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Internacional

EGITO

O exército e seus apoiadores contra o processo revolucionário

16 Oct 2013   |   comentários

O processo revolucionário aberto no Egito desde a queda da ditadura de Mubarak em 2011 é o mais avançado dentre os que compuseram a chamada “primavera árabe”

O processo revolucionário aberto no Egito desde a queda da ditadura de Mubarak em 2011 é o mais avançado dentre os que compuseram a chamada “primavera árabe”. Podemos afirmar que desde 2011 se deram três momentos fundamentais, dentre os quais o atual é o que coloca um ponto de inflexão importante para o desenvolvimento do processo revolucionário aberto. Um primeiro momento se dá com a queda de Mubarak, fruto da ação das massas acampadas na Praça Tahrir, que se transformaram em um símbolo de uma mudança de etapa da luta de classes internacional. Paralelo ao imenso movimento de massas, que tomou as ruas das principais cidades do país se dava também uma importante recomposição sindical da classe trabalhadora. Após a realização de greves radicalizadas, como a da indústria têxtil de Mahalla, que adiantava as mobilizações que estavam por vir, amplos setores da classe trabalhadora egípcia lançaram-se a construir uma Federação Sindical Independente (EFITU, em sua sigla em inglês), desafiando a proibição de greves vigente durante toda a ditadura, e o controle burocrático das direções sindicais ligadas ao regime. Pouco se cita este fato, mas no dia em que Mubarak anuncia sua renúncia, estava marcada uma greve geral, que tinha potencialidade de colocar a classe trabalhadora no centro da situação.

Após a queda de Mubarak, se abre um segundo momento, marcado pela ascensão ao poder do governo da Irmandade Muçulmana, com a eleição de Mohammed Morsi como primeiro presidente escolhido via sufrágio universal há décadas. O exército, instituição extremamente forte no país, e que se preservou por não haver reprimido as massas durante os levantes, apoiou neste momento o governo da Irmandade Muçulmana. Na verdade havia um verdadeiro pacto entre ambos, apoiado pelo imperialismo norte-americano, em prol de forjar um regime que preservasse as condições de dominação para a burguesia local, com grande composição de membros do exército, e aliada dos EUA, em detrimento das demandas estruturais e democráticas que motivaram as massas a saírem às ruas e derrubarem Mubarak.

Isso demonstrava que não havia ocorrido nenhuma “revolução democrática triunfante”, como pretenderam organizações como a LIT.
Porém, havia um processo revolucionário aberto, que continuou se desenvolvendo. Não tardou para que as manifestações de massas novamente tomassem as ruas das principais cidades egípcias, obrigando Morsi a retroceder de medidas contidas na Assembleia Constituinte segundo as quais se propunha uma grande concentração de poder ao executivo. Isso se somava ao fato de que o governo chefiado pela Irmandade Muçulmana em nenhuma medida fora capaz de responder às demandas fundamentais das massas sintetizadas na palavra de ordem “Pão, Justiça e Liberdade”, levando ao crescimento da insatisfação popular. Como afirma Claudio Katz: “o presidente Morsi tentou copiar o modelo turco de islamismo neoliberal, mantendo a impunidade repressiva e a prisão dos opositores. Também fechou acordos com o FMI e ratificou os pactos com Israel  [1]”. Suas tentativas de impor leis obscurantistas alentaram os salafistas a atuar sectariamente, levando a uma série de conflitos com os cristãos coptas.

Neste marco, surgem movimentos como o Tamarod, que impulsionou um abaixo-assinado pela derrubada do governo de Morsi. Ainda que isso tenha ganhado amplo apoio da população descontente com o governo, o Tamarod se caracteriza por ter sido um movimento hegemonizado pela burguesia opositora, tendo integrado a “Frente 30 de junho”, uma coligação de 35 organizações em sua maioria laica e liberal, que havia nomeado o ex-inspetor a OEA, Mohammed El Baradei, como porta-voz oficial da coalizão, que se viu forçado a renunciar após o massacre perpetrado pelo exército contra os apoiadores da Irmandade Muçulmana. Dentre essa gama de organizações profundamente heterogênea, há ex-apoiadores de Mubarak, e figuras como Ahmed Moussam e Hamdeen Sabbahi, este segundo que havia disputado as eleições contra Morsi. Com um discurso demagógico de reformas, Sabbahi havia ganhado apoio de setores populares e de trabalhadores. Entretanto, se aliou com os setores burgueses abertamente inimigos de qualquer perspectiva de revolução, e defende a noção de que o exército deve atuar para “unificar” o povo. Essa é a mesma política levada adiante pelos stalinistas do país, organizados no Partido Popular e Socialista, influído por resquícios do PC egípcio. Alegando que as organizações islâmicas seriam equivalentes aos fascistas, apoiam a atual ofensiva repressiva do exército.

