Quarta 1 de Maio de 2024

Internacional

O papel reacionário do imperialismo norte-americano

25 Aug 2005   |   comentários

No dia 6 de agosto de 1945, às 8h45 da manhã, o céu da cidade de Hiroshima foi cruzado por militares do exército norte-americano a bordo do avião B-29 Enola Gay. Sua missão: lançar sobre a população civil desta cidade do interior do Japão a bomba atómica Litlle Boy, marcando um dos episódios mais monstruosos protagonizado pelo imperialismo norte-americano na história. Morreram imediatamente 78 mil pessoas. No final de 1945 as mortes decorrentes dos efeitos devastadores da bomba atómica atingiram a marca de 178 mil mortos. Três dias depois, em 9 de agosto, outra cidade foi alvejada por uma bomba atómica batizada de Fat Man. O alvo desta vez foi Nagasaki. O saldo da destruição: 40.000 mortos instantaneamente, e mais 40.000 que faleceriam nos meses seguintes em decorrência dos danos causados pela radiação. Até hoje, a exatos 60 anos deste genocídio, as cifras de mortos não param de aumentar.

Na cerimónia realizada este ano no Parque Memorial da Paz, próximo ao local onde foi lançada a bomba de Hiroshima, parentes e sobreviventes adicionaram 5.375 nomes à lista de pessoas mortas, totalizando 242.437 pessoas cujas vidas pereceram graças aos efeitos mortais das bombas lançadas sobre o Japão.

A II Guerra Mundial já estava chegando ao fim quando as bombas foram lançadas. A vitória sobre o eixo já estava assegurada. Hitler, em meio à tomada de Berlim pelas tropas soviéticas em 30 de abril de 1945, se escondia em seu Bunker em companhia de Eva Braun para cometer suicídio após ver cair por terra seus planos de instituir o “Reich de mil anos” . Foi imitado por Joseph Goebells, número dois da camarilha nazista, no dia seguinte. Benito Mussolini, ditador fascista da Itália, havia sido executado em 28 de abril. As tropas japonesas já vinham sofrendo diversas derrotas, e resultaria impossível ao imperador japonês Hiroito sustentar-se na II Guerra sem o apoio de Hitler e Mussolini. Assim sendo, é inevitável perguntar: porque os EUA lançaram as bombas contra o Japão?

Em primeiro lugar, as bombas atómicas tiveram como objetivo disciplinar a URSS. A bomba de Hiroshima fora lançada alguns dias antes da finalização do Tratado de Potsdã, que somado ao Tratado de Yalta reuniu EUA, URSS e Grã-Bretanha para dividirem o mundo em áreas de influência. Os EUA foram obrigados a negociar com a URSS, que saíra da guerra for-talecida tendo um terço do mundo sob sua influência, fruto da derrota que haviam imposto aos nazistas. Entretanto, apesar do papel de coveiro da revolução que a burocracia stalinista havia cumprido ao longo da II Guerra Mundial, ainda continuava a ser um estado operário. Isso fazia com que os EUA, ao mesmo tempo em que pactuava com a URSS, tivesse que dar mostras de seu potencial político e militar.

Soma-se a isso o fato de que como parte dos resultados da II Guerra Mundial os EUA tenham se alçado como potência hegemónica do bloco capitalista, questão que havia sido irresoluta na I Guerra Mundial. De acordo com a definição de Lenin a etapa imperialista é marcada pela disputa encarniçada entre as distintas potências pelo domínio do mundo, o que inaugura uma época de crises, guerras e revoluções. Dessa forma, era necessário aos EUA dar mostras de sua superioridade militar para os demais imperialismos europeus.

As bombas atómicas também foram o cume da destruição promovida pelas democracias burguesas aliadas contra as massas de diversos países, que haviam protagonizado levantes revolucionários ao longo da II Guerra. Este foi o caso da Grécia, onde as massas sucumbiram frente à ofensiva liderada pelo imperialismo britânico, e na Itália, cujo levante contra o fascismo acompanhado pelas greves gerais que se espalharam pelo norte do país haviam acelerado e criado as condições para a queda de Mussolini. Esse processo foi abortado pela ação militar dos Aliados em comum acordo com a burguesia do país.

Enquanto as bombas atómicas eram lançadas sobre o Japão os Aliados decidiam em Potsdã preservar o reacionário imperador Hiroito, certos de que este seria funcional a seus interesses. Inicia-se assim, o período de ocupação do Japão pelo imperialismo norte-americano, no qual eleições foram convocadas. Porém, Hiroito passou de inimigo a colaborador. Isso serve para demonstrar a superficialidade da visão, compartilhada por amplos setores, de que a II Guerra Mundial se define por ter sido uma “guerra entre regimes democráticos e regimes nazistas-fascistas” .

