Quarta 15 de Maio de 2024

Nacional

Crise aérea

"Caos" nos aeroportos é produto da anarquia capitalista pelo lucro

07 Jan 2007 | O texto abaixo é um relato que expressa a opinião de alguns trabalhadores aeroviários sobre a crise aérea. A LER-QI apoia estas opiniões.   |   comentários

O acidente com o Boeing da Gol em outubro parece ter aberto a caixa de pandora do sistema de transporte aéreo brasileiro. Tudo o que era um aparente absurdo desde o tumultuado processo de falência e venda da Varig, tem se revelado como uma crise profunda da aviação comercial.

O fim da velha Varig foi como a primeira peça de dominó a tombar de uma pilha extensa, o primeiro tijolo a ser derrubado do velho "edifício" da aviação brasileira. A saída desta empresa do "sistema" deixou aberto um espaço aéreo a ser disputado pelas empresas. Esta disputa ainda não se fechou, ainda que o crescimento das demais empresas demonstrem que se apoderaram de rotas e espaços deixados pela Varig.

O crescimento foi vertiginoso para a TAM, passando de 30% no início do ano para mais de 50% do mercado neste fim de ano, registrando um lucro de R$ 421 milhões, 245% maior que o ano de 2005. A Gol, até setembro deste ano, somou ganhos de R$ 491 milhões, um aumento de 79,85% em relação ao mesmo período de 2005. Este quadro de crescimento da demanda por vóos e concorrência entre as empresas para garantir o máximo de lucratividade, de forma anárquica como é típico do capitalismo, determina o caos que temos visto nas últimas semanas.

O primeiro sintoma desse "caos" anunciado foi exposto com tudo pela crise dos controladores, que pode ser sumariamente resumido: por um lado, na precariedade da infra-estrutura dos aeroportos em relação ao número de rotas e vóos que se quadruplicaram nos últimos anos, por outro na manutenção do reduzido quadro dessa mão-de-obra super-especializada que são esses trabalhadores, gerando uma superexploração e uma sobrecarga de trabalho para os controladores.

Esses trabalhadores, que estão submetidos às regras militares das forças armadas, nem sequer têm as mínimas proteções civis democráticas, pois lhes é negado o direito a livre organização e sindicalização, nem podem fazer greve ou movimentos reivindicatórios. No caso recente o que fizeram foi a chamada "operação padrão", pois se apoiaram nas próprias recomendações da ANAC, que restringe os números de vóos que devem ser controlados por cada torre de controle. Obviamente, sabemos que essa foi a forma que eles encontraram de defender suas reivindicações e denunciar as condições de superexploração a que estão submetidos. Com os aviões no chão, demonstraram como têm o poder de paralisar os aeroportos, e como cumprem um papel fundamental no funcionamento do sistema aeroviário. Em choque, as altas patentes da Aeronáutica, com o aval do governo, aquartelaram esses trabalhadores, demonstrando como a nossa "democracia amadurecida" não pode se livrar tão facilmente da herança militarista que marca historicamente o Estado brasileiro.

Crescimento do setor aéreo, lucros para as empresas e precarização e péssimas condições de trabalho e segurança

Com a expansão das duas grandes companhias e o surgimento de diversas novas empresas que começaram a operar nos aeroportos, dois fenómenos se combinam. De um lado a terceirização dos serviços e de outro a queda na valorização da mão-de-obra. Todos os setores do aeroporto, desde a parte de cargas aos serviços de pista e limpeza, até a chamada "linha de frente", que são os check-ins, passaram a ser operados por empresas "recrutadoras", como a Sata, SEA, Swiss Port e a Vip. Mesmo serviços essenciais que antes eram de cargo da própria Infraero, como os raios-x de bagagens, foi preenchido por trabalhadores recrutados por terceirizadas, tal qual a Proair.

Não é preciso dizer que os trabalhadores que são terceirizados, hoje a maioria no aeroporto, não gozam dos direitos legais e trabalhistas da categoria, planos de saúde etc. Porém, a mais brutal diferença é no salário, pois os terceirizados recebem em média R$ 600,00, para jornadas de trabalho de 8 horas com escalas de folga 6 por 1, ou no melhor dos casos 5 por 1. Sem falarmos nas horas extras não pagas, pois as empresas terceirizadas com seus acordos com as companhias aéreas, definem quando é "permitida" a hora-extra. Na verdade as horas extras se impõem na medida que os trabalhos se acumulam de um turno a outro, e ainda mais considerando essa época de atrasos nos vóos e o movimento intenso de alta temporada.

