Segunda 13 de Maio de 2024

Internacional

Crise e contradições do "capitalismo do século XXI"

07 Jun 2008   |   comentários

A crise financeira em curso, como última e mais aguda manifestação
das crises bancárias, cambiais e recessivas que afetaram a economia mundial nas últimas décadas, nos permite ilustrar as características do funcionamento do capitalismo atual. Nossa tese é que a ofensiva neoliberal (resposta política, militar e económica à queda da taxa de lucro que vinha decaindo desde finais dos anos 60, esgotando o caráter excepcional do boom do pós-guerra), apesar de que em grande medida tenha conseguido recuperar o rendimento, gerou contradições explosivas que antes do esperado abriram uma crise de conjunto, atualizando a definição do capitalismo como um sistema em declínio. Neste artigo pretendemos analisar as transformações produzidas na economia mundial nas últimas décadas, enfatizando suas contradições, para reafirmar, sobre esses fundamentos económicos, a perspectiva da época atual como sendo marcada por “crises, guerras e revoluções” , em contraponto a toda a visão evolutiva da dinâmica do capitalismo.

OS CONTORNOS DA ECONOMIA MUNDIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

Contradição entre o aumento da taxa de lucro e a debilidade
da acumulação de capital

Uma característica que se sobressai no capitalismo contemporâneo é a
recuperação da taxa de lucro desde o começo dos anos 80, e mais decididamente a partir dos anos 90. Porém, esse processo (ver gráfico 1) não vem acompanhado de um aumento da acumulação capitalista de longa duração e generalizado. Esta é uma questão inédita na história do capitalismo. Como ilustra Michel Husson,

se fizermos abstrações das flutuações cíclicas, a nova fase se define da seguinte maneira: restabelecimento da taxa de lucro sem efeito na acumulação, crescimento medíocre e débil progressão da produtividade.
Trata-se de uma configuração que surge a partir da análise dos grandes países imperialistas entendidos em conjunto, mas que não se encontra em cada um deles. Porém, essa diferenciação pode ser considerada efeito da distribuição desigual deste modelo geral devido às relações mais assimétricas que existem, entre os diferentes pólos - EUA, Europa, Japão - de uma economia profundamente mundializada. A nova configuração não tem precedentes. O gráfico 2 exemplifica o caso da França em todo o século XX. Alternam-se fases expansivas e recessivas que desenham as grandes ondas do capitalismo. Em geral, lucros e acumulações evoluem segundo perfis parecidos: os movimentos da alta ou da baixa taxa de lucro repercutem, com mais ou menos defasagem, nos movimentos das taxas de acumulação. A divergência entre as duas curvas, em meados dos anos 80, aparece como fenómeno excepcional
dessa dinâmica a longo prazo”
 [1]

A mesma característica semanteve no ciclo de crescimento de 2003-2006, período de crescimento mais alto da economia mundial desde os anos 70, com média anual de 5%. De acordo com Joseph Stiglitz, o financiamento barato que os bancos centrais induziram desde o começo da década

” funcionou” , porém de forma fundamentalmente distinta do funcionamento normal da política monetária. Em geral, as baixas taxas fazem com que as empresas peçam maiores empréstimos para investir, e o aumento do endividamento traz consigo mais ativos produtivos. [2]

Observemos mais de perto dois países - Japão e Alemanha - que após anos de estancamento ou crescimento débil, tiveram recuperação da competitividade e dos lucros. Isso se expressa por meio do aumento de exportações, o que contribui decisivamente como crescimento de seu PIB. No entanto, segundo afirma um estudo económico dessas duas economias:

Uma parte dos lucros não vem sendo utilizada eficazmente (para estimular o crescimento a curto prazo ou a longo prazo). Pode-se observar em ambos os países a procura da liquidação de dívidas das empresas em relação ao PIB, inclusive no Japão, a níveis absolutos de acumulação de ativos líquidos por parte das empresas, o que não contribui para sustentar o crescimento registrado ou o crescimento potencial. Existe também uma soma dos dividendos pagos, porém continuam sendo débeis, e provavelmente se desgastam pouco. [3]

Debilidade da acumulação e tendência a sobreacumulação
em determinados nichos da economia mundial

A ausência de um processo de acumulação capitalista sustentado e
generalizado abre espaço à uma tendência a sobreacumulação nos escassos nichos de valorização produtiva que o capital internacionalmente encontra. Esses foram, sucessivamente, desde o final dos anos 60 até a crise asiática de 1997 os chamadosNIC e novosNIC;mais tarde, a partir demeados dos anos 90 até 2000, o boom da “nova economia” ,motorizado pelas telecomunicações
e a informática; posteriormente, a chamada bolha imobiliária, com epicentro nos EUA, Espanha e Inglaterra, atingindo expressão mundial; e simultaneamente, o denominado “milagre” económico chinês - que perdura até hoje.

Nesses setores houve aumento e/ou aceleração da taxa de investimento que desemboca, em todos os casos, em crise de sobreacumulação [4], acompanhadas subseqüentemente por uma crise de sobreendividamento e subespeculação (a exceção continua sendo a China, ainda que a acumulação de contradições que levam a esse desenlace esteja aumentando). Ilustremos o que estamos dizendo.

A respeito da chamada crise asiática de 1997, Isaac Joshua demonstra que

os casos da Tailândia, Coréia do Sul e Malásia são casos claros de sobreacumulação, Indonésia provavelmente também, porémemmenor grau. Pela escassez de dados, não é possível evidenciar semcalcular as taxas de acumulação correspondentes.No entanto, para os três países citados, é possível observar amanutenção, ao longo demuitos anos,
de uma taxa de investimento particularmente elevada, na faixa dos 40%. O gráfico 3 demonstra, para esses três países, o aumento notável das taxas de investimento, assim como os níveis inéditos que alcançaram em1996. A abundância de capital estrangeiro contribuiu para o financiamento desse esforço nos países do Sudeste Asiático.
Enquanto os fluxos de capitais privados líquidos com destino aos países em desenvolvimento na à sia eram, em média anual, de 11.9 bilhões de dólares entre o período de 1983-1988, em 1996 alcançavam 94,70 bilhões de dólares, ou seja, oito vezes mais. O rendimento muito elevado desses investimentos nas novas áreas emergentes (até dez pontos mais do que nos países desenvolvidos) explica facilmente a amplitude dessemovimento de capitais. Entre as condições favoráveis que ajudavam a entender melhor esta atração, os autores citam como uma das mais significativas (junto às escassas cargas fiscais e as facilidades para a exportação), os baixos salários para uma mão-de-obra qualificada, abundante e comprometida com seu trabalho.
 [5]

Posteriormente, após a fuga de capitais dos mercados emergentes, conseqüência da crise asiática e do default da dívida russa em 1998, as tendências de sobreacumulação foram reforçadas nos EUA por trás da euforia da nova economia, principalmente quando começarama cair os lucros das corporações não financeiras, processo que se estende de 1998 a 2001 (declive de quatro anos que a economia americana não experimentava desde 1973). Citemos as evidências que Isaac Joshua contundentemente aporta:

Na segunda metade dos anos 1990 o ritmo de crescimento dos investimentos das grandes empresas (líquido ou bruto) está, em longo prazo, acima da tendência. A amplitude do movimento é excepcional: não é possível encontrar semelhante crescimento sem nos remontar aos anos 1950 (o uso dos logaritmos permite colocar em evidência os ritmos de crescimento). Contrariamente ao discurso então na moda, a “nova economia” está longe de ser “imaterial” , supõe investimentos pesados em bens duráveis (infra-estruturas para as redes de internet, celulares, computadores, microprocessadores etc.). Apesar da obsolescência particularmente rápida, esses aparelhos não escapam de seu caráter de bens duráveis, por mais que tenham tempo de vida limitado, os proprietários não têm data marcada para trocá-los. A demanda
correspondente pode, assim, ter flutuações de grande amplitude, um período de readequaçãomuito intenso (como é constatável nos anos 1990) pode estar seguido por uma queda brutal das demandas. A sobreacumulação pode se manifestar de várias formas: sobreabastecimento dos mercados, sobrecapacidade, guerra de preços,
investimentos erróneos ou desproporcionais, levando tudo à queda dos lucros( ver gráficos 4 e 5 e Tabela 1). [6]

A substituição da febre da Internet pela febre imobiliária, nos EUA e em
outros países, como Espanha e Inglaterra, combinou, como toda “bolha
especulativa” , o crescimento desmedido de ativos financeiros [7] com importante
sobreinvestimento de ativos reais (moradias, terrenos etc.), fundamentalmente, porém não exclusivamente, nos Estados Unidos. Na Espanha, o crescimento na construção de moradias (o item mais importante dentro do setor de construção) foi acompanhado fortemente de crescimento nas obras de infra-estrutura (estradas, portos, canalização de água etc.) e de edificações de todo tipo (fábricas, escritórios, hotéis, entre outros), com investimento público e privado. O resultado foi um aumento acelerado dos preços desses ativos, chegando a níveis totalmente excessivos, inclusive se fazendo avaliação
otimista dos lucros que podiam se esperar. A revista semanal The Economist, há mais de dois anos, vem dizendo:

Nunca antes o preço real das moradias cresceu tão rápido, durante tanto tempo, em tantos países. Os mercados imobiliários estão em efervescência, desde os EUA, Grã Bretanha e Austrália, até França, Espanha e China. O aumento dos preços das propriedades ajudou a impulsionar a economia mundial após a explosão, em 2000, da bolha do mercado bursátil. O que ocorreria se explodisse o boom da moradia? De
acordo com estimativas feitas pelo The Economist, o valor das propriedades residenciais nas economias desenvolvidas aumentou mais de 300 bilhões de dólares nos últimos cinco anos, superando os 700 bilhões de dólares, aumento equivalente a 100%do PIB combinado de todos esses países. O fato não apenas diminui qualquer boom prévio do preço da moradia, como também supera a bolha do mercado bursátil global no final de 1990 (aumento de 80%do PIB em cinco anos) e da bolha do mercado bursátil norte-americano em finais da década de 1920 (55% do PIB). Em outras palavras, comprova-se como a maior bolha da história.
 [8]

Nos EUA, o setor de moradia foi chave no crescimento económico de 2001 a 2006. Neste período, gerou um terço dos postos de trabalho criados e quase a metade dos gastos em consumo. No entanto, a sobreacumulação que provocou, se manifesta agora na pior depressão do mercado imobiliário desde 1929 - sendo que desde 2006 esta bolha vemsendo freada, colocando de lado os aspectos financeiros da crise.No último ano e meio, as vendas de novas residências (corte anual de 6,6% em julho) e os preços (1,4% menores) ainda não pararam de cair. Bill Gross, que dirige o principal fundo de bolsistas do mundo, fez um pedido diretamente ao presidente Bush, que salve a indústria de hipotecas subprime, para prevenir uma “destrutiva deflação no valor das moradias” . Ele alerta com a possibilidade de que mais de dois milhões de prestamistas entrem em default antes do término do ciclo atual. Gross adverte que os preços dasmoradias nos EUA podemchegar a cair 10%. E explica que tal queda nos preços das moradias “poderia representar deflação dos preços dos valores (ações) não visto desde a Grande Depressão” [9]. A forte queda nos preços é manifestação típica de crise de sobreacumulação.

