Segunda 29 de Abril de 2024

Cultura

Whiplash: reacionarismo à moda americana

07 Feb 2015   |   comentários

Enquadrado por uma fotografia intensa, Andrew, um jovem estudante de música é retratado no filme de Damien Chazelle em sua trajetória profissional como baterista de jazz, que se inicia com a entrada no Shaffer, retratado como o mais importante conservatório musical norte-americano.

Enquadrado por uma fotografia intensa, Andrew, um jovem estudante de música é retratado no filme de Damien Chazelle em sua trajetória profissional como baterista de jazz, que se inicia com a entrada no Shaffer, retratado como o mais importante conservatório musical norte-americano.

Andrew busca a perfeição. Nada menos do que isso. Inspirado por mestres bateristas do jazz norte-americano, este jovem projeta à sua frente um futuro de pura dedicação e aperfeiçoamento rumo ao maior reconhecimento e a mais perfeita execução de toda sua arte.

Fletcher, professor do conservatório, convence-se do mesmo: encontrará (ou criará, para ser mais exata) dentro de sua rotina o futuro gênio do jazz. Fletcher carrega em suas mãos a fama de bom professor e também o cargo de maestro da osquestra principal do conservatório.

Andrew reconhece ao chegar no conservatório que passar pelas mãos de Fletcher é a parte mais importante do caminho para tornar-se um gênio da música.

O filme é preenchido de atuações inatingíveis. Não existe no elenco uma atuação falsa, forçada ou irreal. Os recortes e escolhas fotográficas não ficam para trás. Apesar de recheado de tomadas “conservadoras esteticamente”, os enquadramentos do sangue, suor e lágrimas de Andrew são capazes de causar dor em qualquer espectador.

Um filme bonito, perfeito. E isso é o mais assustador em seu enredo.

Uma busca pela perfeição

Andrew, assim como uma quantidade imensa de jovens por todo o mundo, convenceu-se de uma idéia bastante perigosa: para ter uma vida significativa, é preciso tornar-se um “gênio”, fazer-se famoso e reconhecido.

No seio da principal formadora de ideologia capitalista – a América do Norte -, Andrew faz parte da imensa camada de jovens que se consideram invisíveis e pouco dignos de respeito exclusivamente por serem “normais”. A busca pela perfeição é a parte mais aguda da principal doença psíquica desenvolvida na atualidade: o individualismo.

Em um mundo onde parecer-se com os outros é um defeito, milhões de jovens afundam-se em angustiantes buscas pela perfeição estética, física, moral, religiosa ou profissional. Somos a geração dos jovens anoréxicos em busca do corpo perfeito, dos viciados em resposta às duríssimas exigências dos pais, dos deprimidos pelo choque com a decepção profissional.

O individualismo sem limites leva jovens solidários ao suicídio por sentirem-se excluídos em mundo repleto de indivíduos, cerceados a vida pela tela dos smartphones, não importando o ponto das cidades ou o horário do dia. Pelo indivíduo delatam-se companheiros de trabalho, criam-se intrigas nas escolas e universidades, autoproclama-se mais do que tudo perdendo-se grandes amigos e companheiros de longa data.

Para alimentar a busca por saídas individuais e isolamento social geral da juventude, a burguesia preenche nossas mentes de ídolos pop, com corpos photoshopados e vozes esterilizadas. Os jovens tentam copiá-los. Tentam aperfeiçoar-se, esquecendo de serem humanos.

A violência da incessante busca de perfeição de Andrew é retratada pelo diretor pelo sangue que irriga de suas mãos após as muitas horas de uso das baquetas. O instrumento de sua paixão pelo jazz se transforma em seu agressor. Andrew abandona as visitas ao pai, despede-se de um relacionamento amoroso antes de iniciá-lo e nem imagina que ao trabalhar com Fletcher sua rotina tornaria-se ainda mais violenta.

Fletcher e o papel do educador

Ao selecionar Andrew, seu professor Fletcher faz um claro diagnóstico de que alí poderia encontrar um gênio da música.

Ao se apresentar para o jovem, lembra-o:

“Charlie Parker jamais seria um gênio se Jo Jones não houvesse jogado um prato nele no momento em que Parker errou uma batida. Por quase ser decaptado, Parker tornou-se pela prática um dos maiores gênios da música do século XX”.

Andrew concorda. Ao tocar pela primeira vez com Fletcher e sua reconhecida orquestra, uma das cenas mais marcantes do filme entra em ação.

Ao tentar reproduzir a bateria da famosa música de Hank Levy que dá nome ao filme, Fletcher nota um erro de tempo na batida de Andrew, e exige que ele toque novamente, e mais outra vez, e mais outra, até que se apossa de um prato da sala e lança-o em direção ao rosto do garoto. Ao assutar-se e começar a titubear sobre a sequência de seu treino, Andrew recebe uma série de xingamentos do mestre e uma sequência de tapas na cara.

Além de alterar a biografia de Parker para justificar seus métodos, Fletcher coloca em pauta um tema pouco discutido e de profunda importância em nossa realidade. O problema da educação, seja artística ou tradicional, está de fato no método? Sendo assim, a busca por um gênio justifica toda forma de opressão?

Não é de hoje que há denúncias e questionamentos em torno da educação militarista proposta pelo personagem de J.K. Simmons (Fletcher) e defendida pelo roteirista e diretor Chazelle na entrevista concedida a blogueira Anne Thompson, de “indiewire”. Para além dos questionamentos, os Fletchers estão entre as memórias e vivências escolares mais traumáticas de todo ser humano no mundo.

