Quinta 16 de Maio de 2024

Nacional

Frente ao "acordão" para salvar o regime e os políticos corruptos

Por uma Assembléia Nacional Constituinte Livre e Soberana

20 Sep 2005   |   comentários

Já se passaram quatro meses desde que os escândalos de corrupção detonaram uma profunda crise envolvendo governo, Congresso e os principais dirigentes do PT. Durante estes quatro meses, a indignação que percorreu todos os rincões do país ainda não conseguiu se materializar em mobilização ativa das massas. A esquerda não soube até o momento oferecer uma alternativa política real, e por isso o principal efeito do choque sofrido tem sido o de paralisar os ânimos da maioria da classe trabalhadora, que se encontra sem qualquer referência política à esquerda. O abismo que hoje existe entre a profunda crise dos de cima e a indignação apenas passiva dos de baixo, é o que tem permitido aos diferentes partidos e setores da burguesia tentar retomar a iniciativa e negociar nos bastidores uma saída que deixe intacta pelo menos a maior parte do edifício semi-apodrecido do regime político burguês. É isso que dá hoje a sensação de que a onda centrífuga da crise já passou, e permite inclusive, que o PSDB, e em menor medida o PFL, envolvidos até o pescoço na lama da corrupção e agentes mais diretos dos interesses imperialistas que estão por detrás dela, tentem aparecer como “alternativa” à corrupção petista e se fortaleçam, insolitamente, como alternativas eleitorais de direita para 2006, quando todas as provas demonstram que os principais esquemas de corrupção provêm, no mínimo, do governo de FHC onde estavam justamente PSDB e PFL.

Essa situação impõe um enorme desafio e uma imensa responsabilidade para a esquerda que se coloca como antigovernista e classista. Apesar dos atos e reuniões públicas nos diversos estados, e da marcha à Brasília de 17 de agosto, é preciso dizer de maneira categórica que isso tudo é absolutamente insuficiente frente à oportunidade que a crise dos de cima abriu. Há quatro meses os partidos da burguesia passam os dias se atacando violentamente aos olhos de todos, e a única coisa que a esquerda conseguiu realizar foi um ato em Brasília menor que o de junho do ano passado! Nem sequer uma reunião unitária real, com alguns milhares de trabalhadores de base e de ativistas dos movimentos sociais!

Como discutimos no artigo sobre o Encontro de Trabalhadores, o PSOL defende a política de plebiscito revogatório, que permitiria à burguesia canalizar a insatisfação para novas eleições (sim, mais uma vez!), e além disso com grande probabilidade de que fosse eleito um novo governo tucano em aliança com o PFL, com o que estaria consolidada uma saída pela direita à crise atual. Por outro lado, o PSTU se permite, nesse momento de grave crise nacional, levantar uma política totalmente abstrata (ou “ultra-propagandística” , nas palavras do próprio dirigente do PSTU Valério Arcary) de “fazer a Revolução Socialista” ou de “Governo socialista dos trabalhadores” , como complemento a um não menos abstrato “Fora Todos” . Que cara duras chamar oportunistas, depois de... Imediatamente depois de levantar uma política reformista...

Porém não podemos nos enganar sobre o verdadeiro conteúdo da política do PSTU, por mais que sua direção vocifere e tente evitar o debate chamando a todos os que se negam a acompanhar seu giro ultimatista de “reformistas” ou “democratistas” . A situação é demasiado grave para poder ser resolvida com insultos. A verdade, dita com todas as letras, é que a linha do PSTU, por mais que se organize pequenos atos de vanguarda em alguns lugares, não apresenta uma saída política capaz de mobilizar as massas e nem uma política de exigências às organizações de massas que favoreça a experiência com as direções traidoras. A conseqüência da linha do PSTU é portanto seguir agindo praticamente como se não houvesse crise, continuar fazendo atividade sindical rotineira, como discutir em Brasília, após a marcha, em plena crise política, sobre a data do encontro de fundação da central sindical/popular, e além disso para... meados de 2006! Para gente que frente a uma crise como esta marca..

