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Teoria

IDEOLOGIA

Seminário: 70 anos do programa de transição da IV Internacional

22 Mar 2008 | Utilizamos a seção de ideologia desta edição de Palavra Operária para trazer a público a realização do seminário sobre a atualidade do Programa de Transição da IV Internacional de 1938, realizado pelo PTS, em Buenos Aires, em duas sessões entre os dias 2 e 10, e 16 e 24 de fevereiro, com a condução dos companheiros Emilio Albamonte e Christian Castillo. Abordaremos aqui apenas alguns dos pontos centrais de discussão, e ainda assim sinteticamente, deixando a tarefa de desenvolvê-los com a profundidade devida para futuras elaborações.   |   comentários

Introdução

Elaborado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o Programa de Transição foi publicado em sua versão original com o título “A agonia do capitalismo e as tarefas da IV Internacional” , por ocasião do Congresso de Fundação da IV Internacional, em 1938 na França. É escrito após uma década de grandes crises e convulsões revolucionárias, da depressão económica, do triunfo do nazismo e da derrota da Revolução Espanhola, da degeneração totalitária da URSS e da escalada das contradições imperialistas a níveis históricos jamais conhecidos, resultando numa nova disputa armada pela dominação mundial. É como síntese das lições tiradas do conjunto desses processos, e como instrumento de combate para a nova situação revolucionária que a guerra que se avizinhava abriria, que Trotsky escreve este programa. Buscava, em meio às condições enormemente adversas, vislumbrar as perspectivas revolucionárias e preparar a vanguarda proletária para ajudar as massas a transformar a catástrofe em uma possibilidade de construir um novo mundo, a exemplo do que haviam feito os bolcheviques russos em 1917.

Desde que o Programa de Transição foi escrito, é claro que ocorreram fatos de importância histórica. Para ficar numa simples enumeração: a própria Segunda Guerra, com o fortalecimento de seus vencedores, o imperialismo norte-americano e o stalinismo; os pactos para a divisão do mundo em “áreas de influência” ; a chamada Guerra Fria, com as “guerras quentes” que a acompanharam (Coréia, Vietnã); revoluções em países da periferia capitalista e nos Estados operários esmagados pela opressão stalinista; concentração em níveis inauditos da propriedade capitalista nos grandes monopólios mundiais, “financeirização” da economia; restauração do capitalismo na Rússia, China e no Leste Europeu; ofensiva burguesa para fragmentar e superexplorar a classe trabalhadora em nível internacional, e processos de resistência a essa ofensiva. Como pode um programa de combate resistir a tamanhas mudanças na situação mundial? A aplicação do programa é idêntica em todos os períodos e subperíodos do intervalo de tempo que nos separa da sua elaboração? O que seria um programa de transição para os dias de hoje? O seminário, momento de reflexão coletiva para mais de uma centena de quadros e dirigentes de nossa corrente internacional, procurou refletir sobre essas perguntas, na busca por um pensamento marxista capaz de agarrar a realidade viva e dar as respostas políticas revolucionárias de que precisamos para fazer avançar o movimento operário comunista nas condições atuais.

A vigência do Programa: a época de crises, guerras e revoluções

A primeira discussão do seminário girou em torno da validade da definição da época imperialista como época de “crises, guerras e revoluções” (Lênin).

Se a própria idéia de um programa de transição entre o capitalismo e o socialismo pressupõe a maturidade das condições objetivas para a revolução socialista, isso só pode se materializar numa fase histórica de declínio do capitalismo, onde as forças produtivas entrem em choque crescentemente com as relações sociais de produção e de propriedade existentes. Assim, o primeiro ponto a perguntar foi: “Estamos ainda na mesma época inaugurada pela I Guerra e a Revolução Russa” , a época em que o capitalismo já concluiu sua tarefa historicamente progressiva e preparou, por assim dizer, as bases objetivas para a reapropriação pela humanidade de suas próprias forças produtivas, mediante a revolução social e a “expropriação dos expropriadores” ?

Para responder essa pergunta de maneira científica, ou seja fugindo da mera repetição mecânica das verdades estabelecidas pelos clássicos do marxismo, procedemos coletivamente a uma análise profunda das grandes inflexões económicas, políticas e militares do século que passou, dando um conteúdo concreto à definição da época imperialista. O imperialismo dos grandes monopólios, da disputa incessante por mercados num mundo já inteiramente transformado em esfera de dominação do capital financeiro, entendido este como fusão do capital industrial e capital bancário, aparece assim de fato como época de “crises, guerras e revoluções” , e a tarefa para atualizar a perspectiva revolucionária inclui aqui a necessidade de identificar as distintas expressões concretas que teve essa “fórmula algébrica” ao longo do último século.

