Segunda 29 de Abril de 2024

Debates

“Radicalização da Democracia”, “Revolução Democrática” ou Revolução Permanente?

05 Feb 2006   |   comentários

Em nossa III Conferência, definimos o PSOL como um partido formado por correntes reformistas de esquerda e centristas, cujo programa possui um caráter predominantemente social-democrata combinado com frases soltas sobre a independência de classe. Do ponto de vista político, ressaltamos a prática eleitoralista e de conciliação com setores da burguesia que têm se expressado em distintos momentos, como no apoio de seus principais dirigentes públicos a políticos burgueses nas eleições municipais de 2004, na política de “plebiscito revogatório” e “eleições gerais” frente à crise do mensalão” e na defesa por se aliar a partidos burgueses nas eleições presidenciais de 2006 por parte de algumas de suas correntes internas. Do ponto de vista ideológico, ressaltamos a influência que este partido sofre por parte das tórias pós-modernas que ganharam força após a ofensiva neoliberal e a queda do stalinismo, especialmente no que diz respeito à substituição da luta estratégia pela Ditadura do Proletariado baseada em um regime de pluripartidarismo soviético pela luta estratégia por uma “radicalização da democracia” baseada em um regime de sufrágio universal, cuja expressão mais concreta seriam as “democracias participativas” e os “orçamentos participativos” implementados pelos governos estaduais e municipais da esquerda do PT, especialmente o governo petista do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre; e também a substituição da classe operária como sujeito revolucionário pelos chamados “movimentos sociais” . Neste artigo, atualizamos nossas críticas ao PSOL através de uma polêmica com a entrevista de Heloísa Helena ao jornal Valor Económico, na qual esboça algumas de suas concepções ideológicas mais profundas.

Uma crítica às posições defendidas pela ilustre companheira só pode ser útil, de um duplo ponto de vista: em primeiro lugar, porquanto suas posições expressam alguns dos preconceitos mais arraigados de setores importantes da esquerda e das massas; em segundo lugar, porque diante de sua influência política crescente, uma visão crítica profunda de suas posições estratégicas se coloca como uma questão vital por si mesma.

Heloísa Helena afirma:

Sou uma socialista de carteirinha, mas infelizmente sei que não vou vivenciar o socialismo, com a estrutura anátomo-fisiológica que existe hoje no país (...) Na minha opinião, antes da revolução socialista, temos que fazer a revolução democrática, favorecendo a soberania nacional, com o controle de capital, a auditoria sobre pagamentos ao exterior e o alongamento da dívida interna; a democratização do Estado, com o uso dos plebiscitos e o fortalecimento de conselhos na área social e o desenvolvimento económico, com o aumento do investimento público.

Existem quase tantas confusões quanto palavras nesta citação. Entendemos que este posicionamento de Heloísa Helena coloca em debate a política que os socialistas devem ter frente às tarefas democrático-estruturais ’ como a emancipação nacional e a reforma agrária ’ que a burguesia a burguesia das semi-colónias foi incapaz de resolver minimamente por seu atrelamento ao imperialismo. Para tal, será necessário, em um primeiro momento, “passar por cima” da brutal contradição existente entre o que poderia ser uma “revolução democrática” e o que seria um “alongamento da dívida interna” . Ou seja, que “revolução democrática” é esta na qual de antemão se predispõe a negociar o pagamento das dívidas com os multimilionários parasitas banqueiros que atuam no país, dentre os quais grande parte são banco imperialistas? No final das contas, o discurso de “revolução democrática” esconde o conteúdo de uma política nacional-desenvolvimentista. Mas, ainda assim, vamos ao debate sobre a proposta de “revolução democrática” ...

Vamos então por partes; a companheira senadora afirma em primeiro lugar: “Sou uma socialista de carteirinha, mas infelizmente sei que não vou vivenciar o socialismo, com a estrutura anátomo-fisiológica que existe hoje no país” . Olhemos essa afirmação mais de perto: quando Heloísa Helena fala da estrutura “anátomo-fisiológica” como obstáculo para o socialismo, está se remetendo ”” com uma palavra difícil, é verdade ”” simplesmente ao caráter atrasado de nosso país. Em outras palavras, segundo ela o atraso brasileiro seria um obstáculo intransponível, ao menos no prazo de uma geração, para chegarmos ao socialismo. Porém uma afirmação como essa só faria algum sentido no marco de dois tipos de teoria, avessos ambos ao ponto de vista histórico dos trabalhadores:

a) aquele que afirma que o socialismo é apenas uma utopia impossível e que o capitalismo é o fim da história. É um ponto de vista claramente burguês triunfalista, que pensa que a história termina com sua dominação, e está disposto a limitar todo o futuro da humanidade a essa estreita medida. Claramente, não pode ser o caso da companheira, portanto, simplesmente não se aplica;

b) aquele outro tipo que considera que o socialismo só pode chegar para os países avançados, e que os atrasados necessitam primeiro alcançar o nível de desenvolvimento desses para poder “começar a pensar de fato” em socialismo. É um pensamento evolutivo, evolucionista até, que nutre ilusões em um desenvolvimento linear da história, e não vê que esta é feita também de descontinuidades e rupturas, e que às vezes o atraso quando levado a um extremo produz uma compressão de etapas, que produz o efeito de um verdadeiro salto histórico. Essa mesma discussão já se deu entre os marxistas há cerca de um século, e a história deu razão aos que tinham uma visão dialética, e não mecânica evolutiva, do desenvolvimento histórico, como mostram os casos da Rússia e da China, para ficar em dois exemplos, que apesar de serem países extremamente atrasados, um século atrás, alcançaram revoluções socialistas (de distinto tipo) antes dos países capitalistas avançados, e dessa forma se transformaram em potências apesar da política das burocracias totalitárias que terminaram trazendo ambos os países de volta à órbita imperialista.

