Sexta 26 de Abril de 2024

Internacional

DEPOIS DA INTENTONA AUTONOMISTA

Diálogo abençoado pela Igreja e pela Unasul favorece a oligarquia da “meia lua”

19 Sep 2008   |   comentários

A intentona autonomista
da semana passada foi o ponto mais alto na escalada
reacionária lançada desde meados de agosto, buscando bloquear a tentativa do MAS de habilitar o referendo sobre a nova Constituição Política do Estado (CPE), iniciativa que o governo queria tratar no Parlamento para chamar as eleições no próximo 25 de janeiro.

Os prefeitos e comitês cívicos da “meia lua” [1] utilizaram
os pretextos de “resistência
civil” , “autonomia” e “recuperação do IDH” para seus departamentos lançando
uma campanha de “locautes”
cívicos, bloqueios, ocupação de repartições e instituições, aeroportos, instalações petrolíferas e outros
ataques que paralisaram metade do país durante mais de duas semanas e desarticularam
o aparato do Estado
nacional em nível local, buscando avançar na linha de “autonomias de fato” como trincheira de seus interesses.

Dentre eles, está o inconciliável tema da terra. Os “cívicos” temiam não poder impedir
que a nova CPE fixe um limite entre 5 e 10 mil ha (hectares) à propriedade privada
da terra. Isto nada tem a ver com liquidar a propriedade
latifundiária, mas afeta interesses dos grandes clãs empresariais e latifundiários do Oriente, para os quais o ilimitado monopólio de terras
às custas dos camponeses e dos povos originários, a pilhagem
dos recursos naturais e a superexploração da mão-de-obra são condições essenciais
de acumulação. E mais do que está escrito na CPE, o que temem é que as massas
despossuídas e oprimidas do Oriente queiram tornar efetivas suas reivindicações de terra e território.

Por isso querem impor seus “estatutos autónomos” para aumentar o poder dos governos locais, capturando atribuições do Estado nacional
e buscando recuperar sua fatia na renda do gás através do IDH [2] para financiar as autonomias
e nutrir os negócios empresariais
locais.

Com estes objetivos é que largaram a violenta campanha
em toda a “meia lua” , utilizando bandos fascistas e grupos armados para semear
o terror, tentando dobrar os setores populares que resistem às suas imposições ou que simpatizam com o MAS.

Os grupos fascistas e o massacre de El Porvenir

A “vanguarda militar”
desta ofensiva foram os grupos de choque como a União da Juventude Cruzenha
(de Santa Cruz de la Sierra) e seus similares em Tarija, Beni etc. Os bandos fascistas se nutrem de jovens universitários e lúmpens e são financiados pelos “cívicos” e pelas prefeituras. Junto com eles atuam paramilitares dos proprietários de terra, como em algumas províncias cruzenhas
e Pando (onde é notória
a atividade do narcotráfico).

Estes grupos tomaram dezenas de repartições nacionais, chocando-se às vezes com a polícia e espancando e agredindo
selvagemente mulheres,
indígenas, gente simples do povo ou dirigentes de massas.

Mas foi em Pando onde a intentona teve sua expressão mais brutal, com o massacre de El Porvenir
de quinta-feira, dia 11, quando uma marcha camponesa
e indígena que seguia para Cobija foi atacada a tiros por pistoleiros do aparato da prefeitura dirigida por Leopoldo
Fernández, deixando um saldo de quase 20 mortos,
vários desaparecidos e meia centena de feridos.

Este ataque abriu um quadro de virtual guerra civil
em nível local, sintoma da explosividade da crise nacional, e foi um alerta para o governo e para a oposição sobre os riscos de um recrudescer
incontrolável nos enfrentamentos.

O governo
respondeu
declarando o estado de sítio no estado, impondo a mobilização militar em Cobija, enquanto iniciava alguns movimentos preventivos
de tropas do Ocidente em direção à “meia lua” . Os prefeitos resolveram encomendar
ao prefeito Cossio (de Tarija) iniciar um “pré-diálogo” com o governo nacional
em La Paz.

A política do MAS

Diante da investida autonomista, o governo se viu obrigado a um “endurecimento
tático” , pois ceder a suas exigências equivaleria praticamente a uma rendição
incondicional, em momentos
em que se sente fortalecido
por 67% dos votos positivos no referendo de 10 de agosto e necessitava avançar
com a nova CPE.

Evo Morales acusou o movimento de “golpe cívico-municipal” e expulsou o embaixador americano Goldberg
num ato elementar de resguardo da soberania nacional, denunciando os laços
deste com os prefeitos e cívicos autonomistas.