Na Espanha o setor das construtoras representa aproximadamente um quinto (18%) do Produto Interno Bruto. A partir de 1999, quando ocorre a mudança da moeda de pesetas para euro, há crescimento significativo do setor, que obrigou a “aflorar” grandes capitais de negócios ilícitos para sua
legalização. A isto se soma que a taxa de juros fixada pelo Banco Central Europeu beneficiou particularmente a economia espanhola. A magnitude da sobreacumulação, que apesar de algumas quedas pontuais de grandes imobiliárias, como é o caso da Astroc, ainda não parou, pode ser ilustrada com um dado preciso: durante os últimos anos, se construíram mais moradias na Espanha do que na França, Inglaterra e Alemanha juntas. Não
surpreende que o calor de dito “padrão de acumulação” tenha desenvolvido vertiginosamente uma oligarquia financeiro-imobiliária poderosa que domina o financiamento e é dona dos conglomerados dos meios de produção necessários para produzi-las. Expressão disso é que cinco construtoras espanholas estão entre as dez maiores do mundo por capitalização bursátil, além do fato de que o Banco Santander está hoje entre os dez maiores em âmbito mundial. [10] Alguns outros exemplos da febre
construtora são dignos de serem assinalados:

Desde 1990 até 2000 o solo passível de ser urbanizado na Espanha aumentou 170.380 hectares, perdendo 239.248 hectares de solo florestal. A edificação de moradias veio aumentando até 2005, ano em que se bateram todos os recordes, com a construção de 812.0000 moradias [...] A degradação do litoral mediterrâneo e das costas galegas chegou a extremos escandalosos, aumentando as edificações em 1.700 quilómetros das costas acima citadas. No litoral galego estão previstas 600 mil moradias a mais. Porém, não apenas nas costas observamos a febre urbanizadora. Madri, entre 1990 e 2000, superou a média nacional edificando 50% do total construído em todo o território nacional. [11]

O contraposto do brutal desenvolvimento é que o número de moradias
vazias ascendeu no final de 2005 a 3,35 milhões, o que representa 14,59% do parque total de moradias no mercado espanhol (22,95 milhões de unidades [12] ), ao mesmo tempo em que milhares de pessoas procuram moradia em vão, e boa parte da juventude é incapaz de enfrentar o enorme gasto para adquirir uma unidade.

Por último, há o caso da China, o “milagre” económico ainda em andamento (e a nova esperança - bolha - para a economia mundial, que os economistas crêem ter encontrado após o murchar da economia americana). Ali, os sintomas de sobreacumulação são evidentes. O ex-economista que gerenciava as economias de Morgan Stanley, Stephen Roach, já dizia em meados do ano passado:

As “macrocifras” falam por si mesmas. Em 2005, os investimentos em ativos fixos alcançaram 45% do PIB chinês e deveriam exceder o limite de 50% em 2006. Não podemos negar as regalias a favor do investimento para o desenvolvimento da economia chinesa - urbanização, industrialização e infra-estrutura. Porém, a China
rompeu com esse molde, inclinando-se a favor de seu próprio modelo do setor provedor nessa macro-equação. Inclusive, em seus bons tempos, a proporção de investimentos no Japão e na Coréia nunca superou 40% do PIB. Pela segunda vez em dois anos, Pequim impós uma série de medidas de ajustes no setor de investimentos de sua superaquecida economia. Da mesma forma que no “esfriamento” de 2004, três medidas foram tomadas: um modesto aumento de 27 pontos básicos nos juros sobre os empréstimos, aumento de 50 pontos básicos na relação das reservas bancárias, e uma série de controles administrativos apontados em direção às indústrias mais importantes. No entanto, se essas medidas não funcionaram há alguns anos, duvido que o façam agora, enquanto o PIB nominal baseado no dólar é 35% maior e os fluxos de investimentos em ativos fixos são 60% mais altos do que eram em 2004 [13].

E para termos uma idéia do que isto significa internamente e em âmbito
internacional, em um artigo anterior o mesmo analista dizia:

Os efeitos da escala das operações apresentam um desafio cada vez mais sério para a estratégia macropolítica chinesa. Este nem sempre foi o caso, especialmente quando a economia chinesa era pequena e em grande medida subdesenvolvida. Mas esses dias ficaram para trás. Enquanto a China dava conta de apenas 5% do PIB mundial em 2005 (medido por tipo de câmbio com base em dólares), os setores “superaquecidos” agora têm um peso muito maior em sua própria economia, tanto quanto na economia global. Este é o caso em particular para o candente setor de investimentos fixos na China. É muito provável que em 2006 os investimentos em ativos fixos ultrapassem os 1,3 trilhões de dólares, o que representa mais de 50% do PIB chinês. Isto é totalmente espantoso em todos os níveis. Inclusive, em seus dias de glória, os investimentos no Japão e na Coréia nunca superaram o patamar de 40%; por outro lado, é provável que nos Estados Unidos, a maior economia mundial, os investimentos em ativos fixos estejam próximos dos 2,3 bilhões de dólares, ou 17% do PIB em 2006. Em outras palavras, por mais que o PIB chinês
represente apenas 18% do americano, os investimentos em ativos fixos da China se aproximam a 60% dos investimentos dos Estados Unidos. Colocando de outra forma, o “delta dos investimentos chineses” - o crescimento de seus gastos de investimento - diminui tudo o que tem sido visto nos últimos anos. De 2000 a 2005, registrou-se um aumento nos investimentos de ativos fixos da China, que subiram subitamente de 400 bilhões a 1,1 trilhão de dólares, aumento de 680 bilhões de dólares, que chega quase 70%a mais do que o delta de investimentos dos Estados Unidos, equivalente a 400 bilhões de dólares no mesmo período [14].

Não é surpresa que com essas cifras, já em 2006 a indústria automotriz teve capacidade suficiente para produzir 8 milhões de unidades ao ano, muito mais do que os 5,7 milhões de carros vendidos em 2005. Tampouco surpreende que 70% da oferta de produtos de consumo excedam à demanda solvente, de acordo com dados do Ministério de Comércio, fatores que contribuíram para triplicar as exportações chinesas nos últimos cinco anos. Como demonstram os exemplos - os quatro nichos do capitalismo mundial nos últimos anos - a inexistência de uma acumulação durável e generalizada a nível mundial que siga a recuperação da taxa de lucro não é sinónimo de uma desacumulação absoluta, como uma tese de
estancamento poderia sustentar, mas esta se combina com fortes processos de acumulação (e de sobreacumulação) em determinados países ou setores de produção, que são a base estrutural das fortes crises que vivemos nos últimos anos ou viveremos nos próximos. No caso da crise atual, diferentemente da crise asiática da década passada, a crise financeira nascida
nos EUA precede a crise de sobreprodução que, como mostra a maioria dos indicadores, está se gestando lentamente na à sia.

Aumento das crises monetárias e bancárias

Os crescentes fluxos de capitais vêm incrementando o desencadeamento
de crises monetárias. O comércio mundial de divisas alcançou 1,9 trilhões
de dólares por dia em 2004, três vezes mais do que em 1989 [15]. De acordo com Andrew Glyn,

se desenvolveram fluxos massivos de ida e volta de fundos entre bancos, e outras instituições simultaneamente se endividam e fazem empréstimos no estrangeiro. As estimativas mostram que o valor total do estoque de ativos estrangeiros de uma importante quantidade de países, duplicou entre 1980 e 1995, a partir de um equivalente de 36% do PIB para um 71% do PNB, tendo mais do que duplicado nas duas décadas anteriores. Em princípios de 2000, a relação provavelmente alcançou 100%, superando duas vezes seu pico em 1900. As transações de valores no estrangeiro de residentes americanos aumentaram 60 vezes em relação ao PIB entre 1977 e 2003 [16].

A mobilidade do capital é uma característica distintiva em relação ao
período de taxas de câmbio fixas de Bretton Woods [17]. As desvalorizações apenas eram permitidas em situações de “desequilíbrio fundamental” , a conta corrente da balança de pagamentos era geralmente vista como
constrição à qual a política doméstica devia adaptar-se. Os déficits de conta corrente eram pequenos. A diferença não pode ser mais contrastante: desde começo dos anos 80 e principalmente nos anos 90 e na década em curso, ocorre um substancial incremento do tamanho médio dos superávits ou dos déficits de balança de pagamentos (em relação ao PIB). O déficit de conta corrente dos EUA alcançou recorde de 791 bilhões de dólares em 2005, quase 6,5% de seu PIB. A brecha entre os países com déficit em conta corrente e com superávit mundialmente se expandiu para quase 6%do PNB mundial, o dobro de 2000. Jamais o mundo conheceu semelhante disparidade.

As taxas de intercâmbio real frearam-se um pouco depois dos anos 1970, mas nos anos 1990 estas movimentações aumentaram novamente, como visto nos anos 1960. De acordo com Andrew Glyn,

se estas fossem meramente flutuações ao azar ao redor de tendências satisfatórias, é de se esperar que as mesmas fossem absorvidas pela economia real sem custos excessivos, especialmente quando uma maior sofisticação dos mercados financeiros e seus participantes facilita sua própria proteção contra as flutuações nas taxas de câmbio nominais. No entanto, os movimentos anuais também coincidem com oscilações a longo prazo nas taxas de câmbio real (e, portanto, no custo da
competitividade dos setores comercializáveis de mercadorias), o que pode gerar na estrutura da economia um efeito duradouro e distorcido. Se prestarmos atenção às três divisas (dólar, yen e euro - que substituiu o marco alemão) pode-se verificar a reavaliação do dólar - chega quase a 70% na primeira metade dos anos 80 - seguida por uma brusca queda e depois por uma importante subida após 1995. Ambos, euro e yen, vêm mostrando importantes mudanças em sua competitividade real, geralmente seguindo como um espelho à do dólar. Tais movimentos contínuos na taxa de câmbio real podem ser extremamente perigosos para a capacidade da economia em médio prazo, pois são feito ajustes, há companhias que se retiram dos
mercados exportadores, demissão em massa de trabalhadores (que não se revertem imediatamente se a taxa de câmbio real se ajusta a um nível mais apropriado). Um detalhado estudo sobre a indústria manufatureira americana destacou que a valorização do dólar aumentava de maneira considerável a destruição de empregos,
porém isso não se compensava com a criação de novos postos de trabalho na manufatura quando o dólar voltava a se desvalorizar novamente.
 [18]

O mesmo autor afirma:

O caso patológico de flutuação da taxa de câmbio, uma verdadeira crise da “divisa” , convencionalmente se define como um mês no qual uma combinação da taxa de câmbio e os câmbios da reserva da moeda estrangeira ultrapassa o nível limite. Estudo recente de cinco países daOCDE (quatro países escandinavos e Espanha) demonstrou que cada umdeles havia tido pelomenos quatro crises financeiras desde 1970. O estudo mostrou situações em que havia grandes crises orçamentárias, de déficit de conta corrente, ou “excessos financeiros” , como também crises provocadas por convulsões bruscas nosmercados de capitais internacionais e ataques especulativo autocomplacentes ’ “as crises também ocorrem em economias com fundamentos irrepreensíveis” A
incidência de crises baseada em algum elemento das divisas aumentou no período das taxas flutuantes a partir de 1973 até 1987, pior do que a da década seguinte. [19]

Nos últimos anos, as crises monetárias foram acompanhadas por
crescente instabilidade financeira, como a que vivemos hoje em âmbito
internacional e que tem seu epicentro nos Estados Unidos. Junto com estas vemos a volta das crises bancárias, que praticamente haviam desaparecido nos anos do boom. Analisemos as seguintes estatísticas para comprovar que isso não é uma questão passageira e tampouco acidental, mas que tem caráter sistêmico [20].

Pesquisa feita pelos economistas Gary Clyde Hufbauer e EricaWada, do
Institute for International Economics, levantou um indicador estatístico
impactante [21](ver Tabela 2): de 1970 a 1998 produziram-se 64 crises bancárias e 79 crises cambiais no mundo.

Outros autores, em abrangente estudo histórico, chegam a conclusão
mais significativa a respeito das crises bancárias:

O que parece que está mudando é a freqüência das crises, maior nas décadas de 70, 80, 90 do que no total do século XX e a década de 50 e 60 em particular. O aumento na freqüência atribui-se principalmente a uma maior incidência das crises das divisas e das crises gêmeas (situações nas quais a crise bancária e a de divisas coincidem e
se reforçam mutuamente [22]) (Ver gráfico 6).

AS RAZÕES DE FUNDO DESSA EVOLUÇÃO

Qual é a razão das evoluções e comportamentos acima citados? Por que
o capitalismo contemporâneo está a um nível de crise similar ao período
entre guerras mundiais? Nesta seção tentaremos dar respostas a estas
interrogações.