A começar pelo debate fins x meios, não se pode dizer que o papel do educador reside apenas no ser humano formado a partir de sua intervenção. Os meios educacionais são portadores de aspectos sociais fundamentais no momento em que ocorrem, seja na saúde mental e física do próprio professor e de sua categoria, seja na trajetória intelectual/cultural e psicológica da criança ou do adolescente. O método educacional não ganha direito à análise apenas a partir de um ponto no tempo considerado o “destino” daquele projeto educacional. Um exemplo claro do quão errôneo dessa dicotomia são os recorrentes casos de jovens que entram em escolas fuzilando seus professores e colegas de classe. De acordo com essa lógica, esses jovens estariam em meio ao seu processo educativo, e apenas porque tomam tal atitude drástica, esse meio passa a se tornar fim, quando na verdade é parte do meio.

Olhando para os fins, é possível notar que uma rotina de estudos rodeada em opressão, violência, descaso e carência (note-se que não apenas no âmbito da escola, mas em todos os espaços educativos do mundo humano, como o trânsito, o transporte público, as lojas, as ruas, a casa, etc) gera homens e mulheres que tomam esses métodos como parte de sua vida social, tornando-se violentos com as pessoas em seu entorno e inclusive consigo mesmo.

Em Whiplash, o suicídio de seu ex-aluno faz Fletcher concluir apenas que “se ele quisesse de fato ser um gênio teria passado por cima da situação para tornar-se melhor do que era” e que toda a violência psicológica e física que cometeu contra seu aluno apenas existiu para “ajudá-lo a encontrar a trajetória para tornar-se um mestre”.

Com base no discurso de Fletcher seria possível dizer que as escolas públicas brasileiras, verdadeiras prisões militares para o conjunto da juventude, seriam os espaços de pleno desenvolvimento de gênios de diversos campos da arte e da ciência. Sabemos que a origem do fracasso do ensino público, para além da óbvia falta de recurso (o que não é um problema para os estudantes da fictícia Sheffer), reside na incapacidade didática resultante de uma das maiores violências de Estado cometidas sobre um jovem, que são as salas de aula lotadas, a constante humilhação, a presença ostensiva de policiais racistas e assassinos, a repressão às manifestações culturais e a hierarquia militarista coordenador x professor x aluno, que cala aos últimos dois e garante a voz apenas aos representantes da política do governo dentro das escolas.

O gênio de Fletcher e os gênios do capitalismo

A ausência de gênios em nossa era é fruto do que Fletcher diz ser uma “diplomacia educacional”?

Baseada na realidade do funcionamento econômico de nossa sociedade digo confiante que não.

Em uma sociedade onde apenas os que não trabalham são capazes de produzir cultura, esse direito segue garantido apenas à burguesia e a alguns poucos artistas qualificados financiados pela burguesia internacional e pelas pequenas burguesias de todo o mundo. Sabe-se que, apesar de sua profunda dedicação, falta aos artistas independentes o financiamento e os recursos necessários para seu desenvolvimento e aprimoramento.

O capitalismo, ao restringir dessa maneira a produção artística, restringe também o conteúdo ideológico desses artistas, criando um mundo a sua imagem e semelhança. Em “A Ideologia Alemã”, Marx nos lembra que a ideologia dominante – aquela presente em grande parte da produção cultural -, em lugar de significar a vida dos indivíduos, cria uma relação com as classes não possuidores de uma espécie de espelho invertido, onde o trabalhador persegue aquela ideia de vida em lugar de ser a expressão dela, e nesse caminho, se converte em negador de sua própria existência.

Sendo assim, não é novidade que poucos sejam capazes, pela pouca capacidade de refletir e significar a vida, de desenvolver materiais artísticos capazes de nos romper, de nos abalar.

Fato é que, em ambas as camadas, seja de artistas independentes, assalariados da burguesia ou burgueses de primeira ordem, de tempos em tempos surgem artistas capazes de apontar as “pedras do caminho”. Esses tempos são aqueles em que, em meio a crises econômicas, o próprio poder da classe dominante se coloca questionado, e a partir daí, a arte liberta-se pouco a pouco, acompanhando a estafa econômica e cultural advindas do abalo sofrido por essa classe.

Nós vivemos uma época como essa, e com ela, reafirmo: não são os métodos opressivos que criam gênios do mundo a arte e da ciência. Os poucos momentos em que surge a possibilidade de romper fronteiras, de pensar e criar além das amarras do capitalismo criam mais gênios do que se podem criar décadas e décadas de passividade social e econômica.

Daqui se conclui: a verdadeira parteira de gênios, mais até do que os abalos cíclicos do capitalismo, é a sociedade sem classes, única liberta da necessidade incessante de produzir ideias de dominação e auto proclamação de uma classe:

“O homem, nacionalizando a economia, penetrando-a com a sua consciência e planificando-a, não deixará qualquer vestígio da vida quotidiana. (…) Ao lado da técnica, a pedagogia formará, psicologicamente, novas gerações e regerá a opinião pública. Experiências de educação social, na emulação de métodos, atingirão níveis até agora inconcebíveis. (…) O homem tornar-se-á incomparavelmente mais forte, mais sábio e mais sutil. Seu corpo tornar-se-á mais harmonioso, seus movimentos mais ritmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécia humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E, sobre ela, se levantarão novos cimos.” Leon Trotsky, “Literatura e Revolução”.

Artigos relacionados: Cultura









  • Não há comentários para este artigo