Ao mesmo tempo, o governo apostou nas Forças Armadas e na Polícia Nacional
para tratar de conter
as regiões amotinadas e responder aos assaltos às instituições (ainda que os policiais sempre acabassem cedendo terreno).

Ainda que o MAS tenha insinuado apelar aos “movimentos sociais” , deixando
correr a mobilização de alguns setores, sua estratégia
foi resolver a crise “por cima” sem permitir que as massas interviessem de maneira
decisiva na mesma.

É que a todo o momento
sua estratégia não era vencer a reação, mas convencer
esses representantes dos empresários e proprietários de terras que chama de “golpistas”
e “fascistas” a negociar e concertar; um levante das massas teria dificultado sua estratégia conciliadora.

Os militares dão “um passo à frente”

Com o estado de sítio, o governo permite aos militares
passar a cumprir um papel próprio e mais importante
no cenário nacional, ao mesmo tempo em que os encobre sob um “verniz popular” .

Ao chamar a confiança neles para conter a intentona autonomista, o MAS oculta que foi esse mesmo exército
quem realizou massacres no Outubro de 2003 e que, como instituição defensora da ordem burguesa, é a garantia
em última instância dos interesses materiais das oligarquias da meia lua (às quais muitos oficiais estão ligados
até familiarmente).

O general Trigo, chefe das Forças Armadas, em suas declarações para advertir e pór um limite aos autonomistas,
também se separou terminantemente do Comandante
Chávez, que ofereceu
apoio a Evo Morales. Com este posicionamento, o Exército anuncia que rechaça
ser o “agente militar do processo de mudança” 3 e começa
a posicionar-se como instituição “de garantia da ordem e da unidade do Estado”
para atuar como árbitro no caso de uma maior desestabilização,
papel reacionário que será inevitavelmente dirigido
contra o movimento de massas.

Setores de vanguarda começavam a enfrentar os reacionários

Perante os ataques racistas
e fascistas, os setores mais organizados do movimento
de massas no Oriente
resistiram valentemente, como mostra a defesa do Plano 3.000 (bairro operário
e indígena “colla” de 250 mil habitantes em plena capital cruzenha) ou os enfrentamentos
no Mercado Camponês em Tarija.

Outros setores que estão
na “linha de fogo” , como as organizações de colonizadores
camponeses de San Julián e Yapacani, se mobilizaram
para responder aos bloqueios dos cívicos cruzenhos.
Também no Chapare iniciaram-se bloqueios, cortando
a estrada para Santa Cruz em Bulo Bulo e outros pontos.

O massacre de Cobija
fez ferver a indignação e a determinação de se defender.
No sábado, dia 13, uma investida da juventude cruzenha contra o bloqueio camponês de Tiquipaya foi derrotado e estes elementos tiveram que se retirar com pelo menos 17 feridos (um faleceu depois). Em Cuatro Cañadas o bloqueio camponês
mostrou seus facões, escopetas e outras armas para advertir os fascistas de que caso se atrevessem a vir voltariam para Santa Cruz “no caixão” . No Plano 3.000 se organizaram brigadas de autodefesa de jovens e moradores
para se proteger das investidas da UJC.

Ao mesmo tempo, em La Paz e em todo o Ocidente,
crescia a inquietude entre os trabalhadores, os camponeses
e o povo, e as declarações
de setores dispostos a se mobilizar. Nos dias 15 e 16, multitudinárias marchas foram realizadas em La Paz, convocadas pelas organizações
altenhas COR e Fejuve, pelas universidades da UPEA e UMSA, pela COB e outros setores populares, gritando consignas contra o imperialismo
norte-americano, as oligarquias do Oriente e seus grupos fascistas.

Entretanto, o Conalcam
(que coordena os “movimentos
sociais” camponeses, indígenas e populares que simpatizam com o MAS) e a COB (cuja direção cumpriu
um papel lamentável na crise, sem dar nenhuma orientação ao movimento operário), se disciplinaram com a política negociadora do governo, canalizando a disposição de lutar em algumas
manifestações sem continuidade.

Estas direções reformistas
e burocráticas são as principais responsáveis de que o movimento operário, camponês e popular não pudessem
se mobilizar de conjunto,
somando-se aos setores
avançados que resistiam no coração da “meia lua” para contra-atacar e infligir uma derrota incontestável à intentona autonomista.

Nada de bom se pode esperar do diálogo

Durante o fim de semana
a intentona começou a perder força e a tensão diminuiu
sob a forte pressão internacional e de setores da classe dominante que queriam
colocar limites à crise e encaminhá-la à negociação.

