Segunda 29 de Abril de 2024

Cultura

O movimento Manguebeat e os vinte anos de “Da lama ao caos”

16 Nov 2014   |   comentários

Há vinte anos era lançado o álbum "Da lama ao caos", de Chico Science e Nação Zumbi, um marco no movimento Manguebeat e na música brasileira.

Modernizar o passado
É uma evolução musical. (...)
O homem coletivo sente a necessidade de lutar

 Chico Science e Nação Zumbi, Monólogo ao pé do ouvido.

Em 2014 se completam vinte anos do lançamento do disco “Da lama ao caos”, o primeiro de Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ) e o grande marco no movimento Manguebeat, fundado por esses músicos ao lado daqueles de Mundo Livre S.A.

Mas foi em Chico Sciente que o Manguebeat, sem dúvida, encontrou seu maior expoente, com um artista capaz de expressar o melhor da proposta do movimento, de desenvolver em sua música a renovação estética de um estilo musical que incorporava em si elementos dos ritmos tradicionais do Recife, como o maracatu e o coco, combinados com rock, hip-hop, o psicodelismo e uma concepção que discutia a evolução da urbanidade desordenada em meio à desigualdade social caótica do nordeste.

O início da Manguebeat: Caranguejos com cérebro

O manifesto “caranguejos com cérebro”, de Fred Zero Quatro, do Mundo Livre S.A., lançado em 1992, foi a primeira expressão emblemática do próprio Manguebeat sobre suas concepções e objetivos. Nele, o autor fala do desenvolvimento do Recife, afirmando que “o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.

Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.

Ao seu diagnóstico, Fred 04 apresenta a proposta dos objetivos do Manguebeat: “O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife. (...) Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.

O entusiasmo somado a uma boa dose de ingenuidade que vemos em “Caranguejos com cérebro”, que atribui a um movimento estético e cultural um poder fortemente idealizado de transformação social, é algo comum a muitos movimentos de vanguarda cultural e estética, como podemos confirmar a partir da leitura de tantos e tantos manifestos ao longo da história. Em que pese isso, o Manguebeat deixou uma marca cultural incontornável em Pernambuco e no Brasil, mostrando que mesmo em uma sociedade de miséria como a nossa ainda há quem consiga cavar um espaço para um sopro de ar na arte.

Da Lama ao Caos: um homem roubado nunca se engana

O caldo cultural fértil de Pernambuco, que os músicos do Manguebeat comparam à riqueza biológica da vida nos mangues, é um traço histórico muito forte desse estado. Ali surgiram muitos movimentos culturais populares de uma vigorosidade imensa, como o maracatu, frevo, coco, embolada, os carnavais e teatros de rua, e, recentemente, o cenário musical no qual está inserido o Manguebeat, além de uma produção cinematográfica impressionante, que inclui filmes com uma forte vertente política de esquerda, tais como “Tatuagem” e “O som ao redor”. Assim, vemos que o Manguebeat não surge “do nada”, mas como parte de um cenário cultural muito rico.

As letras de Chico Science são certeiras, vão no coração das feridas causadas em Recife pelo desenvolvimento capitalista predatório, desordenado e selvagem. Suas músicas mais famosas, como a que intitula o álbum “Da Lama ao Caos”, falam sobre um visceral ódio contra a exploração e a miséria, e num viés nada passivo ou pessimista, como foi característico de tantos movimentos musicais dos anos 1990, como o grunge, mas sim com o olho na organização da revolta e na mudança pela via da luta. Seus versos “E com o bucho mais cheio comecei a pensar/ que eu me organizando posso desorganizar/ que eu desorganizando posso me organizar” falam dessa necessidade dos explorados em criar sua libertação a partir da destruição desse mundo que os prende e os divide.

Em “Banditismo por uma questão de classe”, o CSNZ resgata a história de célebres cangaceiros de Pernambuco. A contradição presente no folclore criado em torno do banditismo cangaceiro é traduzida na letra: a enorme miséria levava muitos ao caminho do banditismo, e o ódio pela polícia, pelos governos e coronéis, os responsáveis por tanta exploração, leva a uma mistificação de grandes cangaceiros e bandidos, como Lampião, Galeguinho do Coque ou Biu do Olho Verde. Se é verdade que eles enfrentavam a polícia e os coronéis, levando à admiração de muitos, eles também não o faziam em nome de justiça social, e eles mesmos impunham terror aos trabalhadores e o povo pobre com estupros e assassinatos arbitrários. É essa contradição que o CSNZ expressa nos versos: “Banditismo por pura maldade/ banditismo por pura necessidade/ banditismo por uma questão de classe”. Torna-se ambígua a reivindicação do grupo pelo cangaceiros, pois certa interpretação pode dar a entender que a “questão de classe”, da exploração e da divisão social do capitalismo entre exploradores e explorados, pode ser resolvida pela adesão ao banditismo. Esse certo populismo aparece também nos versos de “Da lama ao caos”: “Um homem roubado nunca se engana”.

“Da Lama ao Caos” é a expressão de que, em um cenário social em que a classe dominante faz da arte, mais do que nunca, uma mercadoria a mais a ser produzida por fórmulas e empurrada ao consumo das massas por grandes campanhas de marketing, uma renovação profunda e autêntica na arte passar por uma ligação umbilical com o que há de rebelião contra esse estado de coisas. A fusão entre as guitarras psicodélicas de Lúcio Maia, o peso das alfaias de Jorge Du Peixe e Bola 8, somada à crítica social contundente do papel assassino da polícia, da miséria social das grandes metrópoles do capital, e o resgate da tradição cultural e estética de Pernambuco e do nordeste nas letras de Chico Science, são parte dessa possibilidade de uma vida autêntica na arte. Vida, contudo, que só pode ser efêmera enquanto não nos libertarmos da mercantilização da cultura e da arte.

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