Sexta 26 de Abril de 2024

Internacional

Resistência curda na Síria altera a postura dos EUA

22 Oct 2014   |   comentários

A alteração na postura da Turquia e dos EUA, pela primeira vez entregando armas aos milicianos curdos, responde aos temores de que esta guerra reacionária desate forças desestabilizadoras muito além da guerra civil síria no Oriente Médio.

Amplamente noticiado nos diários mundiais, aviões de transporte C-130 norte-americanos lançaram na madrugada desta segunda-feira armamento, munição e ajuda médica para abastecer as forças curdas que lutam na cidade síria de Kobani contra o Estado Islâmico, que depois de um mês de tentativas não assegurou a conquista desta cidade que se tornou símbolo da resistência curda. Além disso, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, que proibiu a travessia de combatentes e armas e se negou a intervir contra o massacre curdo por parte do EI há algumas semanas, emitiu comunicado autorizando a passagem de milicianos curdos iraquianos, os peshmerga, através do território turco para auxiliar a resistência em Kobani.

“Vamos ajudar os peshmerga a cruzar a fronteira até Kobani. Não temos nenhum desejo de que Kobani caia nas mãos do Estado Islâmico”, disse o Ministro turco de Assuntos Exteriores, Mevlut Cavusoglu. Esta alteração na postura da Turquia e dos EUA (que dizia que “Kobani não era estratégica na luta contra o EI”, mas agora incrementou o número de bombardeios nesta região curda para 135 ataques), pela primeira vez entregando armas aos milicianos curdos, responde aos temores de que esta guerra reacionária desate forças desestabilizadoras muito além da guerra civil síria no Oriente Médio.

Os inimigos de nossos inimigos...

Recordemos que o Estado Islâmico surgiu de uma ruptura da AlQaeda, aos quais se uniram no Iraque grupos sunitas que foram expulsos do governo central na Guerra do Iraque em 2003, assim como partes do exército de Saddam Hussein. Desde junho, se estabeleceu num território do tamanho da Bélgica que vai da província de Aleppo, no norte da Síria, até a província de Diyala no leste do Iraque, sobre o qual proclamou seu califato. Até agora, as únicas forças que conseguiram frear parcialmente o avanço dos jihadistas foram os curdos sírios, sem que a coalizão liderada pelos EUA conseguisse reverter estes avanços em defesa de seus interesses no Oriente Médio.

Em uma guerra que, para dizer o mínimo, os Estados Unidos não está ganhando, a cidade de Kobani (cidade curda na fronteira entre a Turquia e a Síria) não caiu nas mãos do Estado Islâmico, que sofreu numerosas baixas, unicamente pela dura resistência das milícias curdas sírias. A razão pela qual tanto os Estados Unidos quanto a Turquia se mostraram reticentes em intervir no massacre de Kobani é que a resistência curda na Síria é dirigida pelo Partido da União Democrática (PYD) e suas milícias, as Unidades de Proteção Popular (YPG), uma fração radicalizada do movimento separatista curdo que busca historicamente a autonomia e independência da região do Curdistão (30 milhões de pessoas abrangidas desde o norte do Iraque e da Síria, e em parte da Turquia) e direitos políticos aos curdos, um povo oprimido no interior da Turquia que compõe a maior etnia sem Estado próprio do mundo. Esta organização tem laços com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que integra a lista de organizações terroristas para os EUA e a União Europeia.

Como se evidenciou com os bombardeios a posições curdas do PKK, cujas milícias são as únicas forças de combate em terreno contra o Estado Islâmico na Síria, o governo de Erdogan optou a princípio por deixar via livre aos massacres, evitando que como efeito colateral de sua ação se fortalecessem as posições curdas. Esta aposta foi feita também por Washington apesar de toda a fraseologia “humanitária”: o secretário de Estado dos EUA John Kerry alegou, referindo-se aos curdos, que “os inimigos de nossos inimigos não se tornam por isso nossos amigos”.

Entretanto, os avanços do Estado Islâmico sobre as regiões petrolíferas no Iraque, tomando a província de Anbar e estando às portas da capital Bagdá contra um exército iraquiano desintegrado, e o perigo de que a tomada de Kobani pelos sunitas evidenciasse ainda mais a incapacidade do poder aéreo aliado de “degradar e destruir” por si só o EI, obrigaram Washington a mudar de opção tática e coagir a aceitação de Erdogan em auxiliar os curdos sírios [1]. Segundo Kerry, “Deixe-me dizer a nossos estreitos aliados turcos que entendemos os fundamentos de sua oposição, e a nossa, a qualquer espécie de grupo terrorista, e em particular aos desafios que enfrentam com o PKK [...] Mas nós embarcamos em esforços para degradar e destruir o EI, que se encontra em grande número na região de Kobani” [2].