“Guerra de regimes” ou guerra entre imperialismos: uma polêmica com o morenismo

A visão de que II Guerra Mundial constituiu uma “guerra de regimes” leva ao embelezamento dos regimes democráticos burgueses e à negação da real natureza desta guerra: o enfrentamento entre as burguesias, tanto nazifascistas como as democráticas, pela partilha do mundo para atender seus interesses imperialistas. Neste sentido, crer que havia um antagonismo total entre o nazi-fascismo e os imperialismos democráticos, leva a uma visão na qual a burguesia dos países aliados seria “progressiva” . A visão de guerra entre regimes é vasta-mente utilizada pela historiografia burguesa para justificar as atrocidades cometidas pelos imperialismos “democráticos” como necessárias para assegurar a vitória sobre o nazismo. É sabido que a explicação idealista e o falseamento de um fenómeno histórico são típicos da intelectualidade burguesa. Ninguém se surpreende com isso. O problema é quando um dirigente trotskista defende estas posições e ignora a realidade.

Um dos que defendem este tipo de análise é o trotskista argentino fundador da LIT, organização internacional do PSTU, Nahuel Moreno. Em seu livro “Revoluções do Século XX” , Moreno traça uma analogia absurda entre o enfrentamento das alas republicanas e fascistas na Revolução Espanhola e a II Guerra Mundial, afirmando que “(...) De qualquer maneira a revolução espanhola demonstrou até que grau o regime democrático burguês era antagónico ao fascismo, não só à classe operária e suas organizações.(...)” . Em seguida complementa com a seguinte definição acerca da II Guerra Mundial: “(...)A II Guerra Mundial apresenta, como mínimo, elementos similares. Sem desenvolver o tema, cremos que há que estudar seriamente se não foi o intento de estender a contra-revolução fascista imperialista por todo o mundo, derrotando principalmente a União Soviética, mas também os regimes democráticos burgueses euro-peus e norte-americano. O que dizemos é que há que precisar bem, como na guerra civil espanhola, qual foi o fator determi-nante. Foi a luta do regime fascista, essencialmente contra a URSS, mas também contra a democracia burguesa? Ou foi o fator económico, a luta entre imperialismos pelo controle do mercado mundial?(...)”

Estas passagens encerram equívocos fundamentais de Moreno, que acabam por obrigá-lo a defender um programa para os revolucionários e a classe operária de apoio às democracias burguesas contra os nazi-fascistas. Ao indagar se a II Guerra não se caracterizaria pela “luta da contra-revolução fascista imperialista” contra a URSS, mas também “contra democracia burguesa” , em oposição à “luta entre imperialismos pelo mercado mundial” Moreno demonstra concretamente que enxergava as democracias burguesas como totalmente opostas ao nazismo, co-mo se os EUA, a França, ou Grã-Bretanha, assim como a Alemanha nazista não fossem capitalistas e movidas por ambições imperialistas. Moreno ignora que para se definir o caráter de uma guerra é necessário questionar qual classe a leva a cabo, e com qual objetivo. No caso do enfrentamento entre os Aliados democráticos e os nazistas e fascistas do Eixo, a classe que engendrava a guerra nos dois bandos era a burguesia imperialista. O objetivo de ambos: a conquista da hegemonia sobre os demais imperialismos e as semicolónias.

A lógica de Moreno leva inevitavelmente a que ele termine afirmando que “Há que precisar se os exércitos aliados, apesar deles mesmos, não cumpriram também um papel progressivo, já que a derrota de Hitler foi o mais colossal triunfo revolucionário de toda a história da humanidade” . Essa afirmação não resiste ao menor questiona-mento do ponto de vista marxista. É impossível que nós não questionemos estupefatos: O “mais colossal triunfo revolucionário de toda a história da humanidade” fora protagonizado pela burguesia imperialista (e pela burocracia stalinista)? Como pode ser o “mais colossal triunfo revolucionário” se foi fundamentado no esmagamento de diversos processos revolucionários? [1] Em suma, se não resultou na derrocada das burguesias imperialistas e da burocracia stalinista pelo proletariado, mas no seu fortalecimento e na consolidação do capitalismo em todos os países centrais durante décadas?