Frente às imensas mobilizações contra o governo de Morsi, o exército se adianta e dá um ultimato de 48 horas para a renúncia do presidente. Isso leva ao terceiro momento, com o golpe protagonizado pelo exército, que derruba Morsi em 3 de julho e institui um governo cívico-militar que encontra-se no poder até hoje. Com isso o exército buscou desviar as mobilizações, e impedir que a queda do governo de Morsi desse lugar à continuidade do processo revolucionário aberto, canalizando em chave reacionária o justo repúdio da população contra o governo de turno. Isso abre uma série de debates no interior da esquerda, e traz novos desafios para que o processo revolucionário egípcio avance de modo a culminar no fim do capitalismo e da miséria no país, obtendo a emancipação em relação ao imperialismo, única maneira de conquistar “pão, justiça e liberdade” reivindicados pelos trabalhadores e as massas nas ruas.

Endurecimento do regime não é apenas contra a Irmandade Muçulmana

Desde então, abriu-se um momento de inflexão, marcado pelo reacionário golpe do exército, que através de um governo cívico-militar detém o poder hoje no Egito. Apesar do presidente interino ser Adli Mansur, o comandante das Forças Armadas do país, Abdel Fatah al Sissi, atual ministro da Defesa demonstrou que é o presidente de fato, e está endurecendo a repressão para garantir o controle das Forças Armadas sobre a economia, cujo 40% do PIB está sob mãos dos generais e altos oficiais que participam da gestão de algumas das principais empresas do país, e o fim de toda e qualquer oposição . Apesar de o exército alegar que não busca ficar no poder, mas chefiar uma transição, utilizando para isso de manobras como promessas democráticas, o que existe hoje no Egito é a hegemonia das Forças Armadas que ganhou a lealdade da instituição de Al-Azhar, da Igreja copta, da Frente de Salvação, e do próprio movimento Tamarod. Sua consolidação no poder contou com o beneplácito do imperialismo norte-americano, e de toda a chamada “comunidade internacional”. Agora, diante da escalada de violência perpetrada pelo exército, o imperialismo norte-americano declarou que está avaliando cortar parte da ajuda financeira prestada ao exército egípcio. Apesar da demagogia, esta é uma medida cosmética, que não significa uma mudança de política por parte do imperialismo norte-americano, já que a ajuda financeira se manterá mesmo que com cortes. Israel, Arábia Saudita e Qatar também apoiaram abertamente o exército. Entretanto, o exército é uma força absolutamente hostil ao processo revolucionário que se abriu, ainda que habilmente tenha se preservado para poder desviar a mobilização das massas.

Logo após a queda de Morsi, o exército desferiu uma série de ataques a setores da população sob o argumento de que se dirigiriam contra a Irmandade Muçulmana, e está endurecendo a repressão do regime. Num único dia o exército matou mil pessoas, massacrando todos que estavam no acampamento pró-Morsi de Rabá al-Audawiya, alegando serem parte da Irmandade Muçulmana, e reordenou o estado de emergência. Tratou-se de um verdadeiro massacre, não apenas contra os setores apoiadores da Irmandade Muçulmana, mas contra todo o povo. Alegando que o Egito estaria sob ameaça de “terroristas”, Al Sissi espalhou o terror, utilizando-se dos mesmos argumentos que Mubarak se utilizava para reprimir os setores descontentes com seu governo. Foi um verdadeiro banho de sangue, que em nada deixou a dever aos piores anos de ditadura. E como uma prova simbólica importante de a serviço do que o exército atua, enquanto assassinava setores populares que são base da Irmandade Muçulmana, libertava ninguém menos que o ex-ditador Mubarak, que responderá o processo contra os inúmeros crimes que cometeu em prisão domiciliar. Como se isso não bastasse, o governo cívico-militar acaba de declarar a Irmandade Muçulmana uma organização ilegal, estimulando sua perseguição, e violência sectária entre setores da população egípcia, proibindo seus seguidores de transitarem pela mítica Praça Tahrir. Com isso espera impedir que a dinâmica de luta de classes volte a se fazer sentir no Egito, dividindo a população egípcia.

