Sábado 27 de Abril de 2024

Juventude

MOVIMENTO ESTUDANTIL

Um olhar sobre o movimento estudantil brasileiro com as lentes de 68

14 May 2008   |   comentários

Desde maio de 2007, milhares de estudantes se colocaram em movimento em todo o país. O último processo mais importante, da luta contra a camarilha corrupta da UnB, mostrou que é necessário um balanço profundo dos últimos processos [1]. Não foi difícil ver que a burguesia mudou a linha com relação ao movimento desde então. Os “remelentos” da USP (contra o Serra) se transformaram nos paladinos da ética (contra o Lula e seus cartões corporativos). A burguesia parece testar a cooptação no lugar do enfrentamento. A IstoÉ que o diga [2]. Isso diz muito do atual movimento estudantil e não há melhor homenagem aos 40 anos do maio de 68 do que conhecer esses processos que “enfartaram” o mundo, buscando tirar as lições para encarar o presente. Não temos a pretensão de nessas linhas esgotar o debate a ser feito, mas provocar essa discussão tão necessária.

A burguesia e sua mídia dedicam rios de tinta para expropriar, deturpar aquele processo, numa verdadeira operação ideológica que buscamos combater. À burguesia, dizemos: tirem as mãos do maio de 68! Mas não é tão menos triste ver a reivindicação festiva, simplista e superficial que fazem as correntes de esquerda, na busca incessante de exaltar a atual onda de luta estudantil. Não faltam comparações forçadas com o próprio maio francês, mas também entre a recente luta da UnB e o “Território Livre” de 68 [3]. Essa atitude pode produzir belos discursos, entusiasmar estudantes que recentemente despertaram para a luta, mas a última coisa que se pretende é preparar o movimento para os próximos embates. A burguesia, as burocracias acadêmicas e a Istoé agradecem.

Buscamos homenagear o maio de 68 utilizando suas lentes para olhar numa perspectiva crítica o atual movimento estudantil. Assim, queremos impedir que a burguesia se aproprie do mesmo e apontar a perspectiva da aliança com os trabalhadores e o povo. Não dizemos “viva!” a qualquer movimento que surge, cantando vitória independente se o seu resultado é uma óbvia derrota. No movimento estudantil, que é por definição policlassista, e no Brasil que tem uma das universidades mais elitistas e racistas do mundo, essa concepção oriunda do velho petismo é ainda mais nociva, pois sem um profundo debate de idéias e programa a possibilidade de que o movimento estudantil se transforme em funcional à burguesia aumenta. Felizmente não é o caso do Brasil, mas vale dizer que na Venezuela e Bolívia o movimento estudantil é hoje o bastião da reação.

Qual estratégia?

Uma investigação sobre 68 mostra como ainda estamos longe da perspectiva que apontou aquele movimento estudantil, em particular o francês que foi alimentado e acompanhado por um processo profundo no movimento operário que organizou naquele maio histórico a maior greve geral do ocidente no século XX.

Era uma situação internacional convulsiva, mas é impossível entender a transcendência geográfica e histórica que atingiu o maio francês, sem ver que 9 anos antes havia ocorrido a revolução cubana e há 19 anos a revolução chinesa. Ou seja, era uma geração de jovens que tinha a revolução mais perto do que no horizonte.

Naquelas primeiras décadas do pós-guerra a universidade mudara bastante. A necessidade do capital de ampliar a formação de profissionais qualificados e intelectuais para gerir seus negócios num mundo em reconstrução sob a base da produção em massa, combinada com um crescimento da população e da juventude, forçou uma massificação do conjunto das universidades européias. Foi a partir desta expansão que o movimento estudantil passou a ter um peso social e político importante na sociedade, refletindo em seu interior, como uma caixa de ressonância, todas as contradições mais latentes da sociedade burguesa.

Tudo isso configurava um cenário onde o movimento estudantil assumiu um novo caráter. O comum na vanguarda estudantil era ser revolucionário, a questão era qual era a estratégia para a revolução. Na França, havia um debate profundo entre os trotskistas (que ainda que impactados pelas revoluções cubanas e chinesa apontavam elementos de continuidade com a tradição bolchevique), os que defendiam a estratégia maoísta da guerra popular prolongada de tomada do poder pela via de um exército camponês e foquistas, inspirados por Che, Fidel e o Movimento 26 de julho. Como acontece em toda situação de polarização, o meio estudantil se dividiu e, entre os setores mais a esquerda, surgiu uma fração que encontrou na classe operária a via da transformação radical da sociedade.