Prossigamos. A partir da premissa discutida acima ”” e que, como vimos, está profundamente equivocada ”” a companheira prossegue: “Na minha opinião, antes da revolução socialista, temos que fazer a revolução democrática” . Ou seja, com base no caráter atrasado do país, ela deduz que o que está na ordem do dia é a “revolução democrática” , e não a revolução socialista. Aqui nos deparamos novamente com uma série de problemas. Ainda que não possamos, por um problema de espaço, desenvolver até o final as questões levantadas por semelhante afirmação, é preciso dizer que, no mínimo, se colocam os seguintes pontos: 1) pode-se separar de maneira tão esquemática, no período histórico atual, as revoluções socialista e “democrática” ?; 2) admitindo por um momento que sim (o que contraria todo o desenvolvimento concreto do século vinte, para não falar do desenvolvimento teórico do marxismo desde o século dezenove), admitindo mesmo assim que fosse possível separá-las dessa maneira, é fato que a revolução democrática precede necessariamente, como uma etapa histórica anterior, a revolução socialista?; 3) mesmo deixando de lado as duas questões anteriores, e pensando “livremente” em termos do futuro histórico mais imediato: é fato que a revolução colocada para o povo brasileiro é de caráter meramente “democrático” , e não socialista?

Um velho mestre do proletariado mundial costumava dizer que colocar uma questão corretamente equivale a respondê-la. Se isso é assim, temos que concluir que cada uma das questões colocadas acima, suscitadas diretamente pela colocação da companheira Heloísa Helena, só pode ser respondida com uma negativa enfática.

Para responder à primeira e à segunda questão, basta observar que na realidade, no momento presente, quando não apenas a burguesia (por definição a cabeça da “revolução democrática” , no sentido das revoluções modernas clássicas como a francesa de 1789-1793 e a inglesa do século anterior) passou a cumprir um papel histórico reacionário, como inclusive seu sistema próprio de dominação de classe se estendeu por todo o mundo, a ponto de virar lugar comum falar em “globalização” (do capitalismo, é claro) ”” nesse momento, quando portanto só é possível falar em revolução em oposição à dominação de classe da burguesia, a revolução só pode ser ao mesmo tempo “democrática” e socialista. Ou seja, colocando-se contra a única classe verdadeiramente dominante de nossa época, a burguesia detentora dos meios de produção, a revolução tem que atacar ao mesmo tempo as mazelas remanescentes do período anterior à afirmação da burguesia enquanto classe dominante e as misérias decorrentes de sua própria dominação de classe.

Para esclarecer a terceira questão, basta confrontar a realidade concreta atual com a receita dada pela própria companheira Heloísa Helena para a “revolução democrática” ; diz ela: “temos que fazer a revolução democrática, favorecendo a soberania nacional, com o controle de capital, a auditoria sobre pagamentos ao exterior e o alongamento da dívida interna; a democratização do Estado, com o uso dos plebiscitos e o fortalecimento de conselhos na área social e o desenvolvimento económico, com o aumento do investimento público” .

A maior demonstração de que não há revolução democrática possível por fora do levantamento armado dos operários e de todos os trabalhadores em geral para subtrair o poder político das mãos da burguesia brasileira, isto é, de que não pode haver no Brasil dos dias de hoje uma revolução democrática por fora da revolução socialista, é a o caráter extremamente limitado das medidas que a citação propõe como sendo uma “revolução democrática” . Ao não fazer a necessária ligação da revolução democrática com a política revolucionária independente da classe operária (sujeito social) e nem com a revolução socialista (dinâmica objetiva do processo revolucionário), Heloísa Helena termina restringindo sua “revolução democrática” a algumas medidas absolutamente reformistas e, acima de tudo, acanhadíssimas perante a situação periclitante das massas do país. É certo que a tarefa de conquistar a soberania nacional plena, no sentido da emancipação do jugo imperialista, é uma tarefa que a burguesia deixou pendente até hoje. Porém de maneira nenhuma isso significa que a necessária libertação da nação brasileira se resuma a “favorecer a soberania nacional, com controle de capital, auditoria sobre pagamentos ao exterior e alongamento da dívida interna” . Colocar as coisas nesses termos é admitir de antemão que a estreiteza de horizonte da burguesia brasileira ”” geneticamente pró-imperialista ”” imporá os limites à luta antiimperialista dos trabalhadores e das massas brasileiras em geral.

O mesmo se aplica aos demais pontos citados pela companheira senadora. Considerar que, frente à podridão das instituições burguesas, basta “democratizar o Estado, com o uso dos plebiscitos e o fortalecimento de conselhos na área social” , e que frente ao atraso relativo do país basta um programa de “desenvolvimento económico, com o aumento do investimento público” , significa apenas oferecer aos trabalhadores a estreita utopia de uma dominação burguesa renovada com o nome pomposo de revolução.

E tudo isso por quê? Única e exclusivamente em nome da perpetuação da escravidão assalariada. Chame-se isso de ilusão, fetichismo, mistificação, preconceito ”” felizmente, a teoria e a prática da luta de classes já desmentiram há muito essas idéias. Falta agora apenas que a nova geração de operários e jovens revolucionários, juntamente com os melhores elementos da velha geração, coloquem de pé o partido que ajudará os próprios trabalhadores brasileiros a demonstrá-lo de maneira definitiva.

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