No momento atual do que se trata é de que a esquerda classista e revolucionária apresente uma atitude firme para unificar-se em torno de propostas que permitam ligar a vanguarda ao sentimento e à psicologia das massas. Se a maioria dos trabalhadores e do povo ainda acredita numa solução por dentro do regime, devemos dirigir as atuais ilusões democráticas que existem na maioria dos trabalhadores contra o regime de dominação dos capitalistas.

Os intelectuais de esquerda: Boa análise, política miserável

Nos últimos dias, começou a veicular-se um manifesto assinado por 143 intelectuais de esquerda da USP, Unicamp, UFRJ, UFBA, PUC, entre outras das mais prestigiadas universidades brasileiras, com o título: “Pela investigação rigorosa da corrupção, pela punição dos envolvidos e pela democracia” . Este manifesto, que contém uma ampla denúncia do nível de degradação de “nossa democracia” , nos parece uma excelente base para concluir pela necessidade urgente de convocar uma Assembléia Nacional Constituinte Livre e Soberana, como forma de armar um grande debate nacional sobre todos os temas mais candentes que afligem o povo brasileiro, permitindo que as amplas massas trabalhadoras, que ainda não vêem uma saída diretamente revolucionária, possam radicalizar sua experiência com a democracia burguesa e avançar para compreender a necessidade de tomar seus destinos em suas mãos.

Para isso, é necessário apoiar-se na atual realidade do país, em que a crise política colocou a nu as entranhas do regime de dominação capitalista. Como afirmam os autores do citado manifesto: “a crise atual revelou os limites da democracia brasileira, e as manobras em curso, que visam poupar os corruptos, podem estreitá-la ainda mais” . E mais adiante, de forma categórica: “Depois de muitos anos de luta contra uma violenta ditadura militar, chegamos a um regime democrático esquálido, que não rompeu claramente com o passado ditatorial” . Precisamente! Uma democracia esquálida, construída sobre a base da capacidade que a burguesia teve de controlar todo o processo da transição, através da chamada “transição transada” , ou dito de outro modo, sobre a base da incapacidade do movimento de massas, e em primeiro termo de suas direções políticas, para impedir que o “passado ditatorial” se imiscuísse de maneira tão sórdida no “novo regime” criado em 1988. Chegamos assim ao que os 143 intelectuais chamaram “um regime democrático esquálido” , em que“sob forma nova, permanecem alguns dos instrumentos espúrios da ditadura, dos quais são exemplos o açambarcamento da função legislativa pelo Executivo, a multiplicação de foros privilegiados para julgar mandatários e burocratas, a ação subterrânea das forças de segurança militarizadas no seio do Estado, a ausência da plena liberdade de organização para os trabalhadores e a prática de tortura e do assassinato pelos órgãos policiais” . Ou seja, um regime democrático que não atende aos marcos mais estreitos de democracia formal, e que por isso não passa de uma pálida figura, uma caricatura horrenda, uma galhofa e uma zombaria atirada ao rosto de todos aqueles milhões de trabalhadores, jovens e setores populares que lutaram seriamente contra a ditadura por um regime que garantisse condições de vida digna para a grande massa do povo.

Pior, preservando o capitalismo semi-colonial, o regime democrático “esquálido” também não poderia se reproduzir num país subordinado como o Brasil sem perpetuar sua própria cadeia de mecanismos escusos de todo tipo. É o que os 143 denunciam: “Desenvolveram-se também, sem nenhum freio, instrumentos (...) como a intervenção direta dos organismos económicos internacionais na definição da política económica do Estado brasileiro, o monopólio exercido por um reduzido número de grandes grupos económicos sobre os meios de comunicação, o sistema de financiamento de campanhas eleitorais que nada mais é que um sistema para comprar candidatos e candidaturas (...) e a consolidação de um presidencialismo que se parece com o poder imperial” . Em conclusão, “esse tipo de democracia tem sido útil para preservar o modelo económico neoliberal, mas não para atender os interesses da maioria da população brasileira” . Fica assim traçado um quadro bastante aproximado do modo de funcionamento da democracia que temos hoje no país. Faltaria apenas dizer que, se as demandas de tipo democrático-formal ficaram longe de ser atendidas, as questões democráticas estruturais que as classes dominantes deixaram sem resolver ao longo da história, como a questão elementar da reforma agrária, ou o fim da opressão secular ao povo negro, nem sequer foram colocadas seriamente em debate.