Foi nesse cenário que se forjou um movimento estudantil francês, em combate contra o imperialismo (que na França significava também o combate à opressão sobre a colonizada Argélia), os fascistas, a polícia e num questionamento os valores burgueses. Ou seja, era um movimento estudantil essencialmente político, que levantava bem alto as bandeiras dos mais oprimidos e explorados da sociedade, ao ponto de fazer explodir a pólvora que vinha se acumulando no movimento operário francês nos anos anteriores. Você não verá a “miséria do possível” das “demandas específicas” no movimento estudantil francês, alemão ou italiano de 68, mas sim o combate a essa perspectiva “reivindicatória” reformista que segue tão presente no atual movimento estudantil.

Como demonstramos em outro artigo nesse suplemento, no Brasil a situação objetiva era completamente diferente, marcada pelas botas da ditadura, pelo arrocho e repressão sobre o movimento operário. Mas isso não impediu que também aqui o movimento estudantil fosse marcado pelo debate de estratégias e pelo caráter político. Infelizmente, aqui havia ainda menor expressão uma estratégia bolchevique [4], que nunca foi defendida pelo PCB stalinizado nem pelas direções do movimento estudantil que eram hegemonizado pelos guerrilheiros.

Somos profundamente críticos das estratégias levantadas naquele momento, tanto na França como no Brasil. Fez falta uma direção revolucionária preparada na etapa anterior que fosse capaz de guiar a força revolucionária das massas, que na França se estendeu em todas as classes subalternas e em todo o país, para tomar o céu por assalto. Para nós, a estratégia bolchevique foi, e segue sendo, a única capaz de dotar o proletariado e a juventude das ferramentas necessárias para essa tarefa histórica. Mas ainda sendo crítico das estratégias levantadas por esses setores, podemos ver como o atual movimento estudantil tem muito a aprender com esses processos.

Qual programa?

O movimento estudantil francês se levantou contra a reforma universitária, mas nunca deixou de assumir um caráter político, levantando as demandas mais sentidas pelos trabalhadores e o povo. A luta contra o imperialismo, que hoje é vista por alguns estudantes como “coisa de discurso de partido” , era assumida pela massa estudantil. Enfrentar-se com a polícia e vê-la como um inimigo era um princípio, bem distante do pacifismo hoje imperante até mesmo nas correntes de esquerda que seguem tratando os policias como “companheiros” ou “trabalhadores da segurança pública” . Basta ver consignas como: “operários, tomai de nossas frágeis mãos nossas bandeiras de luta” ou “do questionamento da universidade de classes ao questionamento da sociedade de classes” para ver a profundidade que alcançou o movimento estudantil francês.

Apesar da disposição de luta dos estudantes brasileiros e da insubordinação expressa na generalização do método das ocupações, podemos dizer que ainda não foi superado o estágio meramente reivindicatório (que não significa que somos contra as demandas específicas, mas sim de limitar-nos a elas) e não conseguimos superar a tradição petista imposta pelas direções de se limitar a defender a universidade tal como ela é (elitista e racista). Além disso, em amplos setores há ilusões na burocracia acadêmica, nos professores, parlamentares e o pacifismo como princípio (oposto pelo vértice ao maio francês).

Como discutimos em diversas elaborações, um programa que pudesse hoje expressar uma continuidade com a tradição do maio francês, teria que partir da bandeira da democratização da universidade, chamando a lutar pela estatização das universidades particulares e pelo fim do vestibular, o que em si mesmo, se sai das resoluções congressuais e se transforma em luta concreta leva inevitavelmente a uma luta encarniçada contra os capitalistas e o imperialismo. Mas também achamos que o movimento estudantil deve levantar outras demandas da sociedade como a luta contra a violência policial, pela retirada das tropas brasileiras e da ONU do Haiti, a corrupção, a epidemia da dengue, apontando a perspectiva da aliança operário popular para dar uma resposta às mazelas sociais como se deu no maio de 68.

Quais obstáculos?

Sem dúvida, para traçar essa perspectiva enfrentamos uma grande dificuldade que é o atraso da situação objetiva e da consciência dos trabalhadores e da juventude, moldada não por revoluções como em 68, mas por sua ausência ou derrotas. Mas isso aumenta a importância da tarefa de combater todas as tendências contrárias a essa perspectiva que são completamente presentes no seio do movimento estudantil.

A começar pela burocracia estudantil governista da UNE, PT e PCdoB, que já foram completamente fagocitadas pelo Estado burguês e se transformaram em seus agentes diretos, sob controle estreito do governo Lula em base a muitos, muitos privilégios.

Será necessário superar também correntes como o PSOL, que é o herdeiro oficial do modo petista de militar, como uma semi-estratégia baseada no eleitoralismo desenfreado, da qual a perspectiva revolucionária e da luta de classes passa quilómetros de distância. Se adaptar à “miséria do possível” é seu traço marcante. Algumas de suas correntes internas mais de direita são um verdadeiro petismo envergonhado, carregado de muito burocratismo e parlamentarismo. Seu programa para a universidade é o velho programa petista, só vê as entidades e adora os “consensos” que sempre rebaixam os acordos até onde estão dispostos os setores mais atrasados (eles).