A atualidade do marxismo e da IV Internacional (entendida como continuação revolucionária da III Internacional em seus quatro primeiros congressos, sob a direção de Lênin) vive nas combinações, em formas sempre inéditas, das crises mais ou menos generalizadas, as guerras desde suas expressões mais parciais nas guerras de ocupação do imperialismo até as conflagrações mundiais, e as revoluções em todos os níveis de alcance e profundidade que o século demonstrou. O momento histórico muito particular das últimas décadas, período em que não houve nenhuma revolução operária e socialista triunfante e até enquanto perspectiva teórica ela esteve questionada por todos os lados, é apenas um capítulo particularmente doloroso de uma história destinada a trazer novamente à tona suas tendências mais profundas, como se anuncia hoje com a nova explosão da crise capitalista.

O método do Programa de transição: a superação do dualismo entre “programa mínimo” e “programa máximo”

Se, como dissemos, o Programa de Transição responde à fase de declínio imperialista, isso significa que a questão da revolução socialista, da tomada do poder pelos trabalhadores, se coloca na ordem do dia, ao menos em um sentido histórico. O que significa que deve ser posta pela vanguarda consciente como o norte necessário de toda verdadeira mobilização de massa. Isso não significa, no entanto, que toda luta reformista se torne automaticamente revolucionária, e menos ainda socialista. Pelo contrário, essa inversão esteve na base de todas as “domesticações” do programa, e a força revolucionária do Programa de Transição se confirma, inversamente, pela “necessidade” que obrigou todas as degenerações centristas do movimento trotskista a extirpar o conteúdo revolucionário do Programa, abandonando sua dialética interna. Sem isso, não poderiam adaptar-se à realidade das direções reformistas do movimento de massas e aos métodos sindicalistas (ou “parlamentaristas” ). O que não significa, tampouco, que muitas vezes o abandono do método revolucionário do Programa de Transição não possa se dar também preservando a sua “aparência” , porém transformando-o num amontoado estéril de consignas “radicais” abstratas.

A lógica interna do Programa, voltado a apanhar as conexões reais da realidade social e económica em suas contradições, levando “sempre e invariavelmente a uma única conclusão” (a necessidade de os trabalhadores tomarem o poder), é tão importante quanto suas consignas tomadas em si, o que nos faz afirmar sempre o “método” que rompe com o velho dualismo entre um “programa mínimo” (meramente reformista) para a luta cotidiana, e um “programa máximo” que se reduz à propaganda abstrata das vantagens do socialismo. Um método que consiste em assinalar a cada momento a “ponte” necessária para trazer ao primeiro plano, em cada luta concreta, a questão fundamental da propriedade privada dos meios de produção (segundo a velha exigência de Marx e Engels no Manifesto Comunista).

O que ficou particularmente ressaltado é a base objetiva para tal concepção programática, sem a qual ele se resumiria a uma peça literária de inegável elegância e coerência interna, porém sem aplicação prática. Assim, vimos como é a própria época imperialista que liquida de uma vez para sempre, em um sentido histórico, com aquele velho dualismo, pois representa a passagem do capitalismo de uma fase em que era apenas parcialmente reacionário para aquela em que se põe como completamente reacionário. A que se deve tal passagem, tal mudança de qualidade? Ao fato de que, no século dezenove, apesar de que já pudessem existir revoluções proletárias (a Comuna de Paris de 1971 é o maior exemplo), estas não eram a única via possível de desenvolvimento progressivo para a humanidade, ou dito de outra forma, o capital ainda contava com margens para, na busca por sua própria reprodução ampliada, arrastar a humanidade a um patamar superior (mesmo com todas as misérias e contradições que o desenvolvimento capitalista sempre trouxe consigo). Já no século vinte, isso muda radicalmente: o sistema capitalista já se apoderou do conjunto do globo, e não somente a revolução proletária se coloca como única via possível de verdadeiro progresso material e espiritual, como o preço cobrado pela ausência do seu triunfo se faz cada vez mais caro (o fascismo, o nazismo, as guerras mundiais).

O “boom” do pós-guerra e o Programa

Por outro lado, a vigência em geral do Programa de Transição para toda a época histórica em que vivemos não implica, diretamente, que ele seja aplicável sempre e em todos os lugares com a mesma força e profundidade.