Se não aproveitamos o momento da crise para colocar sobre a mesa as reivindicações estruturais do povo brasileiro, ou se nos contentamos com uma propaganda abstrata do socialismo sem responder aos desafios colocados concretamente na situação atual, teremos que amargar o prognóstico dado pelos intelectuais: “Passado o momento espetacular da crise, regressaríamos à normalidade de nossa democracia estiolada pela herança da ditadura, pela corrupção do poder económico e pela arrogância dos políticos profissionais e dos burocratas” .

É justamente por isso que não podemos aceitar a saída proposta pelos mesmos intelectuais citados, de que “Exigimos que as investigações prossigam até o fim, inclusive aquelas que apontem em direção à Presidência da República e possam redundar na instauração de um processo de impeachment” . É um exemplo gritante da anemia política que se abate sobre os intelectuais de esquerda brasileiros! Depois de toda a denúncia feita, depositar esperanças em que o Congresso corrupto dos exploradores poderá levar as investigações “até o fim” , e apoiar a iniciativa de setores burgueses para aproveitar a crise para dar um “impeachment” em Lula, fechando pela direita a crise aberta?? Aqui, ainda uma vez mais, o horizonte reformista da intelectualidade de esquerda se mostra como um limite absoluto, já não para que sirvam para contribuir à emancipação dos trabalhadores, mas sequer para que se leve o próprio raciocínio a uma conclusão lógica!

Se é verdade, como afirmam Chico de Oliveira e Laymert Garcia dos Santos, que “A crise é um episódio de uma espécie de ”˜golpe de Estado permanente”™ perpetrado pelo mercado contra as instituições republicanas e democráticas” , então devemos apontar uma saída que questione o regime burguês em seu conjunto, e prepare as condições para que as massas trabalhadoras concluam pela necessidade de impor sua própria ditadura contra os capitalistas.

É certo que o manifesto dos 143 conclui dizendo que “é hora de lutar pela preservação das conquistas democráticas e pela criação e ampliação dos mecanismos de controle popular sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A luta contra a corrupção e pela ampliação da democracia é parte da luta contra o modelo económico neoliberal e pela melhoria das condições de vida da população brasileira” . Porém essa frase pode se mostrar perfeitamente vazia, caso não seja trazido ao primeiro plano o elemento da luta de classes. Hoje a situação é tal que, na psicologia das massas, caminham lado a lado indignação e desengano, raiva e prostração; ao passo que existe considerável politização em todo o país, esta não conduz entretanto à radicalização política; pergunta-se então: como os pequenos setores de vanguarda, que não são ainda uma referência alternativa ao que foram Lula e o PT e nem muito menos do que isso, como podem apresentar uma política que contribua para pór em movimento as organizações de massas? Uma política que pareça justa e necessária mesmo para os setores mais atrasados, que estão longe de se convencer da necessidade de os trabalhadores tomarem o poder pela via insurrecional, e que ao mesmo tempo se choque frontalmente com as podres instituições da democracia dos ricos, e permita criar um grande debate nacional, uma grande tribuna onde os revolucionários, hoje em minoria, possam dirigir-se às amplas massas do país e ajudar a desmascarar o verdadeiro caráter dessa democracia que não é mais que uma envoltura da ditadura dos capitalistas? Que outra política permitiria hoje um tal avanço, uma tal experiência, revolucionária por seu conteúdo, se não um grande chamado a uma Assembléia Constituinte imposta pelas massas com sua mobilização independente?