Como resultado dessa política reacionária, a violência continua se dando nas ruas das principais cidades do país. No dia 6 de outubro, em que se completavam 40 anos da última guerra contra o Estado sionista de Israel, a polícia reprimiu duramente apoiadores do presidente deposto, que tentavam entrar na Praça Tahrir, assassinando mais 51 pessoas no Cairo. Os enfrentamentos mais duros ocorreram nos bairros de Ramsés e Dokki, de onde vieram a maioria das vítimas. Ainda que o exército queira novamente legitimar sua ação pretendendo que se trata de uma cruzada contra o fundamentalismo islâmico, com quem eles próprios negociaram até pouco, diversas declarações publicadas pela imprensa internacional demonstram que há setores que estão começando a questionar a atuação das Forças Armadas frente aos massacres. “Não é verdade que todos nós sejamos parte da Irmandade Muçulmana, eu não sou. Simplesmente estou contra a intervenção do exército na política. Os militares já governaram o país durante 60 anos e demonstraram sua incompetência. É hora de ter democracia”, dizia Shafiq, um trabalhador do setor do turismo ao jornal espanhol El País em 09/10/13.

Após essa ofensiva repressiva a mando do exército, houve ataques aos postos do exército em uma localidade próxima ao Canal de Suez, quando um veículo passou atirando, em uma espécie de ataque que vem se generalizando pela região no decorrer dos últimos três meses. Em outro atentado contra uma delegacia de polícia três pessoas faleceram, e 48 ficaram feridas após a explosão de um carro bomba, em um local próximo ao Sinai, onde o governo alega haver grupos jihadistas, Porém, estes ataques têm se generalizado na fronteira próxima a Faixa de Gaza. Novamente, as declarações de Al Sissi colocam o exército como um pretenso defensor do país contra o “terrorismo”. Nada mais falso. Se existe um responsável por alentar os atentados, esse é em primeiro lugar o próprio exército e sua política a frente do governo.

A esquerda e sua deriva estratégica no Egito

Frente à situação aberta no Egito a esquerda internacional tem defendido uma série de posições equivocadas. O SWP britânico apoiou o voto na Irmandade Muçulmana nas eleições, defendendo que se tratava de um “mal menor” frente às alternativas colocadas. Trata-se de uma evidente capitulação à miséria do possível, sob a forma de apoio a uma direção reacionária, que anula qualquer possibilidade de forjar uma saída da classe trabalhadora e do povo.

Outra organização incorreu no erro simetricamente oposto. Trata-se da LIT que frente à queda do governo Morsi, se adaptou completamente ao campo opositor do governo de turno, ignorando que este estava sob a hegemonia de ninguém menos que...o exército! Que, lembremos, ainda contava com o apoio de grande parte da burguesia liberal. Mas ao contrário de assinalar isso claramente, como já é parte de sua tradição, a LIT qualificou a queda de Morsi sob as mãos do exército de “vitória”. Chega a ser irônico, se não fosse trágico, que os paladinos da “revolução democrática triunfante” tenham terminado aconselhando o exército a como reprimir a Irmandade Muçulmana, quando afirmaram que “Bastaria prisões massivas ou, como mínimo, de toda a sua cúpula. Tampouco seria necessário declarar um estado de emergência (de sítio), nem um toque de recolher, pois seria suficiente ilegalizar a Irmandade [2]”. Ao mesmo tempo pede (aos militares? aos liberais aliados do imperialismo?) que não se conceda “nenhum direito democrático nem de expressão para a Irmandade e seus líderes políticos enquanto se mobilizem pelo retorno de Morsi” (sic). É impressionante como após o exército ter assassinado mais de mil pessoas, a LIT agitou como uma de suas principais palavras de ordem “Rechaço às mobilizações da Irmandade!”.

Agora a LIT já pode comemorar. Seu conselho foi acatado pelo exército. A Irmandade Muçulmana está oficialmente na ilegalidade. Certamente essa medida bonapartista será utilizada amplamente contra a classe trabalhadora, quando se colocar em movimento contra o governo atual. E no imediato serve para consolidar a ditadura militar vigente sob a roupagem do governo cívico-militar egípcio. Além disso, ao opor partidários da Irmandade Muçulmana, que tem trabalhadores e setores populares em sua base, ao conjunto da população egípcia, essa política defendida pela LIT e executada pelo exército colabora para que se bloqueiem as tendências a que a luta se desenvolva como um combate entre a burguesia e o proletariado do país, único conflito que pode oferecer um caminho à classe trabalhadora e às massas que saíram às ruas.