Quem ganha com isso são as companhias que se desoneram dos encargos de seleção e de treinamento de mão-de-obra, bem como dos encargos trabalhistas, reduzindo custos e gerando economia nas folhas de pagamento. Esse é o mundo da maioria dos trabalhadores da aviação, que do antigo "glamour" que causavam os uniformes, gravatas e maquiagem, não deixa mais do que o suor no rosto que faz borrar o lápis e o broche das mulheres e nos deixam as camisas amarrotas e ensopadas.

As conseqüências dessa precarização e péssimas condições do trabalho já se faz sentir no atendimento dos passageiros, a despeito do esforço de cada funcionário. Porém, a mais temível conseqüência já atinge a segurança dos vóos. Equipamentos sem manutenção, em certa medida obsoletos, jornadas cansativas de trabalho, aquartelamento dos controladores de vóo, pressão psicológica, entre outras realidades dos que trabalham com a aviação comercial, deixam uma ameaça clara para a segurança dos passageiros. Como podemos estar seguros se as companhias e a Infraero nos escondem os inúmeros incidentes diários que passam despercebidos porque não chegam a catástrofes como a do Boeing da Gol? A deterioração das nossas condições de trabalho, a disputa desenfreada das empresas pelas rotas de vóos mais lucrativas, a negligência dos órgãos de controle, o não investimento em equipamentos e treinamento, tudo isso afeta não apenas o conforto, mas a própria segurança dos passageiros e dos funcionários, porque não esqueçamos que no acidente da Gol também morreram trabalhadores aeroviários.

A concorrência capitalista pelo espaço aéreo é a causa do caos e das catástrofes

Muitos usuários dos aeroportos ou mesmo trabalhadores e a população em geral se perguntam: "Mas não é ótimo que haja concorrência entre as empresas? Não é essa concorrência que permite promoções de vóos por R$ 25,00?". Esta baixa dos preços, que vem sim da concorrência entre as empresas, também é o que gera o caos e a ameaça de acidentes aéreos graves.

Basta olharmos a situação absurda dos aeroportos nos dias que precederam o Natal: 40% dos vóos atrasados, aviões superlotados, salas de embarque superlotadas, amontoamento de passageiros nos saguões, filas imensas nos check-ins, bate-bocas entre passageiros e funcionários, falta de informação para ambos, falta de auxílio das próprias empresas, da Infraero, da Anac. Como pode ser boa essa concorrência se passageiros são tratados como cargas sujeitas a "seleção" e os trabalhadores tratados como burros de cargas que têm que se livrar dessas "cargas" de qualquer jeito!

Muitos diriam ainda que atrasos e overbookings são normais e até legais. O que está por trás da palavra aparentemente inocente "overbooking"? É muito simples: as empresas aéreas vendem mais passagens do que a quantidade de assentos nos vóos. Ou seja, existem mais passageiros que a capacidade dos aviões. Muitas passagens já estavam vendidas há meses ou semanas. Grande parte destas foram compradas a preços reduzidos ou promocionais pois as diversas empresas aéreas vivem numa corrida concorrencial para ver quem vende mais passagens e, com isso, disputam os passageiros. Para concorrer, elas levam os preços a baixarem cada vez mais. Assim, a taxa média de lucro do setor aeroviário tende a cair e as empresas buscam evitar a desvalorização do capital investido. Como há muitas empresas para concorrer entre si, não há outro caminho. Os peixes grandes têm que comer os peixes pequenos. As grandes empresas utilizam todos os meios para abocanhar mais psasageiros do que os seus concorrentes. A TAM, a maior empresa aérea do país, com mais de 50% do mercado nacional, é um claro exemplo. Justamente nessa semana do Natal chegou ao absurdo de esconder seis aviões, mentindo que estavam em "manutenção não prevista". Como crer que uma empresa aérea pode ser "surpreendida" por problemas de manutenção em seis aeronaves, justo nos dias de maior demanda de vóos? Se fosse verdade, a Anac, a Aeronáutica e o governo deveriam punir essa empresa, impedindo que voasse porque se os aviões precisam de "manutenções não previstas" certamente estão em situação de segurança ameaçadora, e como a aviação é uma concessão do Estado, essa empresa deveria ter essa concessão cassada pelo caos que gerou!