Dito de outro modo, o que foi dito até aqui não exclui a existência de conjunturas históricas, como por exemplo nos anos do pós-guerra quando os países centrais conheceram um inaudito “boom” económico, em que a estabilização atua (no caso, com o Estado de bem estar social na Europa e o “keynesianismo militar” nos EUA, etc) no sentido de afastar o cenário de uma revolução, e nesse sentido o Programa de Transição perde sua aplicabilidade imediata, sem deixar de manter, no entanto, sua validade como única alternativa estratégica para a humanidade.

Nesse sentido, o período do “boom” , quando de fato a luta de classes saiu de cena nos países centrais e o capitalismo póde transmitir a ilusão de um futuro otimista no marco da propriedade burguesa, apenas preparava em bases ampliadas um novo momento de crise e de revoluções como o que se abriu em 1968. A tarefa de ajustar os prognósticos de Trotsky à realidade do pós-guerra, e com isso preservar o núcleo central do Programa de transição, tinha um caráter preparatório mesmo nesses países que viveram longos anos de estabilização. O renovado prestígio adquirido pelo stalinismo após a vitória sobre Hitler, o refluxo da luta de classes nos países centrais, após a traição dos PCs na Itália, França e Grécia, somado ao que chamamos desenvolvimento parcial das forças produtivas ’possibilitado pela destruição ocorrida na guerra até 1945, e limitado pela expropriação da burguesia em 1/3 da superfície do globo (após as revoluções chinesa e iugoslava, e a “expropriação em frio” pelos tanques soviéticos no Leste Europeu)’, foram os componentes básicos dessa estabilização. Esta não excluía, inclusive, processos revolucionários na periferia do mundo capitalista, assim como nos próprios países onde dominava o stalinismo (Alemanha Oriental, Hungria, Polónia). Porém a definição da disputa pela hegemonia imperialista a favor dos EUA, a reconstrução com dólares americanos dos adversários destruídos na guerra (Plano Marshall) e o inestimável papel de freio da luta de classes desempenhado pelos PCs, mesmo ao custo da expropriação da propriedade capitalista em países de peso secundário no sistema mundial, mostraram-se de conjunto fatores sólidos no sentido da reafirmação do equilíbrio capitalista, o qual só voltaria a ser questionado em escala internacional no ano de 1968. É evidente que, neste período, a aplicação do Programa de maneira literal estava impossibilitada, pelo menos nos países centrais.

Ter falhado na tarefa de atualizar o marco estratégico em que estavam atuando, preparando-se para as novas revoluções que o novo período de “prosperidade” preparava, e intervindo com todas as forças possíveis ali onde a revolução podia triunfar (no mundo semicolonial, e nos países sob o stalinismo ’ainda que nesse caso a partir da solidariedade internacional) foi o que condenou o movimento trotskista, após a morte de Trotsky em 1940, à existência no marco de diversas correntes dispersas cuja dinâmica foi cada vez mais centrista.

O Programa para os países semicoloniais, atrasados e dependentes

O Programa aqui se coloca como a tradução da idéia fundamental que constitui a teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky. A saber, a idéia de que já não há sentido em separar países maduros e não maduros para a revolução socialista; que a revolução nos países atrasados constitui um elo necessário da cadeia da revolução mundial, e que só nesta arena (mundial) é que se podem definir daqui para frente os destinos da humanidade (como bem o demonstrou a história do século XX); que as tarefas históricas que nesses países a burguesia deixou pendentes (em primeiro lugar a independência nacional e a reforma agrária) devem ser assumidas pela classe operária, entrelaçando aí o que seriam as tarefas da revolução democrático-burguesa com as de sua própria revolução, proletária e socialista.

Esta idéia fundamental é aqui exposta na forma de um programa para que a classe operária se levante como caudilho da nação oprimida, dando especial destaque às demandas dos camponeses pobres e dos pobres urbanos, incluindo a classe média arruinada, de modo a soldar uma aliança de classe indestrutível entre todos os oprimidos e explorados pelo grande capital.

Atualmente, o enorme processo de urbanização da humanidade nos obriga a conferir especial atenção ao que nos ensina esse capítulo do Programa. A aliança com os pobres urbanos, evitando inclusive que estes sejam usados como “bucha de canhão” da burguesia reacionária contra o proletariado, se coloca como uma das questões estratégicas da política revolucionária, em oposição à época anterior em que era a orientação das grandes massas camponesas, em direção à burguesia ou ao proletariado, que determinava os rumos das nações atrasadas.