A desestabilização do sistema financeiro e a ofensiva neoliberal

A desestabilização do sistema financeiro é conseqüência da ofensiva
“neoliberal” para maximizar os lucros capitalistas. A liberalização financeira das últimas décadas implicou a desintegração das barreiras entre os bancos de investimento, os bancos comerciais e as companhias de seguro estabelecidas pelo New Deal como resposta ao superendividamento e à superespeculação de década de 1920, que termina com a quebra de 1929 e a Grande Depressão. A transformação foi acompanhada pela titularização de empréstimos [23] em grande escala, com o objetivo de não estar ligada a ativos reais e possuir títulos de propriedade facilmente vendáveis por trás da busca do melhor investimento. Ou seja, a participação dos empréstimos bancários
tradicionais se reduziu e o financiamento por meio de bónus aumentou [24].

As transformações no sistema financeiro vieram acompanhadas na
administração das corporações pelo desenvolvimento do “modelo anglosaxão” , o capitalismo acionário [25].

Ambas as transformações, nos mecanismos e instituições de financiamento e a estrutura interna das empresas, ampliaram o terreno para a ofensiva do capital sobre o trabalho. Como resultado da ofensiva os detentores do capital ficaram livres para quebrar todos os compromissos (e concessões) com os trabalhadores obtidos após a Segunda Guerra Mundial [26], e sancionar no mercado bursátil as estratégias de “criação de valor” das empresas. Esse elemento, em conjunto com a extensão do capital a novas áreas geográficas e setoriais (voltaremos ao tema mais adiante), permitiu a recuperação da taxa de lucro, que vinha caindo desde a década de 60, nos EUA e nas principais potências imperialistas. O processo é o que se conhece como “neoliberalismo” . No entanto, a liberdade recuperada do capital líquido ou financeiro foi ao custo de incrementar o potencial desestabilizador das finanças, aumentando sua interpenetração com o capital produtivo (ou o “capital em função” , segundo Marx) em um mercado internacionalizado e sua tendência à sobreprodução por um lado; e, por outro, sua face especulativa.

Vejamos o primeiro aspecto, a interpenetração com o capital produtivo.
No capítulo de O Capital sobre “o papel do crédito na produção capitalista” , Marx sustenta:

Se o sistema de crédito aparece como alavanca principal da superprodução e da superespeculação no comércio, isto apenas ocorre porque neste caso se força até o limite extremo seu processo da reprodução, elástica por sua natureza, e porque o força por conta de que uma grande parte do capital social resulta empregado pelos não
proprietários do mesmo [...] quebrados pelo sistema de crédito
 [27].

Nas crises de sobreacumulação que exemplificamos, as características
que Marx outorga em geral ao sistema de créditos e as sociedades por ações foram levadas a limites impensáveis: o estímulo por via do endividamento da expansão produtiva a níveis gigantescos, muito além da capacidade de lucratividade ao nível das expectativas de lucro esperados pelos numerosos investidores, resultando em uma superabundância de mercadorias que não representam trabalho socialmente necessário. Simultaneamente a esse aspecto, a profusão do crédito abre espaço para o desenvolvimento das famosas bolhas especulativas. Induzido por grandes quantidades de dinheiro barato começa-se a se formar uma pirâmide de dezenas, ou centenas de vezes superior ao valor subjacente do ativo original, seja uma propriedade no mercado imobiliário ou uma companhia produtora de mercadorias criadas pelo primeiro empréstimo que apenas se sustenta por meio de crescentes quantidades de criação de crédito. O empréstimo original é revendido sob a forma de bónus, para distribuir o risco e fazer novos empréstimos. Por sua vez, os títulos são usados como garantia para
obter maior financiamento dos bancos para investir nesses ou em outros
bónus. E a expansão financeira se acelera até chegar a um ponto de ruptura, no qual o endividamento excessivo está financiando comportamentos especulativos, um valor dos ativos altamente inflacionado e empresas que apenas são viáveis à medida que as condições do boom creditício continuem existindo. A desintermediação das finanças levou as tendências a limites desconhecidos, criando superestruturas cada vez mais colossais sobre bases cada vez mais estreitas. É assim que um articulista do Washington Post explicava recentemente:

No modelo antigo um banco podia essencialmente pedir dinheiro emprestado de seus depositantes e emprestá-lo a proprietários ou companhias que precisavam de empréstimos. No entanto, cada dólar que emprestavamao banco requeria-se colocar parte de seu próprio dinheiro em conceito de reserva para cobrir perdas que poderia sofrer no
caso de que não se pagassem alguns dos empréstimos. Mas tudo isto acabou com a desregulamentação e o aumento da engenharia financeira. Atualmente, os grandes bancos pedem emprestado a maioria do dinheiro que emprestam vendendo bónus a seus investidores. E a maioria dos empréstimos que fazem não se contabilizam nos livros, mas imediatamente passam a formar um pacote junto com outros empréstimos e são vendidos a outros compradores, como os fundos de cobertura (hedge funds). Diferentemente dos bancos, os fundos de cobertura não são obrigados a manter níveis mínimos de capital, e podem comprar os instrumentos (ou seja, fazer empréstimos) com a totalidade do dinheiro proveniente de empréstimos. E, como não têm que revelar seus investimentos, nenhum regulador tem idéia do
tamanho da dívida no sistema ou onde está concentrada. Estima-se, por exemplo, que mais da metade dos empréstimos utilizados para financiar aquisições das corporações está agora em pacotes financeiros com outros empréstimos, e vendidos como ”˜obrigações colaterais de dividas”™ (CDO, abreviação em inglês). Entre os grandes compradores de CDO estão os bancos de investimento que os empacotam com outros CDOs, e os colocam à venda novamente. Os mesmos se denominam “CDOs ao quadrado”
 [28]

Pearlstein continua explicando que

esta engenharia financeira fomenta a ampliação de dívidas sobre dívidas [29], fazendo com que o sistema seja mais suscetível a uma queda brusca caso o crédito se torne repentinamente mais caro, ou se não há crédito disponível. É precisamente isto o que estamos vendo se desenvolver nas últimas semanas.

E apontando ao coração da crise - a exposição dos grandes bancos
potenciais defaults (não pagos ou quebrados) de empréstimos - assinala:

À medida que este drama do mercado creditício se expõe, os grandes bancos e as casas de investimento deWall Street ficam no centro das atenções. De acordo com gerentes de ativos de Barings, estas instituições comprometeram-se a doar 500 bilhões de dólares em créditos para financiar aquisições das corporações, com a expectativa de que rapidamente possam revender esses créditos com uma margem de lucro. Várias ofertas, no entanto, foram retiradas por causa da falta de
compradores, e há uma grande posibilidade de que os bancos se vejam forçados a vender muitos créditos a preços baixos, ou retê-los em seus livros e apontar seu valor.

Terminemos este ponto com números chocantes, para imaginarmos a
magnitude que adquiriu a inflação da esfera financeira. Durante os últimos anos, os chamados derivados se desenvolveram e se criaram instrumentos financeiros destinados à especulação, com os tipos de câmbio, taxas de juros ou cotizações dos bónus. Como explicamos no caso anterior, as especulações se realizam não apenas com fundos próprios, como também com créditos, ou comprometendo apenas parte do total da operação envolvida, o que permite ampliar sua magnitude e seu nível de risco [30]. Em seu último estudo, o (anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-Bank)))))))))))))))))))) of International Settlements (BIS) calcula que o total do valor ”˜nacional”™ de todos os derivados pendentes no mundo refletia a incrível cifra de 415 trilhões de dólares. A soma representa oito vezes o PIB de toda a economia mundial, 20 vezes o total de todo o estoque acionário americano
e 50 vezes a dívida total do Tesouro do governo dos EUA. De acordo com
o BIS, no entanto, em 1998, última vez em que o mercado de derivados
quase se aniquila, eram apenas 80 trilhões de dólares de derivados pendentes no mundo inteiro. Essa cifra já era enorme. Porém, hoje, o total dos derivados pendentes soma 415 trilhões, cinco vezes mais! Se o risco se expande entre as milhares de instituições, cada uma com capital suficiente para respaldar suas apostas, a bolha dos derivados pode não ser uma ameaça tão grande. Porém, a Agência Controladora das Divisas do Governo (em inglês OCC) informa que, nos Estados Unidos, apenas cinco bancos controlam 97,1% dos derivados de todo o sistema bancário americano de conjunto. Pior ainda, entre estes cinco bancos, nenhum detém capital para cobrir seu risco de crédito líquido, a medida básica que o OCC usa para avaliar os riscos que assumemesses bancos emoperações comderivados. Cabe novamente citar 1998 no momento da última débâcle. JP Morgan Chase, ator mais importante no mundo do mercado de derivados, tinha 3,80 dólares de risco de crédito por dólar de seu capital. Atualmente, a OCC informa que a JP Morgan Chase tem 7,99 dólares em risco de crédito por dólar de capital. Cifra enorme, representa mais do que o dobro de seu nível de risco de 1998! E, junto com o resto dos grandes bancos, como o Citigroup, (anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-Bank)))))))))))))))))))) of América ou Wachovia. O maior banco americano, o (anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-Bank)))))))))))))))))))) of América, também está com a corda no pescoço, arriscando seu capital quatro vezes. De acordo com dados do OCC, o ator mais importante no mercado de derivados - JP Morgan Chase ’ é quem se arrisca mais: oito
vezes seu capital total. Por último, e se faltava peça nesse terror financeiro, baseado nos dados coletados - porém não publicados - pela OCC, menos de 9% do mercado dos derivados dos mercados americanos negocia-se em transações reguladas. Os 91% restantes são estritamente contratos verbais, fora do domínio das transações reguladas. Isto significa que cada parte é responsável pelo monitoramento do crédito e da confiança de cada contraparte.

A internacionalização do capital produtivo: o mundo para o capital, mas também para a difusão de sua crise

A extensão do capital a novas áreas geográficas em uma fenomenal
internacionalização do processo de produção capitalista também permitiu a recuperação da taxa de lucro, que vinha caindo desde finais dos anos 1960 nos EUA, e nas principais potências imperialistas. O processo que começa gradativamente durante o boom do pós-guerra e se acelerou a partir da década de 1970, quando ocorre a procura por pa—íses com mão-de-obra barata com o objetivo de baratear porções do processo de produção trabalho - intensivas- , e dessa forma aumentar as margens de lucro. O resultado da maior homogeneização e interconexão [31]
da economia mundial capitalista tem sido a aceleração da difusão das crises recessivas ou depressivas, aumentando a
intensidade das mesmas, e que colocam de manifesto as crises dos mercados emergentes da década passada, principalmente a crise asiática ou agora as primeiras mostras da crise financeira internacional. Lênin, em seu famoso livro O imperialismo, fase superior do capitalismo, definiu uma das características centrais da primeira onda de internacionalização do capital de fins do século XIX, começo do século XX: a exportação de capitais. Esta característica se mantém até hoje. Porém, há uma diferença qualitativa na com-posição dos fluxos de capitais: hoje primam os investimentos estrangeiros diretos (IED), especialmente títulos que em maior medida financiavam o Estado e não os agentes privados essencialmente no desenvolvimento da infra-estrutura, como, por exemplo, ferrovias. Veículo para o estabelecimento de novas relações de produção capitalista, essa IED implica a destruição das velhas relações de produção, verifica-se na redução da população ativa dedicada à agricultura e no crescente processo de aumento do trabalho assalariado em âmbito mundial. É uma mundialização do capital
produtivo. Como bem explica Isaac Joshua, esta é a extraordinária
especificidade da mundialização atual:

É a do capital de produção em si, diretamente, sem migrações massivas de população. A mundialização do final do século XX prolonga, desta forma, a do século XIX americano, porém se diferencia desta profundamente porque em lugar de ser uma “mundialização inflacionada” , é mundialização-transformação, na qual o capitalismo
se apropria das velhas populações ao invés de exportá-las a novos territórios. O capitalismo se lança a partir de agora aos países de história antiga, de civilizações antigas, para ali destruir, substituir, recompor as relações de produção existentes. A mundialização do século XIX estendeu o assalariado a novos territórios (o continente
americano), permitindo a existência, à sua margem, da imensidade de relações de produção “tradicionais” (Ã ndia, China etc.). Por sua vez, este aumento do trabalho assalariado penetra nos antigos espaços sociais, destrói as antigas relações de produção e, fazendo-as se destruírem, redistribui à maneira capitalista os elementos dispersos. A dinâmica do capital se aproxima de seu ideal: que tudo na terra seja capital ou
frutificação de valor (ver anexo, “Uma assalariamento universal” ).

