial das forças: o batalhão de choque dos fuzileiros navais. O movimento conseguiu que deixassem suas armas e aderissem ao movimento. O almirantado não mandava mais.

Logo, porém a direção da AMFNB conseguiu prestar um valioso serviço à burguesia: reconquistou a confiança dos marinheiros no governo e no Estado. Com oposição de parte da base aprovaram a resolução, vendida como vitória, de saírem de lá presos e eleger um almirante simpático a AMFNB ’ abandonando a reivindicação central de liberdade dos presos. Este primeiro passo ainda não resolvia o conflito e a diretoria continuou contendo os marinheiros, Capitani relata que foi “ao Clube dos Sargentos para ajudar a diretoria coordenar a enorme quantidade de marinheiros que chegavam com informações sobre os problemas de suas unidades ou em busca de orientação. A diretoria se esforçava para orientar os marinheiros e fuzileiros rebelados na sua volta à normalidade e na garantia de apoio ao novo Ministro” [7].

A derradeira disposição de aliança com os operários

Apesar do desvio do levante para eleger um ministro, a base ainda se mostrava disposta a resistir ao golpe e medir suas forças e as do movimento operário com as dos oficiais e da reação. Todos, da AMFNB ao PC e Goulart, sabiam, há muito, que ocorreria o golpe, e não tomaram medidas de defesa. Nos dias 30 e 31 ele era totalmente visível e novamente a base tentou ultrapassar a direção, e ela, forçada pela base e situação, também começou a agir. Os marinheiros inviabilizaram os canhões e os motores de vários navios e ficaram aguardando ordens. A AMFNB por sua vez emitiu ordens para buscar armas e obedecer aos oficiais fiéis ao governo de Goulart e surgiram milícias de marinheiros que se preparavam para prender Lacerda (governador arquigolpista), aguardavam ordens de Goulart e outros “progressistas” que nunca chegaram. Preparavam-se para distribuir armas para os operários através do CGT e formar batalhões de operários e marinheiros. O CGT nunca apareceu. Depois da covardia de Goulart, Jango, dos sindicalistas nenhum deles interessados em impedir o golpe com os métodos da revolução proletária, os marinheiros ficaram isolados. Decidiram não morrer lutando isolados, apesar do choro e vontade da base em lutar até o último homem. Esta decisão mostra como diferente do que quer o PCB não eram impacientes pequeno-burgueses, eram, ao contrário, expressão do mais avançado, o que lhes faltava era o que faltava ao proletariado, uma direção revolucionária. Tinham disposição em lutar e frente à covardia e capitulação não se propuseram a ser massacrados. Estavam em menos de 5 mil homens, com armamentos da 1ª guerra mundial, sem treinamento para enfrentamento terrestre, frente a uma força de 11 mil efetivos do Exército, melhor armados, treinados, e que ainda esperavam um reforço de mais 50 mil homens.

Perdidas as brechas à esquerda a situação se fechou à direita. Morreram na praia as possibilidades de desenvolvimento do que foi um embrião de auto-organização dos marinheiros, e de sua vontade de forjar uma aliança e batalhões com os operários. Os marinheiros e AMFNB eram vanguarda e a ditadura os tratou assim: tentou prendê-los antes do golpe, e depois dele o número de presos e desaparecidos na Marinha foi o maior das Forças Armadas.

O papel criminoso do PCB

O PCB foi conseqüente com sua estratégia de revolução “democrático-nacional” em aliança com a burguesia “progressista” , através da confiança no governo e em seus oficiais e não nas massas, seus interesses, organização e métodos de luta. Sabia do golpe e não organizou a resistência, quando a base queria ultrapassar os oficiais e ministros, chamava a confiar neles, impediu com todas forças a auto-organização dos operários. Cumpriu um papel decisivo para desfazer a AMFNB. O stalinismo brasileiro arou o terreno onde os generais semearam repressão, arbítrio e sangue. Para não se culpar por este crime, o PCB culpou os marinheiros. Em 1967 afirmaram que “ações precipitadas, deram pretexto aos golpistas para atrair largas parcelas da oficialidade, sob a bandeira da defesa da disciplina e da hierarquia militar (...)[um] surto de impaciência e outras manifestações de radicalismo pequeno-burguês(...) levantamento de palavras de ordem e a preconização de meios e objetivos de luta não condizentes com o caráter do movimento nacionalista e democrático e com a correlação de forças existente” [8]. Em nome de continuar buscando “progressistas” como Jango, Brizola negaram as demandas, a organização e sobretudo o desejo dos marinheiros em se unir com a classe operária.

Hoje, intelectuais ainda tratam o golpe como algo inevitável. As possibilidades que se abriam com o que ocorria entre os marinheiros, e de forma distinta entre os operários, mostram o contrário. Falta arrancar do desconhecimento criminoso, que encobre conciliação com a burguesia e seu Estado, o heroísmo dos marinheiros em 1964 que construíram um embrião de soviet, estiveram dispostos a se aliar aos trabalhadores contra o Estado burguês, tomar em armas e resolver por si mesmos suas demandas. Os marinheiros brasileiros de 1964 são mais uma mostra de como era possível barrar o golpe militar com os métodos da revolução proletária e como nossa própria história pode nos brindar lições do que a classe operária provou em todo mundo.

* Este artigo está baseado, sobretudo, em: Avelino Capitani, A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Oficios, 1997; Pedro Viegas, Trajetória Rebelde, São Paulo, Cortez, 2004; Flávio Rodrigues, As vozes do mar, FFLCH, São Paulo, 2002.

[1Entendemos por auto-organização organismos das massas que funcionem por meio de delegados eleitos pela base para preparar ou organizar a luta por seus interesses e demandas, exemplo mais clássico disto seriam os sovietes russos. O duplo poder se trata de uma situação onde um organismo das massas exerce um poder de fato numa instituição, numa fábrica, ou em relação ao próprio Estado burguês, ocorrendo situações onde a burguesia, a patronal, ordena algo e este organismo outra coisa. A auto-organização e o duplo poder podem ocorrer em uma fábrica, em um conjunto de fábricas, em relação à burguesia e seu Estado, numa instituição do Estado burguês, no campo. Há numerosos exemplos em todo o mundo além dos sovietes russos, como os comitês de fábricas, comissões de delegados, sindicatos e centrais, cordones industriales, juntas obreras, conselhos, radas.

[2Os relatos da revolta da Chibata expressavam este antagonismo e também marcavam subjetivamente os marinheiros.

[3A Política Operária, POLOP, era uma organização que surgiu durante o ascenso e estava composta por setores radicalizados do PSB, de dissidências do PCB e marxistas independentes. Foi a primeira organização depois das organizações trotskistas a criticar a revolução por etapas do PCB e propor um “Programa Socialista para o Brasil” .

[4Capitani, ver acima, p. 35

[5idem,p. 42-43.

[6Capitani, ver acima, p. 57; Rodrigues, ver acima, p. 84, respectivamente.

[7Capitani, ver acima, p. 59

[8Informe de Balanço do CC ao VI Congresso em PCB: vinte anos de política 1958-1979. São Paulo, LECH, 1980.

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