Sendo assim essa "corrida maluca" das companhias, não só não é bom como é a verdadeira causa da crise da aviação civil. Além da concorrência por passageiros, as empresas disputam entre si por outro setor fundamental para a aviação comercial: o transporte de cargas. Este é o verdadeiro "filé mignon"! Não é por menos que ouvimos dos supervisores que "o que dá lucro para as companhias são as cargas e que passageiro só dá problema". Essa é a prova de que atualmente a aviação não é mais um mero serviço para levar pessoas de um lugar a outro. A circulação de mercadorias é fundamental para o sistema produtivo capitalista. Fortunas são transportadas nas "barrigas" dos aviões, como mercadorias de todo tipo: celulares, computadores, processadores para supercomputadores, máquinas, motores de todo tipo, tecnologia comercializada entre os países e empresas, alimentos, enfim, essas "barrigas" são hoje o principal "serviço" da aviação. Os passageiros, que antes eram "tudo", hoje são mercadorias de "segunda classe" - passageiros executivos, que pagam mais caro -, e outros são de "terceira classe" - passageiros que viajam pouco e a preços promocionais.

Os sindicatos da CUT e da Força Sindical "sumiram", abandonando os funcionários e os passageiros

Por mais que a imprensa, as empresas e até o governo procurem indispor esses trabalhadores com os usuários e a população, nós dizemos clara e abertamente: os aeroviários e os aeronautas são nossos irmãos de classe, são parte fundamental e especial da classe trabalhadora; sem eles estaremos mais fracos, com eles seremos uma potência; a única força capaz de encontrar as soluções radicais e imprescindíveis para o descalabro da aviação civil gerado pela administração capitalista - seja militar ou civil - que tudo faz, mas apenas para lucrar mais e mais, sem deixar de lado os mecanismos capitalistas de gestão, como a corrupção deslavada. O governo chegou ao absurdo, mostrando para quem serve o Estado capitalista e as Forças Armadas, de colocar à disposição da TAM, que frauda o sistema aéreo descaradamente, aviões da FAB para transportar passageiros. Com certeza a TAM entrou em acordo com a Aeronáutica e colocou nesses aviões (sucatões) os passageiros "menos" rentáveis, garantido em seus aviões os que pagaram mais. É o governo Lula, de um ex-operário metalúrgico, mostrando seus grandes serviços aos capitalistas, enquanto vomita frases demagógicas falando em "apurar o que ocorre nos aeroportos", como se ele e seus ministros (e os militares) não soubessem exatamnte o que a TAM faz, e as outras empresas. Os passageiros e o povo é que estão sendo enganados por toda essa corja, que utiliza o património público - aviões da FAB - para garantir os lucros privados. Bem que Lula disse, depois de eleito, que "garantiria os lucros" dos capitalistas no Brasil.

Não podemos esquecer do papel daqueles que deveriam ser os maiores defensores dos interesses dos trabalhadores e usuários, os sindicatos dos aeroviários e aeronautas. A Fentac (Federação Nacional dos Trabalhadores da Aviação Civil), como uma das maiores associações sindicais do país e ligada à CUT, os sindicatos dos aeroviários e aeronautas, da CUT e da Força Sindical, "sumiram" e sequer se pronunciaram diante desta situação caótica. Enquanto as empresas pressionavam os funcionários e os faziam trabalhar cada vez mais, os passageiros se revoltavam e descontavam nestes funcionários a sua justa raiva. Até agressões os funcionários sofreram. Os chefes, supervisores e gerentes se esconderam. Nós, que carregamos a aviação nas costas, ficamos sós nessa situação. Os patrões, as empresas, os chefes, supervisores e gerentes, claro, sempre nos deixam na mão. Mas os nossos sindicatos também fizeram o mesmo, abandonando-nos e deixando os passageiros sem qualquer alternativa diante do caos empresarial.

Os passageiros exigiam simplesmente "informações corretas" para poderem decidir suas vidas. As empresas negavam essas informações e criavam uma rede de mentiras, tudo para prender os passageiros nos aeroportos e forçá-los a viajar quando as empresas decidissem, de modo a garantir o lucro patronal. Se dirigiam aos funcionários, que desprotegidos diante da pressão das chefias, tentavam solucionar da melhor maneira a situação, mas não havia como minimizar o sofrimento dos passageiros sem denunciar o caos propositalmente gerado pelas empresas.