A questão nacional curda como fator na equação

Se a Turquia não tem nenhum interesse em estabilizar o regime sírio de Bashar al-Assad (um regime inimigo do governo turco, que também quer derrotar a ameaça do Estado Islâmico em seu território), chegando a condicionar sua participação ativa na coalizão encabeçada por Washington ao envolvimento dos Estados Unidos na derrubada imediata de Assad, é certo que tampouco deseja revitalizar um poderoso movimento de libertação nacional de um povo oprimido em seu território.

O governo de Erdogan enfrentou protestos populares nas principais cidades da Turquia em rechaço à passividade com que lidou com o massacre dos curdos em Kobani, acusado de abandonar a cidade. Esta encruzilhada da burguesia turca – não fortalecer o regime de Assad atacando o EI (que há não muito tempo era financiado pela Turquia), mas ao mesmo tempo evitar o prestígio da resistência curda frente à passividade turca – por ora deixa fora do tabuleiro o maior Exército do Oriente Médio, e acentua as rusgas com os Estados Unidos (novamente, o governo de Ankara desmentiu ter permitido a utilização de sua base militar de Incirlik pelos aviões norte-americanos).

Curdos na Síria e no Iraque

Os Estados Unidos tem um trunfo para apresentar a Erdogan na figura dos curdos iraquianos. Apesar de Erdogan ter igualado o PKK e a Unidades de Proteção Popular curdas da Síria aos jihadistas do Estado Islâmico, tem boas relações políticas e comerciais com os curdos no Iraque, na figura do Governo Regional do Curdistão (KRG). Tendo sido capaz de manipular a favor de seus interesses a questão curda no Iraque, os Estados Unidos colocou sob sua tutela a autonomia dos curdos iraquianos conquistada em 1992 como parte dos acordos durante a Guerra do Golfo, concedendo-lhes grande cota de poder depois da derrubada de Saddam Hussein em 2003.

A burguesia curda, ligada ao clã de Barzani no Iraque, tem reservas petrolíferas estimadas em 45 bilhões de barris, que exporta ao porto turco de Ceyhan (no sul do país). O Iraque passou a ter um intercâmbio comercial com a Turquia, em 2010, de 6 bilhões de dólares, tornando-se seu quinto maior parceiro. A transferência de petróleo do Iraque para a Turquia é de 500.000 barris diários, além da transmissão de gás natural através do gasoduto que virá a servir para levar energia do Oriente Médio e da Ásia central para a Europa através da Turquia.

A Turquia só perde para a China entre os países com mais empresas no Iraque, com 117 corporações nos ramos da energia, agricultura e projetos industriais [3]. Esta boa relação, que torna o Curdistão iraquiano um dos principais parceiros comerciais da Turquia, facilitou a decisão de permitir a entrada dos combatentes peshmergas na Síria.

No Iraque, os curdos, sob a direção de dois clãs rivais – o Partido Democrático do Curdistão de Barzani e a União Patriótica do Curdistão de Talabani – garantem o controle do petróleo sob a sombra da ocupação norte-americana, com os peshmergas servindo de tropa terrestre aos EUA nesta guerra reacionária. Na Síria, pelo contrário, os setores curdos abertamente pró-norte-americanos, agrupados no Conselho Nacional Curdo e membros do Conselho Nacional Sírio, são uma minoria, primando os setores que não aceitam a intervenção dos Estados Unidos.

A derrota do Estado Islâmico pelas mãos da resistência curda acentuaria o papel da questão das nacionalidades e poderia abrir um curso progressista com repercussões internacionais que iriam até o coração da Europa. Mais de 20.000 curdos se manifestaram neste último sábado, 11/10, em Düsseldorf na Alemanha, em solidariedade à Kobani e exigindo, para além do envio de munições e ajuda humanitária, a libertação de Abdullah Öcalan, líder do PKK que cumpre sentença de prisão perpétua. Outras manifestações aconteceram em Londres e Bruxelas.

[1] Claudia Cinatti, LaIzquierdaDiario, http://www.laizquierdadiario.com/Kobani-y-las-contradicciones-de-los-opresores-y-los-oprimidos

[2] ElPaís, 21/10, http://internacional.elpais.com/internacional/2014/10/20/actualidad/1413786881_623447.html

[3] Hasan Turunc, London School of Economics and Politics – Turkey and Iraq, http://www.lse.ac.uk/ideas/publications/reports/pdf/sr007/iraq.pdf

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