A “Constituinte tutelada” de 88 e nosso chamado por uma verdadeira Assembléia Constituinte Livre e Soberana

Entre os diversos argumentos que têm sido utilizados para tentar criticar nossa proposta de Assembléia Constituinte, um dos aparentemente mais fortes está ligado a uma interpretação amplamente difundida sobre o significado da Constituinte de 88. Segundo tal interpretação, essa Constituição teria sido uma grande conquista do ascenso de massas (ou no mínimo uma conquista significativa), e nela estariam cristalizados diversos elementos essencialmente progressivos. Seria então, para os defensores desse ponto de vista, um erro colocar em xeque as conquistas de 88, e esse seria já um argumento suficiente para não levantar a exigência por uma verdadeira Assembléia Nacional Constituinte Livre e Soberana frente à atual crise política .

Ainda que por razões de espaço não nos seja possível mostrar até que ponto é “constitucionalista” esse tipo de argumento, comum entre a maioria dos petistas mas que agora o companheiro Valério Arcary abraça sem a menor cerimónia, queremos aqui socializar o que um marxista acadêmico como Florestan Fernandes, na época um dos principais intelectuais ligados ao PT e que atuou em 88 como deputado constituinte por esse partido, afirmou sobre o tema apenas dois anos depois de assinada a Constituição: “nem por isso temos uma Constituição tão distinta, seja da Constituição mistificadora da ditadura, a de 67/69, seja da de 45. É nitidamente uma Constituição melhor, com uma ampliação temática, com uma redefinição das liberdades fundamentais, dos direitos sociais, mas tudo isso são conquistas no terreno abstrato” . Descrevendo o processo no interior da Constituinte de 88, após referir-se ao papel que o PT e os partidos da “ala esquerda” da burguesia tinham desempenhado, afirma Florestan: “Mas, nesse momento, surge a pressão do governo, dos interesses conservadores da burguesia nacional e, especialmente, da estrangeira, dos militares, etc. Um conjunto de pressões, que agiu no sentido de impedir que a Constituição tivesse todos os avanços básicos possíveis.(...) O que fez esse setor? Criou uma formação política dentro da Assembléia Nacional Constituinte ’ chamada posteriormente “Centrão” ’, que elaborou um projeto de Constituição calcado, em grande parte, no projeto Cabral, em parte, na ordem ilegal vigente, incluindo as duas Constituições, de 67 e 69, e também a de 46. O Centrão apresentou, então, o seu projeto (sic!) de Constituição. Houve um golpe dentro do plenário, que foi sustentado pelo presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o deputado Ulisses Guimarães (...) O que havia por trás era um imenso acordo conservador, igual ou pior que aquele da conciliação transada, que deu origem à “Nova República” . (...) O paradigma não era o produto de um longo trabalho, mas o fruto espúrio de uma elaboração paralela, feita contra o que deveria ser o projeto matriz. É uma coisa diabólica, que escapa até aos romances de García Márquez” . Porém uma coisa é que isso tenha sido uma surpresa para um marxista acadêmico, outra bem diferente é que setores da esquerda que se reivindica revolucionária tenham embarcado na mesma ilusão com respeito à Constituinte. E pior ainda é que hoje apareça gente como Valério Arcary, que viveu todo o processo, tentando assustar a vanguarda afirmando que a existência de pequenas concessões, as quais já antes da avalanche de ataques dos anos 90 o professor Florestan Fernandes questionava como restritas ao “terreno abstrato” (e que logo foram mil vezes mais deformadas através de medidas provisórias e revisões parciais, tirando o pouco que tinham de progressivo), seja um impedimento para que a esquerda abra um debate nacional e tente mobilizar as massas unindo a crise nas alturas com os grandes problemas estruturais que esmagam as grandes massas oprimidas do Brasil semi-colonial.

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