Os sindicatos da CUT e da Força sindical não moveram uma palha para prestar o mero auxílio aos passageiros (e aos funcionários), criando uma rede paralela, realista e honesta, de informação e prestação de serviços aos usuários, permitindo que os funcionários, sem se expor à perseguição patronal, fizessem chegar aos passageiros e à população as verdadeiras medidas que as empresas tomavam para garantir, à custa do caos, seus lucros. Tudo o que precisávamos era que os sindicatos cumprissem sua obrigação de defender os funcionários e também ter uma política de apoio aos interesses dos passageiros, denunciando as condições precárias de trabalho e segurança, os overbookings propositais, o cancelamento de vóos e as transferências seletivas de passageiros, a omissão e negligência do governo e dos demais órgãos da aviação com o conluio da imprensa, exigindo punição exemplar às empresas que desrespeitavam as regras da concessão de serviços públicos, como é a aviação comercial. Esclarecer esses fatos, com informações honestas, era tudo o que os passageiros pediam. Os funcionários não podiam denunciar abertamente o caos proposital gerado pela TAM e demais empresas porque arriscavam seus empregos. Mas os sindicatos e as centrais sindicais poderiam protegê-los, recolhendo os dados e repassando aos passageiros e à população, desmascarando as empresas, a Anac, o governo e Cia., e ajudando os passageiros a fazer cumprir seus direitos de "cliente" das empresas aéreas. Com essa ação mínima os passageiros veriam os sindicatos ao seu lado, encarando os funcionários como aliados para organizar a sua justa revolta contra os descalabros das empresas aéreas e a omissão e negligência do governo e dos órgãos de controle.

Os burocratas sindicais da CUT e da Força Sindical mais uma vez nos abandonaram e tivemos que nos virar sozinhos. Eles agem desta forma porque na prática dirigem os sindicatos para ajudar as empresas a nos explorar cada vez mais, ao invés de utilizar essas organizações operárias para defender os interesses dos funcionários e dos passageiros, o que nos levaria a ganhar a confiança da população e apoio nas nossas lutas por melhores salários, condições de trabalho e direitos trabalhistas iguais para todos, contra a precarização, terceirização e a ingerência militar da Aeronáutica que impede que os trabalhadores controladores de vóo, essenciais para o serviço aéreo, possam se organizar sindical e politicamente como parte da nossa classe trabalhadora.

A aviação nacional só poderá decolar livre e seguramente sem o peso da concorrência capitalista

Para encarar profundamente a grave situação da aviação nacional (e mundial) não se pode procurar meias medidas. A causa da crise é a concorrência capitalista que será cada vez mais desenfreada. Quanto mais empresas e mais concorrência entre elas, crises sucessivas e recorrentes surgirão pois o remédio para a tendência da queda da taxa média de lucro levará a recuperações cada vez mais parciais e restritivas que gerarão novas quedas; a tecnologia aeroviária, que avança sem parar, barateará os custos e possibilitará a entrada de novas empresas, gerando mais concorrência, menores preços, menores taxas de lucro.

Muito se discute sobre uma "aviação civil" ou uma "aviação militarizada" - como é hoje. Mas isso também é uma cortina de fumaça. Os controladores de vóo e todos os que trabalham no sistema aeroviário devem ser considerados como tal, trabalhadores, e por isso devem ter seus direitos civis, políticos e sindicais garantidos, salários, dignos, aperfeiçoamento profissional, relação direta com seu povo, único comandante a quem os trabalhadores classistas e combativos devem se reportar.

Este "caos" gerado pela corrida patronal por mais lucros só encontrará solução com medidas radicais. Sem atacar a causa não resolveremos o problema da aviação comercial. A concorrência, essência do capitalismo, deve ser eliminada, para evitar futuras catástrofes na aviação, pois os patrões não vacilarão em piorar as condições de trabalho e até a segurança de vóo para alcançar maior lucratividade. Acabar com a concorrência e começar a tomar soluções profundas para a crise da aviação exige uma medida básica: nacionalizar todo o sistema aéreo, criar uma empresa única estatal, que administre e controle todo o sistema no interesse da maioria da população e do país. A administração desta empresa única estatal deveria constituir um Conselho de Funcionários eleitos por todos os trabalhadores, garantindo a participação de organizações sindicais e populares que representem os interesses dos usuários e do país, com mandatos revogáveis de todos os dirigentes e conselheiros, com prestações públicas das contas, com uma política de aviação nacional que democratize essa conquista civilizatória permitindo que os milhões de brasileiros possam utilizar a aviação como o principal meio de transporte e comunicação razoável num país com esssas dimensões continentais, barateando os custos produtivos e permitindo alargar o horizonte produtivo e cultural da Nação de modo a que os milhões de trabalhadores possam colocar em prática, a preços e condições justas, o sonho de voar, a trabalho ou a lazer.

R. M. é trabalhador aeroviário do Terminal de Cargas do Aeroporto de Guarulhos

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