A mundialização do capital produtivo se converteu, por outro lado, em
duas modificações substanciais do processo de produção capitalista:
crescente processo de integração do mercado de trabalho mundial, que por sua vez une os assalariados do mundo inteiro, desestabilizando as relações salariais nacionais, e ameaçando os sistemas de previdência social; por outro lado, a redefinição da velha divisão mundial do trabalho comparada com a época do imperialismo clássico.
A respeito do primeiro processo, no marco das tendências assinaladas
acima, nas últimas duas décadas o processo de restauração do capitalismo na China, ex-URSS e Leste Europeu, assim como uma maior abertura ao mercado mundial por parte de alguns países da periferia, que tinham um desenvolvimento mais autárquico, como a à ndia, ampliou de maneira significativa a oferta da força de trabalho mundialmente. Isso provocou uma margem de vantagem enorme do capital em ralação ao trabalho. Mesmo tendo diferenças sobre seu impacto, diversos trabalhos dão conta disto. Citemos alguns. Richard Freeman, economista de Harvard, defende:

A comunidade económica mundial e os que projetam as políticas económicas dos governos e das instituições internacionais ainda não compreenderam a fundo todo o desenvolvimento económicomais importante que ocorreu nessa etapa da globalização - a duplicação da mão-de-obra em âmbito mundial. Estimo que a inserção na economia mundial da China, à ndia e ex-bloco soviético recortou a relação capital trabalho global aproximadamente em 55% a 60%. A duplificação à qual me refiro é a crescente quantidade de pessoas inseridas na economia global, como resultado de a China, à ndia e ex-União Soviética terem abraçado o mercado capitalista. Em 1980, a força de trabalho mundial consistia de trabalhadores dos países avançados, partes da à frica e a maior parte da América Latina. Aproximada-mente 960 milhões de pessoas estavam inseridas nessa economia. O crescimento da população, principalmente nos países mais pobres, fez com que o número de empregados nessas economias aumentasse para 1,460 bilhões em 2000. Mas nas décadas de 80 e 90 ingressaram no mercado de trabalho mundial trabalhadores chineses, indianos e do ex-bloco soviético. Obviamente, esses trabalhadores já existiam. A diferença, no
entanto, consiste em que de repente suas economias se somaram ao sistema de produção e consumo mundial. Em 2000, estes países contribuíram com 1,470 milhões de trabalhadores à força de trabalho mundial, de fato duplicando o tamanho da nova força de trabalho que está inter-relacionada. Os novos participantes da economia mundial trouxeram pouco capital. Seja pela pobreza ou pela desvalorização
de suas moedas. Uma diminuição na relação capital-trabalho em escala mundial inclina a balança de poder dos mercados contra os salários pagos aos trabalhadores que competem para trabalhar com esse capital (...) A relação capital-trabalho é um crítico determinante dos salários dos trabalhadores e das recompensas do capital. Quanto mais capital tem cada trabalhador, mais alta será sua produtividade e seu salário
 [32].

O ex-economista líder do Morgan Stanley, Stephen Roach, há anos
insiste que o que denomina “a arbitrariedade do trabalho global” (“Global Labor Arbitrage” ) mudará a economia mundial. Em artigo de 2006 dizia:

Provavelmente não é uma coincidência que a relação entre o crescimento da produtividade e compensação do trabalhador tenha se esvaecido à medida que forças da globalização se intensificaram. Primeiramente no setor manufatureiro, agora nos serviços. O fenómeno da arbitragem do trabalho global tem sido implacável em empurrar para baixo os salários americanos em níveis internacionais. Porém, a redução salarial real nos EUA não tem sido uniforme em todo o espectro da renda. Em grande medida isso vem acontecendo porque existem cada vez mais segmentos amplos do mercado de trabalho americano que estão expostos a uma poderosa e excepcional força competitiva - a informática - que facilita a arbitragem. Graças à velocidade de penetração da internet, a arbitragem trabalhista global chegou a áreas
que historicamente não estavam acostumadas à competitividade salarial. Em pesquisa anterior me deparei com a desconexão entre a compensação e o crescimento da produtividade, durante a expansão económica atual detectei que foi muito maior na área de serviços do que na manufatureira. Este segmento da economia americana, que antes não era comercializável, está sentindo cada vez mais a poderosa força da arbitragem trabalhista global. Isto faz com que trabalhadores de baixo custo, bem treinados e altamente qualificados de Bangladesh, Xangai e Europa Central e Leste se insiram no mercado global dos trabalhadores intelectuais. Este é o caso de programadores, engenheiros e designers de softwares, como também é válido para
a ampla gama de profissionais que trabalham arduamente em postos legais, de contabilidade, médicos, consultores e analistas financeiros. Dentro do âmbito global de trabalhadores igualmente qualificados, atua uma arbitrariedade poderosa para diminuir as disparidades laborais. Como resultado, a redução do salário real em economias abertas, tais como as dos EUA, ascendeu rapidamente à cadeia de valor, deixando cada vez mais uma porção menor de níveis mais altos da hierarquia
profissional. Em outras palavras, a arbitragem do trabalho global que permite a informática é receita certa para o aumento da desigualdade dos que ingressam
 [33].

Florence Jaumotte e Irina Tytell, dois pesquisadores de economia do
FMI, atribuem proporção maior na deflação do preço da força de trabalho
ao progresso tecnológico do que à internacionalização do processo
produtivo. No entanto, não negam sua influência:

A globalização é um dos tantos fatores que vêm atuando para reduzir a parte do ingresso ao mercado de trabalho correspondente aos trabalhadores de economias mais avançadas, apesar das rápidas mudanças tecnológicas terem tido um impacto maior, especialmente nos trabalhadores dos setores não qualificados.

E completam:

Uma primeira pergunta é como a abertura da China, Ã ndia e países do ex-bloco do Leste, junto com os desenvolvimentos demográficos em curso, vem afetando a oferta global de mão-de-obra. Isto não é fácil de responder porque depende muito das suposições sobre qual a proporção da força de trabalho de um país que está no mercado mundial ou poderia chegar a competir nele. Uma abordagem simples é
balancear a força de trabalho de cada país de acordo com a relação entre as exportações e o PIB. A oferta global de força de trabalho real quadruplica-se entre 1980 e 2005, e a maior parte deste aumento acontece depois de 1990. Por causa de marcado crescimento da população em idade produtiva e maior abertura comercial, o leste asiático contribuiu com a metade desse incremento, o sul asiático e os países do leste dão conta de aumentos menores. Enquanto a maior parte do incremento absoluto da oferta global da mão-de-obra consistia em trabalhadores com níveis baixos de educação (não têm educação universitária, terciária ou superior), a oferta relativa de trabalhadores com educação superior cresceu aproximadamente 50%nos últimos 25 anos, a maioria proveniente de economias avançadas, porém a China
também se inclui.

E por último, com relação a quais são os setores da economia mais
afetados afirmam:

Observando separadamente os setores qualificados dos não qualificados, o fator principal que afeta a porção de ingresso no mercado de trabalho de trabalhadores no setor não qualificado, sobre o período estudado, por fora da troca de emprego para os setores qualificados, é amudança tecnológica.Oresultado é coerente coma crença de que os computadores e outros equipamentos de tecnologia informática operam como um substituto da mão-de-obra não qualificada, e tendem a complementar a mão-de-obra qualificada. Por outro lado, a globalização da mão-de-obra contribuiu para a diminuição na porção dos ingressos nos setores qualificados, muito mais do que no setor não qualificado. Isto coincide com outros descobrimentos anteriores, que o aumento dos deslocamentos de empresas afetou majoritariamente os trabalhadores
qualificados ao invés dos trabalhadores não qualificados [34].

A segunda conseqüência do processo de internacionalização do capital
produtivo é a redefinição da velha divisão mundial do trabalho. A nova
divisão do trabalho que a estratégia produtiva das grandes corporações foi impondo tem implicado crescente gravitação da lei do valor em nível
mundial. A maior influência das transnacionais, cada vez maior em outras
áreas de valorização do capital, como os serviços, tende à formação de preços mundiais em cada vez mais ramos da economia.

Isso é diferente do “imperialismo clássico” , em que os países da periferia
capitalista eram integrados à economia mundial como abastecedores e
produtores de matérias-primas para os centros metropolitanos. Diferencia-se também do avanço nos anos do boom das multinacionais e de instalação de filiais em mercados protegidos, ainda que tenha sido nesse momento em que começa o processo de internacionalização do capital produtivo. A novidade nas últimas décadas é que a “especialização” primária como produtores de matéria-prima combina com a integração de um importante número de países da periferia aos circuitos de produção manufatureira internacional, administrados pelas transnacionais e outras companhias de menor porte, como o capital chinês ultramarino; processo permitido pelo barateamento significativo do transporte e das comunicações.

É importante ressaltar que diferentemente do que as teses “globalizadoras” sustentam (supõem maior internacionalização do processo de produção no nível das grandes indústrias), aparentemente deixariam atrás as fronteiras nacionais, e as diferenças na produtividade e nos salários entre os distintos países, contrariamente essas se aprofundam como base para baratear a força de trabalho para a obtenção de lucros extraordinários das grandes transnacionais. A crua competição entre os países da periferia, com o fim de atrair os grandes capitais mediante baixo nível dos salários, uma queda das cargas fiscais sobre o capital, a quase nula proteção social ou a ausência de legislações sobre o meio ambiente são exemplos.

O resultado é a formação da nova divisão mundial do trabalho, na qual
certos países (os países centrais) tendem a concentrar os trabalhos complexos e a ciência básica, outro grupo de países (determinadas zonas da periferia) a exploração intensiva da força de trabalho, enquanto outros se mantêm como produtores de matérias-primas, e por último há um setor de países que funciona como reservatório de população operária, privados de qualquer possibilidade de se integrar ao processo de produção, como é o caso da maior parte do continente africano. A reestruturação da economia mundial permite às grandes transnacionais obter lucros exorbitantes, garantir novos mercados para seus produtos, pressionar o preço das matérias primas e preservar seu monopólio tecnológico.

Como podemos observar, a internacionalização do capital produtivo
transformou quase todo o planeta em sua cota de valorização, e tem sido um dos elementos essenciais que permitiram a recuperação da taxa lucro. Ao mesmo tempo, isto implica que os mecanismos de propagação e contaminação das crises tenham se acelerado. Issac Joshua enfatiza:

Contrariamente ao que ocorreu durante a Grande Depressão, hoje continentes inteiros, como a à sia, países tão imensos, como a China, podem ser alcançados pelo turbilhão de uma crise e ao mesmo tempo ampliá-la, somando seus próprios desequilíbrios de um mundo em ebulição.