Uma posição tão descabida para uma organização que se reivindica revolucionária deve ser melhor examinada. No caso da LIT trata-se da consequência do abandono da centralidade da classe trabalhadora como sujeito para levar adiante a luta pelas demandas democráticas estruturais, em países de capitalismo atrasado ou dependente como é o Egito, ligando-as à luta pela derrubada do capitalismo, elemento fundamental da teoria da revolução permanente formulada por Trotsky. Desde o início da chamada primavera árabe, a LIT-PSTU vem colocando em prática o abandono dos fundamentos da teoria da revolução permanente. Na Líbia qualificou como “imensa vitória” a derrubada de Kadafi com a participação da OTAN. Na Síria se abstém de colocar desde já um combate para que seja a classe trabalhadora e suas organizações, e não as direções burguesas do Conselho Nacional Sírio e do Exército Sírio Livre, dirijam a luta pela derrubada revolucionária de Assad. Realizando uma operação absolutamente mecânica, igualam a guerra civil síria à Revolução Espanhola, baseando-se nesta analogia completamente limitada exigem armamento dos governos inclusive imperialistas à oposição. Ignoram desta maneira que quando Trotsky levantou essa política durante a Revolução Espanhola o fez totalmente ligado a um programa de conjunto para que o armamento fosse destinado às organizações da classe trabalhadora, elemento ausente enquanto tal na presente guerra civil síria.

Mas é realmente no Egito, quando passam a exigir a repressão à Irmandade Muçulmana, que as posições da LIT atingem um grau de equívoco que chega a ser chocante. Evidentemente que a Irmandade Muçulmana é uma organização que tem um projeto reacionário que em nada favorece a classe trabalhadora , como provou o governo de Morsi. Entretanto, a declaração de que agora passa a ser ilegal, tal como exigido pela LIT, constitui um salto nos traços bonapartistas do regime. Não é assim que a influência da Irmandade Muçulmana pode diminuir, mas sim mediante uma alternativa independente dos trabalhadores e do povo, que possa responder às demandas mais sentidas. A LIT não vê essa verdade elementar justamente por que abandonou o método marxista de distinguir os setores revolucionários, dos contrarrevolucionários, mediante sua caracterização de classe. Ao definir seus posicionamentos apoiando acriticamente toda e qualquer “oposição”, ainda que burguesa, aprofunda a deriva estratégica que já veio delineando frente a estes primeiros desafios postos pela luta de classes internacional.

A política da LIT, que vai na contramão do legado de Trotsky, é consequência da adaptação dessa organização aos setores da burguesia liberal opositora no momento em que definem como uma primeira fase de "revolução democrática" (ou fevereiros inconscientes) cuja orientação estratégica seria um primeiro momento de “todos juntos para derrubar o regime” e conquistar as demandas democrático formais, como o sufrágio universal, separando-as das demandas democráticas estruturais como emancipação do país em relação ao imperialismo, ou a reforma agrária, e das medidas transitórias que atacam o capitalismo. No Egito se demonstra como a falácia dessa posição se demonstra na medida em que os supostos apoiadores da “revolução democrática” de ontem, são os sustentadores da contrarrevolução burocrática de hoje, ao apoiar o governo cívico-militar e suas medidas bonapartistas.

Ainda que a profundidade do processo egípcio muito provavelmente impeça que a situação degenere numa guerra civil, tal como na Síria, a necessidade de defender uma política revolucionária hoje se faz urgente. É preciso que os revolucionários defendam um programa que seja capaz de reverter esses ataques bonapartistas do exército, exigindo o fim do estado de emergência e da perseguição aos setores descontentes com o governo cívico-militar. Nesse sentido defendemos que se libertem os presos do governo cívico-miliar, e júris populares para punir todos os responsáveis pela repressão contra o povo. É preciso que a classe trabalhadora se coloque no centro do combate contra o exército, rompendo o apoio ao governo cívico-militar através do qual atua cada vez mais uma ditadura militar no país, avançando para conquistar a libertação nacional do país em relação ao imperialismo, e seus aliados regionais. Uma vez que as organizações da classe trabalhadora rompam com o governo, é preciso que constituam milícias de autodefesa, pois as forças repressivas certamente atuarão contra essa perspectiva. Que se convoque uma Assembleia Constituinte Revolucionária baseada nas organizações dos trabalhadores e das massas, que revogue os pactos com Israel e avance em conceder reforma agrária, urbana, impostos progressivos às grandes fortunas e ocupação e controle da produção de toda fábrica que ameace fechar ou demitir, e de todas aquelas que estão sob controle do exército. Isso deve abrir caminho se possa avançar para institui um governo operário e popular. Para isso, novamente, afirmamos que a condição fundamental é que os trabalhadores que já vieram de protagonizar greves importantes deem um salto em sua organização política, aglutinando o melhor de sua vanguarda para a construção de um partido revolucionário marxista. É isso que pode elevar o processo egípcio a outro patamar.

[1Claudio Katz, De la primavera al atoño árabe – www.rebelion.org

[2Declaração da LIT sobre o massacre no Egito – em http://www.pstu.org.br/node/19927

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