O papel assumido pela Unasul (ver nota) respaldando
o governo de Evo Morales e “acompanhando” o diálogo com os autonomistas,
e a gestão da Igreja. facilitaram o caminho a um “pré-acordo” .

Apesar de algumas tentativas e agressões ocasionadas
por setores isolados de direita e por um primeiro rechaço dos prefeitos à detenção
de Leopoldo Fernández
e outros cívicos pandinos responsáveis pelo massacre, se alcançou finalmente, na noite de terça-feira (dia 16), a assinatura do documento que foi elaborado nas reuniões
preliminares entre o governo
e o prefeito de Tarija Mario Cossio, como representante
do Conalde.

Com a bênção da Igreja
e os bons ofícios da Unasul,
OEA e ONU, o novo “processo de diálogo” antecipa
maiores concessões para a direita, e deste acordo os trabalhadores,
os camponeses, os indígenas e o povo não têm nada de bom a esperar.

Se finalmente não se chegar a um acordo explícito
’ e não se pode descartar novos “curtos-circuitos” , rupturas ou enfrentamentos ’ será porque é difícil alcançar
o “grande acordo nacional”
(como pedem todos, desde o MAS até os cívicos) sobre os principais problemas
do regime político-estatal
que alimentam a crise política. Tudo isso seguirá condicionando os esforços para canalizar a crise ao terreno
da negociação.

Uma severa advertência

Os acontecimentos de agosto e setembro constituem
uma grave advertência para o movimento operário, camponês e popular, pois ratificam que não há uma verdadeira saída para a crise
nacional senão através de grandes enfrentamentos da luta de classes. Isto domina as perspectivas estratégicas para as quais a vanguarda operária e popular tem que se preparar. A profundidade das contradições que ocorrem
no país e do processo de massas aberto no Outubro de 2003 torna difícil chegar a acordos de fundo para reconstruir
o regime político burguês.

Diante da crise há duas estratégias que, apesar de suas diferenças sociais e políticas,
convergem no objetivo de afogar o processo de massas
e frustrar as demandas do povo trabalhador.

A variante reformista
que pretende o MAS em nome da “revolução democrática
cultural” oferece algumas
reformas parciais ao custo de renunciar às grandes
tarefas democráticas, nacionais e antiimperialistas, sem as quais não somente é impossível dar resposta aos problemas do povo trabalhador
como derrotar a reação burguesa e latifundiária.

Entretanto, quanto mais êxito tem o MAS em conter o movimento de massas com sua estratégia de colaboração de classes com a burguesia, mais descontente e impaciente se sente a classe
dominante com os custos políticos e económicos que esta variante significa, e mais a reação levanta a cabeça.

O autonomismo é uma expressão avançada das forças reacionárias e pró-imperialistas. Se a contenção reformista mostra-se ineficaz
para conter o processo
tentarão as variantes da contra-revolução aberta. O governo frente-populista do MAS permite preservar-se e pressionar incessantemente,
e pode terminar abrindo o caminho para a contra-revolução, como mostra a história boliviana (de Torres a Banzer em 1971), latino-americana (de Allende a Pinochet
no Chile em 1973) e internacional de todo o século XX.

Só a força unificada da classe operária, dos camponeses,
dos povos indígenas e do povo pobre das cidades
pode esmagar a reação e abrir o caminho para uma solução de fundo aos problemas
de libertação nacional e social na Bolívia. Mas isto exige superar as amarras que o nacional-populismo indigenista do MAS impõe ao desenvolvimento da mobilização
de massas.

Nós, socialistas revolucionários,
participamos sem sectarismo de toda unidade de ação de massas para enfrentar
os ataques reacionários,
mas denunciamos com todas as forças a política de diálogo e acordo do MAS e defendemos sempre a completa
independência política perante o governo reformista,
premissa para contribuir com todas as forças possíveis para que se possa constituir o “terceiro campo” revolucionário
do movimento operário, capaz de orientar as massas a uma saída de fundo
para a crise nacional.

Traduzido por Miriam Rouco

A Liga Obrera Revolucionaria por la Cuarta Internacional (LOR-CI), é a organização irmã da LER-QI na Bolívia, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

[1Meia lua ou Oriente é a região formada pelos estados (departamentos)
do leste boliviano (Pando, Beni, Santa Cruz de la Sierra, Tarija, Chiquisaca e Beni).

[2IDH: Imposto Direto aos Hidrocarbonetos.
O governo mudou por decreto sua distribuição, cortando a cota dos estados e aumentando a dos municípios e do governo central para financiar o plano Renta Dignidad
(benefício mensal aos idosos).

Artigos relacionados: Internacional









  • Não há comentários para este artigo