O PSTU, que se coloca como um partido revolucionário e por vezes atrai parte dos setores mais combativos do movimento estudantil, não tirou as lições de todos os seus anos dentro do petismo e de sua adaptação ao lulismo, e agora repete a tragédia como farsa com o PSOL e Heloísa Helena. Ao não romper com essa tradição, acaba se adaptando à “miséria do possível” , dissemina a tradição de que qualquer luta ou ação é sempre vitoriosa só pelo fato de existir e, do ponto de vista do programa, apesar de nos dias de festa falar até de que a universidade deve estar ligada aos interesses dos trabalhadores, na prática sempre levanta um programa que se limita à defesa da universidade tal como ela é. A sua atuação na luta contra o REUNI é uma expressão condensada de todas essas questões.

E como “novo fenómeno” , temos outra estratégia que também não é fruto da revolução, mas da sua derrota: a autonomista. São uma camada heterogênea, com suas alas esquerda e direita, mas podemos dizer em linhas gerais alguns pontos em comum. Têm uma visão de que um punhado de ativistas decididos pode dar saída para todos os problemas e que os demais estudantes que os sigam, o que não pode se transformar em outra coisa senão um burocratismo com a base estudantil. Esse vanguardismo vai ter sua expressão direta no programa, pois nenhuma luta que não seja massiva poderá ultrapassar os limites do reformismo meramente reivindicatório. Qualquer radicalização parcial no método, por exemplo com uma ocupação, não pode substituir o papel indispensável das massas para avançar na radicalização política e programática. Aliás, são os primeiros a se levantarem contra fazer política e contra qualquer tipo de programa. Em parte por essas questões e por ceticismo com relação à classe trabalhadora que boa parte dos autonomistas são grandes pessimistas históricos e acabam desbarrancando para um individualismo sem limites.

Um chamado

Nós, da LER-QI, que atuamos no movimento estudantil junto a independentes no Movimento A Plenos Pulmões buscamos construir uma ala que lute por um movimento estudantil anti-burocrático, anti-imperialista e aliado aos trabalhadores, buscando resgatar o que de melhor deixou a tradição 68. Chamamos todos aqueles que querem resgatar essa tradição a se juntar a nós nessa perspectiva no movimento estudantil e a abrir um debate sobre a necessidade da construção do partido revolucionário, que tanto fez falta naquele momento e segue fazendo nos dias de hoje.

[1Para conhecer nosso balanço da recente luta da UnB, leia no JPO 39 o artigo “Potencialidades e limites da ocupação da UnB” .

[2Aplaudindo o movimento da UnB, a IstoÉ o caracteriza de os “caras-lavadas” , “expressão de uma geração mais individualista e pragmática” , em oposição ao de 68 e os do impeachment de Collor. Segundo a reportagem, “a geração de 68, por exemplo, se julgava vanguarda de uma revolução socialista, usava codinomes e muitos partiram para luta armada contra a ditadura. Tinham um inimigo externo e uma causa política” . Agora, contudo, o ME seria voltado para eficiência e a modernização da universidade. Modernização para a revista significa: transparência nas fundações, não a sua extinção, e reforma universitária da burguesia. Os caras lavadas, de Sergio Pardellas, Istoé, 23 de abril de 2007.

[3Território Livre: inspirado no termo cunhado na guerra do Vietnã, quando a resistência libertava territórios ocupados pelos imperialistas, no nosso caso referindo-se a ocupações de escolas ou universidades, que passavam por um processo de auto-organização. Tal processo fora desencadeado por uma série de demandas estudantis: livros nas bibliotecas, almoços mais baratos, expulsão de professores. A 25km de Brasília o Colégio Agrícola fora tomado pelo “Diretório Revolucionário Che Guevara” , no colégio Elefante Branco os estudantes expulsaram os professores e funcionários que se colocaram contra as decisões das assembléias e comissões estudantis, sendo sua participação permitida desde que contando como uma pessoa, e não de forma paritária. Argumentavam que nas escolas a maioria são os estudantes, lutavam pela ditadura da maioria, nas fábricas e na sociedade ditadura do proletariado, nas escolas ditadura estudantil em aliança com os trabalhadores. Este processo era dirigido por trotskistas organizados no POR, Partido Operário Revolucionário.Cf. António de Pádua Gurgel. A rebelião dos estudantes, Brasília, 1968. Brasília: UNB, 2002. Para conhecer melhor essa emblemática luta de 68, leia no JPO 31 o artigo “1968 e o movimento estudantil no Brasil” .

[4Para aprofundar no conteúdo da estratégia que defendemos, leia o artigo “Um debate de estratégias” no JPO 35

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