Mostra disto é que o processo de produção mundial é dependente dos
EUA. Colocando de lado as conseqüências sobre os mercados financeiros e acionários - atualmente uma das principais vias de contágio das convulsões da economia mundial como mostra a atual crise financeira internacional - vejamos o efeito que uma crise nos EUA teria no comércio e no PIB de seus sócios comerciais:

Como sugere o déficit comercial recorde dos EUA de 800 bilhões de dólares, os exportadores ao redor do mundo são fortemente dependentes dos EUA como motor principal do crescimento da demanda global. Este é o caso, especialmente, dos sócios dos Estados Unidos, da Nafta: Canadá, a oitava economia mundial (intercâmbio), envia 84% de suas exportações aos Estados Unidos ’ 27% de seu PIB. México,
segunda maior economia latino-americana e a décima terceira do mundo, envia 86% de suas exportações aos EUA ’ 24% de seu PIB. Porém, os impactos disso também se evidenciam em outros lugares. Na China, quarta economia mundial, as exportações aos EUA chegam a 40% do total (levando em consideração a reexportação por Hong Kong) ’ 15% de seu PIB. Como conseqüência, a crescente
cadeia de fornecedores asiáticos “chino-cêntrica” é fortemente dependente das exportações chinesas-EUA. Isto significa que uma desaceleração nos EUA não afetaria, via China, somente o Japão, Taiwan e Coréia, mas também teria graves efeitos no complexo de produção global de commodities, que se tornou extremamente dependente da China nos últimos anos - Austrália, Nova Zelândia,
Canadá, Brasil, partes da à frica e, desde sempre, a Rússia. O restante do mundo é uma mistura de graus de concentração de exportações ”˜EUA-cêntricas”™. No Japão, onde a tendência de últimos cinco anos de crescimentos das exportações (+5,2%) foi três vezes mais rápida do que ritmo do crescimento de consumo privado (1,6%), um total de 24% de suas exportações atualmente vão diretamente aos EUA. Além
desses 24%destinados aos EUA, 14%das exportações japonesas se destinam à China -atualmente seu segundo mercado de exportações ’ que, como mencionado, sua demanda final está destinada aos EUA. Portanto, é difícil imaginar o Japão escapando das conseqüências de um desaceleramento dos EUA. A Europa, que destina apenas 8% das exportações aos EUA, provavelmente está mais bem preparada para resistir a um encolhimento da demanda americana, porém os laços cada vez mais estreitos com a à sia colocam as exportações européias indiretamente expostas aos EUA. Em resumo, não há dúvida de que existe um padrão ”˜EUA-cêntrico”™ do crescimento das exportações, característica que deixa a economia global de baixo consumo vulnerável
a qualquer retirada prolongada do consumidor americano
 [35].

Uma recessão americana afetaria o conjunto do planeta. Visto a partir do
ângulo da realização, o desaparecimento de velhas formas de produção
privou o capitalismo mundial de regiões que absorviam o excedente de
mercadorias da sobreacumulação e sobreprodução existente nos países
metropolitanos nos momentos de crise, como era o casa dos ex-Estados
operários burocratizados ou a substituição do modelo de importações na
América Latina. Paralelamente, do lado da oferta, as transformações do
sistema financeiro que permitem aos grandes grupos corporativos lançar
seus próprios bónus ou obrigações negociáveis deixando para trás os limites da intermediação bancária, permitiram a difusão mais rápida de produtos, processos e inovações. As imposições de norma de juros comuns em todos os países reforçaram as contradições clássicas do capitalismo, debilitando os mecanismos anticíclicos que operam tradicionalmente em âmbito nacional ou regional, como prova a existência do pacto de estabilidade européia que restringe o manuseio monetário e fiscal dos governos em momentos de recessão. Estes elementos, tanto da oferta quanto da demanda, implicam a tendência à profundidade da crise quando esta se desencadeia.

Que papel cumpre a China (e qual papel não cumpre) no novo modo de acumulação capitalista?

Em uma passagem do Capital, com uma intuição genial para a sua época, Marx evoca a hipótese de uma China capitalista. Constata o começo de “uma potência cosmopolita entre todos os trabalhadores do mundo dentro do desenvolvimento da produção capitalista” e prossegue: “Não se trata apenas de reduzir os salários ingleses ao nível dos do continente, senão baixar, em um futuro mais ou menos próximo, os salários europeus ao nível
dos chineses” . Marx cita o discurso de um deputado inglês: “Se a China se transforma em um país manufatureiro, não vejo como a população industrial européia poderá lutar sem descer ao nível de seus competidores” [36]. Por um lado, ao agravar a concorrência dos assalariados dos diferentes países, pressiona a redução do preço pago pelos capitalistas pela força de trabalho. O processo ocorre por meio da mundialização do processo da taxa de lucro, fundamentalmente nas cadeias de produção e distribuição de produtos manufatureiros, expresso na guerra de preços e na redução das margens de lucro das companhias. Seu rápido desenvolvimento tem provocado mudanças drásticas no valor da força de trabalho, com importantes conseqüências na distribuição regressiva da renda. Em outras palavras, a China exerce claramente pressão deflacionária sobre a força de trabalho. Concomitantemente, a integração da China (repetimos, como expressão mais acabada da nova divisão mundial do trabalho) à economia mundial
significou o barateamento de muitos elementos do capital constante, assim como de grandes quantidades de bens de consumo, ainda que os salários dos trabalhadores dos países imperialistas diminuem ou permanecem estancados. Entre as forças contrastantes da lei da tendência decrescente da taxa de lucro, Marx assinalava que por meio do comércio internacional,
o capitalismo é capaz de tirar vantagem das nações com menor composição orgânica do capital. Como explicou Marx, isso tende a incrementar a taxa de lucro

na medida em que o comércio exterior barateie parcialmente os elementos do capital constante, e em parte os meios de subsistência necessários pelos quais o capital variável se intercala, tende a aumentar a taxa de lucro ao incrementar a taxa de mais valia, fazendo descender o valor do capital constante [37].

É assim, em grande medida, que a integração dos países de mão-de-obra barata ao mercado mundial dá conta da redução generalizada no tempo de trabalho socialmente necessário nas mercadorias manufatureiras, o que ocasionou uma significativa deflação nos preços destas mercadorias nos últimos 15 anos. De acordo com o FMI:

Dado que as produções de baixo custo nos mercados emergentes e nos países em desenvolvimento continuarão integrando-se ao mercado mundial, é provável que essas forças assegurem uma baixa inflação em um futuro previsível, o que se assemelha à deflação secular associada com grandes aumentos na produtividade durante o período clássico do ouro como divisa mundial em finais do século XIX [38].

Um outro indicador para medir o impacto é a porcentagem de
importações de bens de consumo dos mercados dos países centrais. Por exemplo, no principal mercado consumidor, os EUA,Wal-Mart, a principal cadeia de comércio mundial e importadora americana de produtos da China e outros países do sudeste asiático, se vangloria de que sua política de baixar
os preços eleva o nível de vida dos americanos, economizando 100 bilhões de dólares ao ano aos consumidores ou aproximadamente 600 dólares ao ano por família, ainda que na baixa dos preços não apenas intervêm o enorme peso dos produtos importados como também os salários mais baixos
de seus trabalhadores, além de enorme infra-estrutura logística e de informática que é impossível de se alcançar para seus competidores no mercado de distribuição. Tomemos, para exemplificar o processo dos enormes lucros que recebem os imperialistas, um ramo da produção capitalista por excelência, a indústria têxtil, na qual a China é o maior produtor e exportador mundial, e, segundo a lógica da economia burguesa vulgar, um claro ganhador. No entanto, as coisas se dão ao contrário, como
demonstra o seguinte artigo:

Primeiro, as companhias têxteis estrangeiras dão conta de um quarto de todo o lucro das exportações têxteis chinesas: elas, não as companhias chinesas, beneficiam-se diretamente da expansão das exportações. Segundo, as companhias chinesas ficam com os três quartos restantes dos lucros das exportações, porém, geralmente a taxa média de seus lucros é baixa. A maioria é terceirizada de empresas estrangeiras, portanto apenas recebem uma fração do valor agregado que, freqüentemente, tratase de 10%. Empresas importadoras, como a Wal-Mart, entre outras marcas conhecidas, ficam com a maior parte do lucro. Terceiro, quanto mais produtos têxteis a China exportar, maior será sua necessidade de importar maquinaria têxtil dos países desenvolvidos, como a Alemanha, o maior exportador neste ramo.
Inclusive, a China tornou-se o principal importador do mundo desse tipo de equipamento e supera em 15% a Turquia, segundo país comprador de máquinas têxteis. No intercâmbio de produtos de mão-de-obra intensiva (têxteis chineses) por produtos de capital intensivo (maquinarias dos EUA e da UE), estes últimos ficam com o maior valor agregado. Portanto, o crescimento da China como exportador de produtos têxteis beneficia empresas chinesas, americanas e européias
 [39].

As duas primeiras razões mostram como opera a nova divisão mundial
do trabalho governada pelas grandes multinacionais e como é distribuída a mais-valia nesse ramo de produção. [40] A terceira razão, mais tradicional, mostra que o intercâmbio desigual não foi eliminado com a nova divisão mundial do trabalho, mas ocorreu uma mutação por mais que a relação não seja entre produtos manufaturados e matérias-primas e sim entre produtos
manufaturados de diferentes níveis de sofisticação técnica. Ocorre uma “commodittificação” da produção manufatureira. O balanço global da
incorporação da China ao mercado mundial está totalmente claro para uma das revistas mais influentes do capital financeiro internacional, que usa a seguinte metáfora:

A integração da população chinesa, de 1,3 bilhões de pessoas, será tão transcendental para a economia mundial como em seu momento foi a peste negra para o século XIV europeu, porém com um efeito contrário. A peste negra dizimou um terço da população européia, os salários aumentaram e os lucros do capital e a terra diminuíram. De forma contrária, a integração da China fará com que os salários dos trabalhadores não qualificados diminuam e os preços de bens de consumo, e aumentará o lucro global do capital [41].

O que foi previamente defendido deixa totalmente claro quais têm sido
os benefícios para o capital da restauração capitalista chinesa. Mas conseguirá a China superar aos EUA como consumidores em última instância, como se entusiasma a capa de 21/10/2006 da revista The Economist: “America drops, Asia shops?” (Os Estados Unidos caem, Ã sia compra?” ).

Comecemos ilustrando o que estamos falando: em 2005, o consumo
total americano totalizou 9 trilhões de dólares, 20% maior que o gasto de consumo na Europa e três vezes e meia a média japonesa, os três principais pólos imperialistas. Como entra nesta lista o “novo e vibrante consumidor asiático, em particular o milagre económico chinês?” . O managing editing do China Economic Quarterly, Arthur Kroeber, que conhece profundamente a realidade desse país, após morar 20 anos na China, não deixa pedra sobre pedra do mito. Em recente artigo enfatiza:

Muito se tem comentado sobre o boom de consumo na China e há considerável barulho sobre sua ascendente classe média. Alguns bancos de investimento chegaram a dizer que o consumidor chinês substituirá o consumidor americano como o condutor do crescimento económico até 2015. Ninguém contesta que a China é mais rica e que seus consumidores nas grandes cidades e na costa estão comprando
uma gama mais ampla de produtos, mas a notícia de um boom de consumo chinês é, em grande medida, uma fantasia, a versão moderna do sonho do ”˜fiandeira de Manchester”™ do século XIX [”˜Manchester mill-owner”™, o dono de uma fiandeira deManchester, usa-se como uma metáfora de desejo de ascensão social, N de R.] de cada chinês agregando uma pulgada a su faldón. A verdade é que o tamanho do
mercado na China é quase a metade do que se diz, e a chamada “classe média” é menor, está mais dispersa e tem poder aquisitivo mais baixo do que muitos gerentes de venda esperançosos imaginam. A China continua sendo em grande parte o que tem sido há muito tempo: um país grande, habitado por muita gente, a maior parte dos quais não possui dinheiro. A solução do quebra-cabeças é reconhecer que a
China realmente faz parte “dos países” do ponto de vista do consumo. O primeiro país, que poderíamos denominar “China de Sobrevivência” , consiste em aproximadamente 1 bilhão de pessoas que essencialmente compram comida e roupa em nível apenas acima da sobrevivência. Geram grande volume de vendas varejistas, mas vendas insignificantes do ponto de vista das companhias que vendem ou comercializam os bens de consumo estrangeiros ou de firmas estrangeiras instaladas
na China. O segundo país, “China Consumidora” , consiste entre 100 e 300 milhões de pessoas que têm rendas que lhes permitem uma quantidade significativa de gastos e que vivem em concentrações capazes de permitir altos níveis de investimento para os produtores e distribuidores de bens de consumo.
 [42]

Mais adiante se pergunta quão grande e quão rica é a “classe média”
chinesa:

Uma afirmação realista da “China consumidora” deve excluir não somente os lares abaixo do nível de renda, como tambémaquelesmuito remotos e dispersos. A “China consumidora” , portanto, consiste em diferentes regiões geográficas, onde o nível médio de renda é suficientemente alto para manter um gasto substancial.Mastercard
constata que estas compras tornam-se parte importante do consumo nacional, pois o PIB per capita supera os 5 mil dólares, nível consideravelmente razoável. As estatísticas chinesas identificaram precisamente duas áreas com esse nível médio de renda: Yangtze River Delta, que em 2005 teve uma população registrada de 82 milhões e um PIB per capita de 5.013, de acordo com a taxa de câmbio contemporânea, e Pearl River Delta em Guangdong, com uma população de 43 milhões e um PIB per capita de 5.184 dólares. Estas duas áreas contêm 125 milhões de pessoas, se agregarmos o corredor Pequim-Tianjin, que abarca aproximadamente 25 milhões de pessoas e mais ou menos a mesma média de PIB per capita, significa que a “China consumidora” é um “país” de 150 milhões de pessoas com um PIB per
capita de 5 mil dólares. Então, qual é exatamente o valor do mercado da “China consumidora” ? Uma ferramenta útil de análise é compará-la àMalásia, pequeno país que pode se considerar mercado único, com PIB per capita de 5 mil dólares e população de 25 milhões em 2005. Multiplicando a população da Malásia pelo seu PIB per capita, obtém-se o que poderíamos chamar deMalaysian Consumption Unit (MCU, Unidade de Consumo Malásia). Se repetirmos o mesmo exercício com a população consumidora da China e o PIB per capita como entradas (“inputs” ), podemos ver que gasto de consumo discrecional tem a China, em múltiplos do mercado malaio. Sobre esta base, a “China consumidora” tem MCU de 6, o mesmo ranking que a Coréia do Sul. Espanha (8), Alemanha (22) e Japão (37) estão muito adiante, enquanto os EUA (84) está em lugar própio, inclusive levando em consideração a população de 15 milhões excluída do mercado de consumo por distância geográfica
 [43].

Em outras palavras, a China é um milagre para baratear os custos das
grandes multinacionais, mas não é fonte de mercado significativo para a
maioria delas. O mesmo autor assinala, em outra nota, que, pelo contrário, o mercado chinês, pode ser onde se choque a realidade e as ilusões de grandes vendas de muitas multinacionais, com as conseqüentes perdas pelos importantes investimentos realizados para penetrar seu mercado interno. Assim:

As cadeias varejistas mundiais pensavam que tornar-se-iam ricas logo após o governo chinês levantar as restrições contra a participação estrangeira no mercado minoritário em finais de 2004. Há três anos, a esperada mina de ouro se assemelha mais a uma mina de ouro falso. Os novos participantes estrangeiros encontram-se frente a uma dura competição por parte de ágeis competidores locais. Inclusive firmas que contam com uma presença estabelecida terão de esperar anos antes que a China incremente de maneira significativa suas linhas de venda globais. O mercado varejista chinês é muito menor do que se acredita. O montante total de vendas varejistas na China se aproxima dos 500 bilhões de dólares. Metade desta cifra representa gastos em bens
de subsistência (comida e roupa) de parte da população, em áreas rurais e em pequenos vilarejos e cidades, que não constituem mercado importante para as grandes cadeias varejistas estrangeiras. O gasto varejista por parte dos consumidores urbanos que se encontram possivelmente dentro do alcance de grandes cadeias varejistas estrangeiras ronda provavelmente os 250 bilhões de dólares - cerca de uma décima parte da venda varejista, sem incluir os automóveis, dos EUA, que se estima em 2,5 trilhões de dólares. Inclusive, nesse mercado a maioria dos consumidores continua procurando preços mais baixos, e não a qualidade superior ou o melhor serviço que as grandes cadeias estrangeiras varejistas podem oferecer. Em 2006, entre as 100 cadeias varejistas mais importantes da China, havia seis estrangeiras. Somente
para uma delas - a britânica B&Q, dedicada à venda de artigos para o lar - a China representa mais de 5%de sua venda total. Porém, o rápido crescimento da China continua sendo uma grande atração, e é esta a razão pela qual recentes investidores estrangeiros no setor varejista, na China, são mais ambiciosos do que as atuais vendas pareciam justificar. O Carrefour abriu na China 20 dos 95 novos supermercados
que inaugurou no mundo inteiro apenas no ano passado. B&Q,Wal-Mart e a cadeia de supermercados britânica Tesco se expandiram agressivamente nos últimos anos. Dois grandes varejistas americanos - a cadeia que vende produtos para reparos no lar, Home Depot, e o gigante eletrónico Best Buy - entraram recentemente no mercado
através de aquisições. Essas grandes empresas apostam no fato de que o mercado varejista chinês ainda continua relativamente fragmentado. As 30 companhias varejistas mais importantes do país davam conta de 16,5% do mercado nacional em 2006, comparado com 37% e 31% para EUA e Coréia do Sul, respectivamente. Mas a fragmentação também representa obstáculos. O mais importante é o alto
custo unitário de distribuição. Os potenciais clientes de cadeias estrangeiras de venda varejista não estão distribuídos de maneira uniforme pelo país, mas se concentram em umas poucas ilhas: dois terços estão agrupados ao redor de Pequim, Xangai e Guagzhou - três cidades tão próximas umas das outras quanto Madri, Belgrado e Moscou. O sistema de transporte é ineficiente: os custos de logística na China representam 20% do PIB, comparado com o modesto 8% americano. Portanto, os varejistas estão pressionados entre o meio de um alto custo de distribuição e consumidores que sempre querem os preços mais baixos possíveis. Em um mercado assim, é difícil obter lucros
 [44].

A raiz dos desequilíbrios: eficiência em recuperar o lucro, estreiteza do
mercado mundial e feroz competição capitalista

A desproporção entre o investimento, as exportações e o consumo na
China não é somente característica do crescimento do gigante asiático, senão que, em última instância, é uma contradição aguda que surge das condições da economia internacional nas últimas décadas e do conseqüente estreitamento do mercado mundial, diferentemente da época dourada do boom. Em todos esses anos, a China, como paradigma da nova divisão de trabalho internacional, se beneficiou muitíssimo mais do que outros países por sua vasta disponibilidade de mão-de-obra barata, da tendência das economias e multinacionais dos países imperialistas a baixar os custos para recuperar a rentabilidade depois da crise dos anos 1970. A tendência se aprofundou como saída ao excesso de investimento dos anos 1990 nos EUA e a crise recessiva que a acompanhou, e segue se estendendo a novos setores (serviços) da economia mundial. No entanto, a mesma vem sendo contraposta por uma tendência oposta, mas que surge do mesmo processo de reestruturação e relocalização capitalista das últimas décadas: a estreiteza do mercado mundial, que não permite valorizar e realizar os níveis da taxa de lucro de maneira sustentável. Esse caminho, ainda que tenha permitido recuperar a rentabilidade, não levou a uma expansão como no boom do pós-guerra, senão a uma luta sem piedade pelos mercados. Desta lógica de ferro, resulta a busca incessante de fontes de mão-de-obra barata, o que beneficiou
particularmente a China, transformando-a em suposto “novo milagre
capitalista” (alguém se recorda que antes de 1997-8 esse mote era reservado para os NIC como Coréia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura, ou os segundos NIC, como Malásia, Tailândia e Indonésia?). A mesma lógica, por sua vez, traz grande interrogação sobre a sustentabilidade da nova divisão mundial do trabalho, a menos que se creia no sonho sem fundamento das grandes empresas, de que a China emergirá como grande potência consumidora, algo que muito dificilmente ocorrerá, por razões internas e externas, ao menos em um ritmo que evite potenciais cataclismos económicos nos próximos qüinqüênios. A esperança do Ocidente de que a China se converta não somente em uma “grande montadora mundial” , como também em um novo mercado consumidor que permita reequilibrar a economia internacional, mantida durante todos esses anos pelo crescimento para além de suas possibilidades, do consumo norte americano, não resiste à menor prova. Em outras palavras e generalizando, podemos definir os últimos anos como período florescente do ponto de vista da capacidade do sistema para tornar rentável o capital. No entanto, a mais-valia assim obtida tem cada vez mais dificuldades para encontrar espaços de acumulação
convenientes. Isso é reflexo, por sua vez, de uma contradição aguda entre a produção e o consumo, que está recriando nas últimas décadas as condições de uma crise de realização. Ao se estancar, a renda dos assalariados declina o poder de compra, e o ritmo de fabricação se desconecta da capacidade de absorção dos mercados. Alguns economistas, como Michel Husson, falam de um “equilíbrio de
subacumulação” . Diz o seguinte:

O capitalismo contemporâneo é antes de tudo um capitalismo superexplorador (carnívoro, como diria Anglietta): o incremento da taxa de exploração permite restabelecer a taxa de lucro sem gerar novos lugares de acumulação na mesma proporção. O consumo de mais-valia permite então a redução dessa diferença. Nesse esquema de conjunto, a financeirização tem dupla função: põe de pé a concorrência
exacerbada, necessária para sustentar a pressão para o incremento da exploração e estabelece um modo de repartição adequado às novas condições de reprodução do capital. Assim, não se pode caracterizar o capitalismo atual somente fazendo referência à financeirização, senão que há que ter em conta um conjunto de elementos para obter visão completa de suas contradições. A história concreta de algumas indicações sobre a ordem desses fatores: o giro liberal é antes de tudo uma derrota do trabalho para o capital, em que as finanças foram a alavanca, mais que um fator autónomo. O desenvolvimento posterior das finanças foi a forma de consolidar a nova relação de força, intensificando a concorrência, e de satisfazer ’ pelo menos de maneira provisória - as obrigações da produção. Parece que tudo anda como se as condições de reprodução estivessem asseguradas para uma taxa de
acumulação relativamente pouco elevada, em todo caso mais baixa que o potencial de nível da taxa de lucro associada. Poderíamos falar de um equilíbrio de subacumulação. Contudo, a acumulação está determinada pela exigência de rentabilidade e, ao mesmo tempo, pela necessidade dos mercados. A baixa dinâmica do investimento pode então ser explicada pelas características essenciais do capitalismo
contemporâneo:

 Diminui seus mercados: o consumo dos ricos é um substituto imperfeito do consumo assalariado e contribui para o desaceleramento do ritmo de progressão dos mercados globais, pois não é apoio suficiente para o investimento.
 Ao fixar a norma de competitividade muito elevada tende a “desvalorizar” os projetos de investimento, nos quais a taxa de rendimento é insuficiente e conduz as empresas a saldar suas contas com a distribuição dos dividendos.

Colocando a si mesmo regras de funcionamento “puro” , o capitalismo engendra uma expressão “pura” de suas contradições. De um certo ponto de vista, obteve o que queria: o emergir de normas determinadas no mercado mundial e o bloqueio mais ou menos universal dos salários. Porém, a configuração faz surgir de novo todas as suas contradições, em particular a busca de uma rentabilidade máxima em contexto de mercados oprimidos. [45]

Esses fenómenos profundos estão por trás dos crescentes desequilíbrios
da economia, como demonstra a existência, em âmbito mundial, de uma
sobreabundância de poupança sobre os investimentos, isto é a mais-valia não acumulada, em outros termos, o lugar crescente ocupado pelas finanças. Sobre essa realidade, Martin Wolf, principal analista económico do diário Financial Times assinala:

Para isto existem várias explicações: o fato de que a necessidade de investimento no Japão e na Alemanha tenha caído desde seus dias de alto crescimento; as importantes poupanças da China e algumas economias do leste da à sia; e a maior cautela dos exportadores de petróleo com respeito a gastar seus bens, comparado com os anos
1970 e princípios dos 1980. O esforço em absorver este superávit tem tido conseqüências intimamente interconectadas: a primeira, o surgimento dos chamados “desequilíbrios globais” , nos quais os EUA tinham absorvido cerca de três quartos do excesso de poupança do resto do mundo; a segunda, um grande período de relaxada política monetária, particularmente no Japão e na Estratégia ”˜eurozona”™, mas também durante um tempo nos EUA. Isso se explica com efeitos poderosos nos preços vantajosos, particularmente de imóveis em uma série de países de altas entradas. Os elevados preços imobiliários têm sustentado, em troca, a demanda de níveis altos, especialmente nos EUA, Reino Unido e Espanha.
 [46]

O aumento desses desequilíbrios permitiu o extraordinário ciclo curto de
crescimento da economia mundial de 2002/2006 e, por sua vez, explica a
pouca sustentabilidade em longo prazo do mesmo.