O Programa de Transição nos ex- Estados Operários

Finalmente, dedicamos uma extensa discussão ao problema dos ex- Estados Operários burocráticos, e ao programa da revolução política levantado pela IV Internacional.

Aqui o essencial foi, por um lado, compreender em que sentido esta “revolução política” se diferenciava da revolução social contra a burguesia, pois a tarefa de expropriar-lhe os meios de produção já estava realizada. Por outro lado, descartar a interpretação da revolução política como uma mera “revolução no regime” , como fizeram quase todos os dirigentes centristas do movimento trotskista (Mandel, Moreno), compreendendo que não se tratava apenas de lutar por direitos democráticos (direito de voto, liberdade de reunião e organização, etc), mas sim da derrubada revolucionária da burocracia governante e de uma completa reedificação das bases económicas e sociais da sociedade, compreendendo que a democracia soviética é o problema económico número um de toda sociedade de transição, e partindo para isso da luta contra os privilégios burocráticos e os aspectos mais irracionais do “plano” imposto à sociedade.

O exemplo das revoluções operárias contra o stalinismo, em particular da maior delas, a de outubro-novembro de 1956 na Hungria, confirmou como esse programa estava de acordo às tendências espontâneas da classe operária em seu combate contra o regime totalitário (ainda mais opressor no caso húngaro pela opressão nacional por parte da URSS), e ao mesmo tempo, como ele seria o coroamento necessário desta espontaneidade para, levada às últimas conseqüências, poder recolocar a sociedade no rumo da transição socialista. Para isso, no entanto, seria necessário um partido revolucionário que combatesse conseqüentemente por esse programa no interior dos grandes conselhos operários que as massas construíram espontaneamente. A falta desse partido ajuda a explicar a derrota das revoluções políticas (que ocorreram também, com menor intensidade, na Polónia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, etc), e o enorme retrocesso representado pela restauração do capitalismo, que, como previu Trotsky, se deu pelas mãos da própria burocracia stalinista.

Conclusão

Como uma breve conclusão deste artigo, que não poderia ter a pretensão de resumir em escassas linhas todo o conteúdo de uma semana de estudo e discussão, devemos assinalar as mudanças mais recentes no panorama mundial, dando conta já não de como o pós-guerra modificou o cenário existente até a guerra (para o qual foi elaborado inicialmente o Programa de Transição ’voltamos a insistir). Mas sim, desta vez, o que é que nos separa da primeira grande crise após o “boom” , que se estendeu principalmente entre os anos de 1968 e meados da década de 1970.

Nesse sentido, uma primeira grande mudança de relevância histórica é o fato de que o stalinismo não existe mais como aparato mundial, porém que o fato de este ter sumido derrotado pelo imperialismo (pela via da competição económica, e não da guerra aberta), e não pelas próprias massas revoluções políticas como as defendidas pela IV Internacional, significou no plano histórico imediato um retrocesso, e não um avanço para a luta de classes. Por outro lado, o capitalismo conseguiu estender-se mundialmente, num nível jamais sonhado, incorporando os ex-Estados operários, porém ainda permanece em aberto, como uma das grandes questões para o século 21, o papel que vão jogar a China e a Rússia (e em outro sentido a à ndia) no novo mapa geopolítico. O proletariado é hoje uma classe mundial como em nenhum outro momento da história, porém a consciência socialista não esteve tão longe das massas em nenhum outro período desde a fundação da IV Internacional.

A aceleração no processo histórico de declínio da hegemonia norte-americana após 2001, combinada com as perspectivas da crise económica atual, abre a possibilidade de uma nova crise global do sistema imperialista, porém para que isso se confirme o mundo terá ainda de passar por novas combinações de crises e quebras económicas, catástrofes militares de todo tipo, e novas revoluções contra o capital.

A tarefa dos revolucionários marxistas hoje é, assim como o momento histórico, preparatória. Isso significa que o desafio número um é forjar os próprios dirigentes e quadros, através do intercâmbio e da polêmica teórica, e da participação nos processos atuais da luta de classes encarados como pequenas “escolas de guerra” . Como mostrou a história do século vinte, são os próprios processos “objetivos” económicos, sociais e políticos, que atuam em grande escala para lançar as massas operárias no caminho da revolução. Porém nos momentos cruciais, nada pode substituir o papel da vanguarda marxista, temperada em sua moral revolucionária, seus princípios, sua estratégia e táticas, e também em seu programa de transição.

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