A tese de Moreno parte de que a ascensão do fascismo e do nazismo enterraria qualquer possibilidade de revolução, já que se tratava de regimes totalitários, colocando a necessidade de uma “revolução democrática” que inaugurasse condições mais favoráveis para a revolução. Tal ponto de vista leva a negar, portanto, a atuação consciente dos revolucionários para promover a transformação da guerra imperialista em guerra civil do proletariado contra as burguesias imperialistas, tanto as fascistas quanto as “democráticas” , resultando na capitulação a estas últimas.

Moreno se encaixa perfeitamente na caracterização dos “semi-internacionalistas” , contra os quais Trotsky pole-miza no texto “Não Mudamos Nosso Rumo” , escrito em junho de 1940. A eles Trotsky responde: “Da parte de todas as classes de semi-internacionalistas se pode esperar aproximadamente a seguinte linha de argumento: é impossível que haja levantamentos exitosos nos países conquistados pela bota nazi, porque todo movimento revolucionário será afogado imediatamente em sangue pelos conquistadores. Há inclusive menos posibilidade de um levantamento exitoso no campo dos vencedores totalitários. Só se poderiam criar condições favoráveis para a revolução com a derrota de Hitler e Mussolini. Por isso, o único que resta é apoiar a Inglaterra e Estados Unidos. Se a União Soviética se unisse a nós seria possível não apenas deter os êxitos militares dos alemães, como impor a eles fortes derrotas militares e económicas. O desenvolvimento ulterior da revolução só será possível desta forma. Etcétera, etcétera. Esta argumentação(...) é na realidade apenas uma adaptação dos velhos argumentos do social-patriotismo, isto é, da traição de classe. A vitória de Hitler sobre a França revelou completamente a corrupção da democracia imperialista, inclusive na esfera de suas próprias tarefas. Não se pode “salvá-la” do fascismo. Só se pode substituí-la pela democracia operária. Se a classe operária liga a sua sorte nesta guerra à da democracia imperialista, isso só lhe acarretará uma série de derrotas” . Por isso, para Trotsky o fundamental era construir a IV Internacional, para que esta se constituísse como uma direção capaz de estar à frente do proletariado com uma política revolucionária e independente, rejeitando todas as concepções e práticas capituladoras à democracia imperialista. Assim, o fim do nazismo e o retorno da democracia burguesa na Alemanha ocidental não podia ser encarado como uma “revolução democrática vitoriosa” , mas como a derrota da revolução proletária.

Encontramos em Valério Arcary, dirigente do PSTU, uma visão que vai mais além da de Moreno na capitulação à burguesia imperialista democrática. Em um artigo chamado “As revoluções anticapitalistas do século XX” Arcary afirma que: “Como, aliás, os anos 30, o período mais dramático da história do século XX, quando parecia razoável considerar as vitórias do nazifascismo como um perigo para a sobrevivência da civilização, deixaram claro.” Esta concepção é muito semelhante à defendida pelo historiador de origem stalinista Eric Hobsbawn em seu livro História do Século XX, para o qual “(...) a Alemanha de Hitler era uma peça essencial: a mais implacável e decidida a destruir os valores e instituições da civilização ocidental(...)” . Neste sentido, para Hobsbawn a aliança com o imperialismo democrático não tinha o objetivo de criar condições mais favoráveis para a classe operária e o movimento de massas, como para Moreno, mas antes garantir a própria “sobrevivência da civilização” . Mesmo sem abandonar a visão defendida por Moreno, a citação que reproduzimos acima de Arcary parece se deslizar ao menos parcialmente para uma visão semelhante à de Hobsbawn. De qualquer modo, esta concepção parte de que a principal tarefa dos revolucionários frente a classe operária e as massas na II Guerra Mundial seria a defesa da “civilização” , ou seja, da ordem burguesa democrática. Esta posição leva ao social-patriotismo contra o qual Trotsky sempre lutou, entendendo este combate como mais essencial à medida que a guerra se aproximava.

Concluímos reafirmando que o debate sobre a II Guerra Mundial transcende a mera importância analítica, já que o balanço sério sobre a atuação dos trotskistas durante a guerra e das posições que mantêm ainda hoje constituem um elemento fundamental para o avanço do movimento trotskista.

[1Muitos processos foram derrotados ao longo da II Guerra, fruto da ação dos Aliados e stalinistas. O stalinismo foi um dos principais responsáveis pela derrota da Revolução Espanhola, em 1936, pelo esmagamento do processo aberto na Grécia, em 1944, velando pelos interesses imperialistas da Grã-Bretanha no país. Na Itália os Aliados abortaram o levante de massas. Estes foram apenas alguns dos inúmeros processos derrotados.

Artigos relacionados: Internacional









  • Não há comentários para este artigo