Para Husson, estamos talvez frente a uma crise sistêmica, isto é, um
período no qual estão questionados os próprios critérios de eficiência do
capitalismo. A realidade parece desmentir aqueles que no final dos anos
1990 se apressaram a falar de uma revolução tecnológica:

As múltiplas inovações acumuladas durante os últimos decênios não dão lugar a crescimentos de produtividade suficientes. É o que explica o “paradoxo de Solow” , que constata que os lucros de produtividade permanecem medíocres apesar das inovações tecnológicas e das transformações na organização do trabalho. A ausência de mercadorias suscetíveis de sustentar uma produção e um consumo de massas
impede retomar o “círculo virtuoso fordista” . Se essa leitura é correta, o capitalismo se encontra, talvez pela primeira vez em sua história, confrontando uma crise sistêmica. Essa põe em questão seus próprios critérios de eficácia, no sentido de que o capitalismo consegue cada vez menos “traduzir” em mercadorias rentáveis as necessidades hoje dominantes: saúde, educação, alojamento, qualidade de vida e,
sobretudo por definição de tempo livre. Se, segundo a fórmula de Robert Boyer, o mau capitalismo expulsa o bom, é porque a boa forma de fazer lucros (aumento rápido da produtividade social) é expulsa pela má, a saber, o bloqueio do salário sob todas as suas formas. Fazer da financeirização a característica principal de tal configuração é tomar um sintoma pela causa e é também permanecer na superfície das coisas, não dirigindo ao capitalismo uma crítica que vá à raiz de seus
fundamentos. [47]

Ou dito de outra maneira, é que “a boa forma de fazer lucros (aumento
rápido da produtividade social)” e dos salários só foi possível durante o boom do pós-guerra depois da enorme destruição de forças produtivas, conseqüência das catástrofes que se sucederam entre as duas Guerras Mundiais e a retração do consumo que a acompanhou (ver “O caráter excepcional do boom do pós guerra” ). Sem novos cataclismos e novas grandes crises, é impossível que o capitalismo do século XXI alcance relativo equilíbrio que o permita atenuar temporariamente suas graves contradições.Ocapitalismo “carnívoro” de hoje, para utilizar a expressão de Aglietta, não é mais que a volta sob novas formas da expressão mais profunda da época imperialista, isso é “o imperialismo como reação em toda a linha” . Diante do quadro pavoroso, as idéias de “aprofundar a democracia” , controlar os movimentos especulativos do capital e defender os espaços públicos soam como utopias reacionárias frente à única saída que pode evitar novas catástrofes para a humanidade: o fim da exploração capitalista mediante a revolução socialista internacional. Qualquer outro caminho é voltar ao reformismo em um momento em que, em termos históricos, não existe a mínima possibilidade de reforma.

As coordenadas geopolíticas: o já “não mais” da indiscutível supremacia norte-americana e o “ainda não” de uma nova potência emergente

Parte significativa da crescente instabilidade da acumulação capitalista
atual surge como conseqüência do declínio histórico dos EUA. Podemos
localizar o começo desse fenómeno no fim do boom do pós-guerra. Ao final dos anos 1960 e começo dos 1970, o ressurgimento do Japão e da Alemanha (no marco do processo de unificação européia) como potências emergentes terminou com a imensa superioridade económica norte-americana e deu origem à divisão do mundo em uma tríade de potências imperialistas mais ou menos equivalentes. [48]

Esse retrocesso relativo dos EUA levou ao fim do sistema Bretton
Woods [49]. Desde então, os EUA utilizaram o novo regime de câmbio flexível e a continuidade do dólar como moeda de reserva e meio de pagamento em âmbito mundial como forma de enfrentar a crise, manipulando em seu proveito esse privilégio somente reservado à potência hegemónica. O enorme benefício económico para os EUA lhes permitiu viver para além de seus meios, o que tem se expressado em um sobreconsumo e em déficits comerciais de grande magnitude. Exportando sua inflação50, os EUA têm aumentado a instabilidade e os desequilíbrios da economia mundial ’ como demonstra a aceleração de crises monetárias, financeiras e da bolsa de valores. Em outras palavras, durante esse período os EUA vêm atuando, cada vez mais, como o principal desestabilizador da economia capitalista mundial. [50]

[1Michael Husson, “Finance, Hyper-concurrence et reproduction du capital” em la Finance Captaliste,
Paris, PUF, setembro 2006.

[2Joseph Stiglitz, “Estados Unidos, la hora de la verdad” , Buenos Aires, IECO, 12/08/2007.

[3Patrick Artus, SophieMametz, Sylvain Broyer, “Allemagne et Japon: que faire après le rétablissementde de la profitabilité et de la compétitivité?” , em Flash Economie No 12, 11/01/2007.

[4Isaac Joshua define da seguinte forma uma crise de sobreacumulação: “[...] uma acumulação do capital que se efetua a um ritmo tal que não consegue manter no tempo a taxa de lucro que esperam os que aportam o capital. A sobreacumulação é, de certa forma, uma acumulação que não soube deter-se a tempo.Oinvestimento ocorre no começo do período de ascenso, comtaxas de lucromuito altas. Porém, devido ao próprio período de ascenso, as coisas se degradam: por exemplo, os novos quilómetros de vias ferroviárias construídas são menos rentáveis do que os antigos, o mercado potencial é sobreestimado ou se estanca mais rápido do que o previsto, outros países começam a produzir com preços mais baixos (e começam a captar o mercado), os custos de produção (entre os quais se encontramos salários) aumentam fortemente etc. A acumulação teria de se reduzir. Porém, estimulados pelas elevadas taxas de lucro, atraídos pelo afã de lucro, levados pela euforia, o investidor continua esperançoso de que o que funcionou uma vez continuará funcionando no futuro, que nos daremos melhor do que a concorrência etc. Uma parte dos lucros termina se acumulando em puras perdas. A oferta se incrementa, quando os preços já estão baixos o suficiente para assegurar a rentabilidade esperada das capacidades em funcionamento.
Uma conjuntura passageiramente favorável, um endividamento renovado, políticas governamentais de, apoio etc, podem, durante certo tempo, mascarar a situação e postergar os ajustes.Mas, cedo ou tarde,
a realidade se imporá sozinha e o ajuste será aindamais brutal, já que a sobreacumulação haverá chegado a níveis muito altos.” Isaaac Joshua, Une trajectoire de capital Paris, Editions Syllepse, 2006, pág. 182.

[5Idem, pág. 183-184.

[6Idem, pág. 230.

[7A especulação é consubstancial ao mercado imobiliário, aproveitando o fato de que a moradia é necessidade básica, cuja oferta é controlada ferrenhamente pelas imobiliárias, bancos e construtoras capitalistas,
que pressionam o preço para obter maior lucro. Por sua vez, o Estado, responsável pelos planos de urbanização, qualifica os terrenos segundo sua capacidade de ser edificado e o uso do solo, e, portanto delimita o tamanho do mercado imobiliário. Em geral, dada a escassez de solo edificável e o ritmo acelerado na construção em países como os Estados Unidos, as decisões relativas ao uso do terreno geram em si mesmo milhões de dólares e/ou euros de pura especulação, pois de fato não estão criando nenhuma riqueza. Compreende-se assim que é rica fonte de negociações e corrupção. Por sua vez, pelo fato de que o terreno para construir é um bem escasso e regulado, os capitalistas do setor
compram terrenos para logo vendê-los, a preços mais elevados, às construtoras (que às vezes são eles mesmos), obtendo com as operações desmedidos benefícios, que se transladam ao custo final da mercadoria. Portanto, se descarrega no consumidor, fundamentalmente a classe trabalhadora. Por último, o Estado também é proprietário exclusivo de recursos necessários ao desenvolvimento urbano, como
é o caso da água. Sem abastecimento a edificação não tem sentido. O mesmo ocorre com o mercado energético etc.

[8“The global housing boom: In come the waves. The worldwide rise in house prices is the biggest
bubble in history. Prepare for the economic pain when it pops,” The Economist 16/06/2005.

[9“Bush should bail out subprime industry” Agência Bloomberg 23/08/2007.

[10Referência de Carlos Sanchez, Los nuevos amos de Espanha, Madri, La Esfera de los Libros, 2007. O outro elemento que explica o fenomenal processo de enriquecimento e concentração de capital é a brutal exploração da força de trabalho. Da mesma forma que o boom da construção nos EUA, o principal componente que permite manter salários baixos e uma forte precariedade trabalhista é a grande proporção de mão-de-obra imigrante nesse setor da produção. Sánchez explica: “A massiva entrada de imigrantes com salários baixos alargou a oferta económica e, portanto, empurrou o crescimento do PIB. Nem a Alemanha dos anos 1950 e 1960 recebeu em tão pouco tempo tantos imigrantes. Os residentes estrangeiros passaram de 500 mil no começo de 1996, dos quais a metade
era proveniente da União Européia, a aproximadamente 4 milhões em 2006. Em outras palavras, o que antes representava 1% da população na Espanha hoje chega próximo dos 10%, o que supõe uma verdadeira revolução do mercado de trabalha do lado da oferta, sem o qual haveria sido impossível o
desenvolvimento do setor das construtoras, autêntico motor da economia espanhola” .

[11Teresa Galeote “El derecho a la vivienda o el derecho a la especulación?” El inconformista digital, 15/06/2006.

[12Dados da Fundação Eroski.

[13Stephen Roach, “China”™s great contradiction” , Morgan Stanley, 30/06/2006.

[14Stephen Roach, “Scale and the chinese policy challenge” , 19/06/2006. Este boom de investimento é empurrado pela competição entre as companhias imperialistas que não querem ficar de fora do suposto “Eldorado” chinês, o fácil acesso por parte de empresas estatais a um capital subsidiado através dos bancos estatais com o conseqüente desenvolvimento de inumeráveis companhias não rentáveis e o caráter fragmentado de decisões chinesas, onde cada região compete para atrair investimentos e gerar seus pólos de desenvolvimento de uma forma terrivelmente anárquica e ineficiente, que escapa às medidas da burocracia de Pequim, que demonstra-se imponente para frear as tendências de sobreaquecimento da economia, de acordo com a terminologia da economia vulgar, ou as tendências
de sobreacumulação que já viemos mencionando em termos marxistas. Junto com a inflação dos preços das matérias-primas, o perigoso potencial que já começa a ser percebido é um crescente aumento da capacidade produtiva ociosa, com a conseqüente sobreprodução e eventualmente tendências deflacionárias (queda dos preços das mercadorias). O sobreinvestimento se estendeu ao terreno do mercado acionário ’ por meio de distintos mecanismos como a utilização dos empréstimos de bancos estatais para comprar ações, ao mesmo tempo em que estas são utilizadas para adquirir novos empréstimos, e frente à falta de alternativas de investimento financeiro-, o que levou a um
crescimento fenomenal da bolsa de valores que não está respaldado em bases sólidas. Isso tem levado a que alguns bancos chineses (conhecidos pela sua carteira de empréstimos incobráveis devido às
conexões políticas para sua concessão) tenham uma relação de preço/lucro maior que gigantes como o Chase ou o Deutsche (anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-Bank)))))))))))))))))))))))))))))))).Tudo isto mostra como o milagre económico chinês vem acompanhado de fortes desequilíbrios. Para aprofundar o tema veja Juan Chingo, “Mitos y realidad de la China actual” , Estratégia Internacional No. 21, setembro de 2004.

[15Financial Times, 29/09/2004.

[16Andrew Glyn, “Global Imbalances” , New Left Review No.34, julho/agosto de 2005.

[17Concebido por John Maynard Keynes e Harry Dexter White em 1944, o sistema de Bretton Woods era algo mais do que um simples reconhecimento de que os Estados Unidos sairiam da Segunda Guerra Mundial emuma situação bastante avantajada economicamete, e que qualquer regime financeiro global viável tinha de partir dessa premissa. Exigia uma ação institucional específica e a aprovação do FMI para definir o tipo de câmbio de qualquer moeda frente ao dólar, e mais importante ainda, requeria que os Estados Unidos mantivessem tanto a vontade quanto a capacidade para vender ouro a 35 dólares a onça aos bancos estrangeiros centrais a pedido destes, o que significava que Washington tinha que empreender ações sempre que o déficit comercial ameaçava com uma perda precipitada de ouro. Quando, em1971, a administraçãoNixon suspendeu a venda do ouro, sem colocar em prática medidas restritivas para reverter o déficit comercial estrutural, e sem conseguir persuadir ou intimidar seus sócios comerciais - particularmente o Japão - para que empreendessem ajustes compensadores, o sistema cai.

[18Andrew Glyn, Op. Cit.

[19Idem.

[20É valida a seguinte metáfora de Stiglitz: “Quando apenas um carro tem um acidente na curva de uma estrada poder-se-ia tirar algumas conclusões sobre o motorista ou seu automóvel. Mas quando em uma mesma curva se produzem acidentes praticamente todos os dias, a conclusão é distinta: é provável que a causa seja a estrada. O próprio fato de que um número tão grande de países haja sofrido essas crises e precisaram de importantes medidas oficiais de resgate, permite pensar que existem algumas deficiências sistêmicas fundamentais.” Joseph Stiglitz, “Global Economic Prospects 1998/99” , Washington, Banco Mundial.

[21Gary Clyde Hufbauer e ErikaWada, “Hazards and precautions: tales of international finance” , Peterson
Institute for International Economics,Washington DC, 1999.

[22Barry Eichengreen, “Financial Instability” (paper) Berkley, University of California, abril de 2004.

[23Junto às ações bursáteis, são os dois principais mecanismos de financiamento direto, a diferença da intermediação bancária, ainda que a crise financeira atual demonstre, em um certo sentido, os bancos se transformaram nos principais mantedores deste tipo de financiamento. Em outras palavras, apesar das regularizações a que estão sujeitos, e à imagem de maior seriedade e aversão ao risco que tratam de mostrar, estes também participam ativamente em operações arriscadas.

[24É desta forma que os nove países mais desenvolvidos tiveram um aumento de 54% do PIB em depósitos bancários em 1985 a 56% em 1997, enquanto os ativos dos investidores institucionais (seguradoras,
fundos de pensão e hedge funds ou fundos de cobertura de alto risco) passam de 73% a 145% do PIB, Economic Outlook No.67, OCDE, junho de 2000.

[25Para aprofundar o tema veja Juan Chingo, “Hacia una recuperación sustentable de la economia mundial?” , Estratégia Internacional No.20, setembro de 2003.

[26O chamado modelo “fordista” , no qual o aumento do lucro e da produtividade caminhava junto com o aumento do salário real. Isto criava uma relação entre o management das empresas e os trabalhadores, representados pelos seus sindicatos.

[27KarlMarx, O Capital, Crítica da Economia Política, Tomo III, Volume VII, Siglo XXI, 1979, pág. 568.

[28Stephen Pearlstein, “Credid market”™s weight puts economy on shaky ground” , Washington Post, 01/08/2007.

[29Como explica o mesmo analista: “O que preocupa pessoas como Buffet é quanta dívida existe no mercado de crédito - e que parte da dívida é usada para comprar outras dividas” .

[30A potência de alavanca em que consiste fazer operações, no geral de alto risco e/ou curto prazo, com fundo emprestado, é utilizada para financiar compras hostis de empresas (não acordada com os acionistas proprietários) ou fazer operações a futuro sobre tipos de câmbios, taxas de juros ou cotizações de commodities. Uma das características mais arriscadas do mercado é exatamente a difusão de tais operações e o crescente uso que instituições usam a ferramenta.

[31A homogeneização se expressa na tendência do capital a eliminar ou integrar antigas formas de produção: a interconexão pode ser observada no salto que a economia capitalista mundial deu. Ao lado
de um maior desdobramento interno, mediante a diferenciação de funções, particularmente a financeira, constitui os traços básicos do modo de produção capitalista, características que vêm se acentuando.

[32Richard Freeman “China, India and the doubling of the global labor force: who pays the price of globalization?” , The Globalist, 03/06/2005.

[33Stephen Roach, “Globalization”™s new underclass” Morgan Stanley, 03/03/2006.

[34Florence Jaumotte e IrinaTytell, “The globalization of labor” IMFWorld EconomicOutlook , abril de 2007.

[35Stephen Roach: “The fallacy of global dedcoupling” , Morgan Stanley, 30/10/2006.

[36Citado por François Chesnais, “La préminence de la finance au sein du “capital en général”™”™, lê capital
fictif et lê movement contemporain de mondialisation du capital,” em La Finance Capitaliste. Actuel Marx Confontation, setembro de 2006.

[37KarlMarx, Lei da tendência de queda da taxa de lucro, Cap. XIV, ”˜Causas contra-restantes”™ O Capital, Livro III, Vol. 6, op. cit.

[38Fundo Monetário Internacional World Economic outlook, primavera de 2003 Cap. 3: “O crescimento na produtividade é tão grande que, apesar do aumento no custo das matérias-primas no final dos ano
90, o preço das manufaturas continua diminuindo em média 3% ao ano entre 2001-2004, com grande queda em particular nos produtos manufaturados de origem de países em desenvolvimento” , World (anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-(anti-spam-Bank)))))))))))))), Global Economic prospects 2005.

[39Au Loong Yu, “The postMFA era and the rise of China” , Asian Labour Update No. 56, julho-setembro de 2005. Versão posteriormente ampliada.

[40Recente nota a respeito dos perigos para a saúde de produtos chineses enfatiza o segundo ponto: “A maior parte do poder destas cadeias de produção está nas mãos dos que controlam a distribuição final nos mercados mais importantes ’ EUA e Europa, as empresas multinacionais proprietárias das marcas e relações entre os distribuidores, e os próprios distribuidores, comoWal-Mart e Toys ”˜R Us. Por esses atores controlarem o acesso aos consumidores finais, altamente concentrados onde os provedores estão fragmentados em milhares de pequenas firmas produtoras, os compradores podem ditar os termos e insistir para que os preços diminuam ano a ano. Neste ambiente, os provedores têm enormes incentivos para tomar atalhos com o fim de recortar os custos, precisamente o que ocorreu quando fabricantes de brinquedos chineses substituíram por pintura de chumbo, mais económica, a mais custosa variedade de pintura sem chumbo. O governo chinês é apenas um espectador nesse processo” (Arthur Koreber, “Lessons for China Inc” , 20/08/2007). Em outros termos, a baixa dos preços das mercadorias está levando a uma piora da qualidade e do valor de uso destas, e as próprias companhias tiveram que reparar de alguma maneira para não ficar fora do mercado, o que está demonstrando limites ou pontos fracos da nova divisão mundial do trabalho, governada pelas grandes multinacionais.

[41“The Dragon and the Eagle” The Economist, 30/09/2005.

[42Arthur Kroeber, “Chasing the mythical China consumption boom” , China”™s Economic Quarterly
08/01/2007.

[43Idem.

[44Arthur Kroeber, Retailer´s fool”™s goad” , China Economic Quarterly, 16/07/2007.

[45Michel Husson, op.cit.

[46Martin Wolf, “O futuro da globalização é a questão de longo prazo mais importante” , Financial Times,09/01/2007.

[47Michel Husson, “Após a idade do ouro” , em G. Achcar (ed.) The legacy of ErnestMandel, Verso, 2000

[48Como disse Ernest Mandel: “ A lei do desenvolvimento desigual pela primeira vez na história se reverteu contra o imperialismo norte-americano. As outras potências imperialistas, que partiram de um nível de produtividade industrial muito mais baixo que os EUA, têm modernizado suas indústrias
muito mais rapidamente e têm conseguido, por sua vez, vantagens de produtividade consideráveis. Muitas de suas mercadorias são, hoje em dia, de qualidade parecida e às vezes superior e, antes de tudo, mais baratas que as mercadorias norte-americanas: os navios japoneses; os pequenos automóveis europeus e japoneses; as máquinas-ferramentas alemãs.” ErnestMandel, A crise do dólar, Ediciones del Siglo, Argentina 1973.

[49Ver nota 17.

[50É o contrário da atuação dos EUA durante o boom do pós-guerra. Esse período foi qualificado como de “hegemonia benigna” ou “benevolente” , baseada na necessidade dos EUA de conter o perigo da revolução na Europa e no Japão, ambos devastados pela guerra. O imperialismo norteamericano, que saiu como potência hegemónica após a Segunda Guerra Mundial, combinou a colaboração contra-revolucionária com a burocracia stalinista, posta em prática nos pactos contrarevolucionários
de Yalta e Postdam, que dividiram o mundo em zonas de influência, e que permitiram no imediato pós-guerra derrotar e desviar a revolução em países centrais como França, Itália ou Grécia, com uma política de “contenção” dos movimentos geopolíticos do Kremlin, o que
implicou a disputa relativa nos planos militar (corrida armamentista, criação da OTAN), político (luta por influência nos países da periferia capitalista) e ideológico (luta contra o “totalitarismo” em defesa do “mundo livre” ), ainda sem ultrapassar nunca os estritos limites estabelecidos em Yalta. No entanto, esse pacto não impediu a existência de atrito, como a Guerra da Coréia, a crise de Berlim
ou a dos mísseis cubanos, assim como períodos de “distensão” ou “detenção” ’ com uma política de desenvolvimento do “Estado de bem-estar” e a reconstrução da Europa (Plano Marshall) e Japão,
para afastar o perigo da revolução. Isso permitiu aos Estados Unidos “hegemonizar” as distintas potências imperialistas atrás de seus desígnios, mas o fazia, e por isso se denominava “hegemonia
benigna” , como garantia da “livre emprensa” , promovendo como base para a consolidação política de sua hegemonia o êxito económico de seus aliados e competidores, ao mesmo tempo em que recriava um mercado para a expansão de suas multinacionais no estrangeiro. Assim, ao passo que os EUA asseguravam que suas firmas ficavam com a “maior parte” da acumulação capitalista mundial, permitiu e alimentou o extraordinário crescimento que Alemanha e Japão, as duas potências derrotadas na Segunda Guerra, tiveram durante o boom. As conseqüências desse último comportamento para a ordem mundial estão bem analisadas por Robert Brenner: “Devido a que o êxito económico dos EUA estava tão fortemente ligado ao êxito de seus rivais e aliados, o desenvolvimento económico internacional do pós-guerra dentro do mundo capitalista avançado póde, por um curto período, manifestar-se em um relativamente alto grau de cooperação
internacional ’ marcado por elevados níveis de ajuda norte-americana e apoio político económico a seus aliados e competidores -, apesar do domínio do estado norte-americano e de estar em maior parte moldado de acordo com os interesses dos EUA. O governo dos EUA, assim como seus principais capitalistas, teve a vontade de tolerar esses níveis de intervencionismo estatal, de protecionismo comercial, de taxas de intercâmbio subavaliadas e de ataduras financeiras de seus rivais, porque eles mesmos possuíam um forte interesse no desenvolvimento económico nacional de seus rivais ’ especialmente no crescimento de seu mercado interno ’ e sua estabilidade política. Em conseqüência se observava, ao menos por um tempo, uma simbiose, se bem que altamente conflitiva e instável, do líder e seus seguidores, dos desenvolvidos cedo e tardiamente, do hegemon e os hegemonizados” . Robert Brenner, “The boom and the bubble” , Londres, Verso, Maio 2002.

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