Domingo 5 de Maio de 2024

Nacional

A classe trabalhadora e suas direções frente à crise do mensalão

05 Feb 2006   |   comentários

É evidente para qualquer militante de esquerda, assim como para qualquer analista, que o auge da crise política nacional em 2005 foi marcado por uma grande contradição: o regime de dominação dos ricos teve suas entranhas expostas à luz do dia, fazendo tremer o parlamento e o governo, porém as grandes massas não se colocaram em movimento e, dessa forma, não atuaram como um sujeito político capaz de uma ação independente, que pudesse aproveitar a crise nas alturas para fazer avançar os interesses da classe trabalhadora e do povo pobre.

O principal problema que temos a enfrentar hoje é que a crise de 2005 passou (não sem deixar profundas marcas, como discutimos em outro artigo dessa edição), e não se colocou uma saída para a crise que viesse de baixo para cima, na qual as massas exploradas e oprimidas é que impusessem sua vontade contra toda a corja apodrecida de corruptos que querem continuar parasitando o país. Infelizmente, o descontentamento com o governo Lula e o Congresso permanece predominantemente passivo, e não ativo, e aponta hoje em primeiro lugar para uma confusa “desilusão com política” em geral.

De longe, o responsável central por essa situação foram as direções principais do movimento de massas: a direção da CUT e do MST, o PT em suas diversas alas e o PCdoB. Essas direções políticas conciliadoras não perderam a oportunidade durante a crise de mostrar qual é o seu papel histórico fundamental: alimentar as ilusões das massas no regime democrático burguês, com tanto maior força quanto maior a possibilidade efetiva de que o questionamento das massas ao mesmo ganhe corpo, se transformando em aplicadores diretos dos planos do imperialismo.

Todo o discurso de “defender o governo contra a direita golpista” não passou de uma estapafúrdia tentativa de cobrir “pela esquerda” a sua própria adaptação à democracia dos ricos e sua impotência para lutar de fato contra a burguesia reacionária - que foi quem melhor aproveitou a situação, diga-se de passagem. O PSDB trabalhou e trabalha para ser o principal partido a capitalizar todo esse processo de crise, tendo o PFL como seu braço direito favorito. Alternativas populistas de direita como Garotinho do PMDB também procuram crescer e ganhar espaço nesse processo. Seja com um PT recauchutado, com tucanos renovados ou com o crescimento de alguma figura populista como Garotinho, o desdobramento dessa crise vem resultando na impunidade para os chefes dos corruptos e no aprofundamento dos ataques à classe trabalhadora.

As vacilações e zigue-zagues da esquerda anti-governista
O PSTU e o PSOL frente à crise do governo Lula

Frente à política nefasta das principais direções do movimento de massas, o PSOL e o PSTU, como principais forças políticas que hoje se colocam à esquerda do governo Lula, da burocracia sindical e do PT, perderam uma oportunidade para combater a influência das direções traidoras sobre as massas e educar setores mais amplos com uma política independente da burguesia.

A primeira mostra disso foi demora para responder à crise: apenas quando já fazia quase três meses que o escândalo do mensalão detonou a maior crise do governo Lula, o PSTU e o PSOL puseram-se de acordo para impulsionar o ato de 17 de agosto em Brasília, chamado contra a corrupção. Porém um problema muito maior do que esse se mostrou durante a preparação do ato e no ato mesmo. Dias antes do ato o PSTU ainda colocava no site de seu partido o número do pedido oficial que fizeram para que o Congresso chamasse Lula para depor. Um pouco mais para trás, no final de julho, o PSTU (em acordo com o PSOL) propós uma “unidade de ação” com PDT e PPS na luta contra a corrupção em ato realizado no Rio de Janeiro no final de julho, como se esses partidos burgueses pudessem ser apresentados às massas como “aliados” na luta contra a corrupção capitalista.

Mais tarde, de um dia para o outro, já na própria marcha do dia 17 em Brasília, o PSTU lança sua política de “Fora todos” , “greve geral” e “governo socialista dos trabalhadores” , desta vez alinhando-se totalmente com o propagandismo abstrato dos grupos ultra-esquerdistas que pululam pelo país; ou, como disse seu próprio intelectual Valério Arcary, assumindo uma política de “ultra-propagandismo” , o que evidentemente não deixou de gerar crise nos melhores setores de sua base militante. O pior é que, apesar de ter realizado uma (tímida) auto-crítica da linha de unidade com a oposição burguesa “anti-neoliberal” contra Lula, “desconvidando” aqueles partidos para o ato do dia 17 de agosto, o próprio ato mostrou que já era tarde demais: não apenas PDT e PPS participaram do mesmo, mas até mesmo o PRONA de Enéas teve o descaramento de comparecer.

Nós da LER-QI nos orgulhar de termos travado uma batalha contra a participação de partidos burgueses na marcha do dia 17 de agosto, denunciando o PSTU e do PSOL e fazendo aprovar na assembléia do sindicato de trabalhadores da USP (SINTUSP), na reunião da Conlutas-SP e na reunião da Conlutas-ABC moções de repúdio a essa política que abria mão da independência de classe.

No dia seguinte à marcha, ocorreu o Encontro Nacional da Conlutas. Porém, em pleno auge da crise do mensalão, o PSTU fez o plenário votar que aquele encontro não tiraria qualquer política para a Conlutas intervir na crise. Por quê? Seria em função da crise que existia na base do PSTU quanto à política de “Fora todos” ? Ou seria porque algumas correntes do PSOL que estavam se integrando à Conlutas naquele encontro não concordavam com a política de “Fora todos” ? Entretanto, por incrível que pareça, apesar dessa votação, saiu uma “Carta” com um consenso das correntes políticas ao final do Encontro, que além de algumas generalidades contra a corrupção abria com o já famoso e conhecido chamado a “derrotar a política económica neoliberal do governo Lula” ... que não significa outra que não a redução da taxa de juros e do superávit fiscal.

Apesar de todo o barulho, o giro ultra do “Fora Todos” mal póde esconder a política abstencionista e em última instância conciliadora que o PSTU impós à Conlutas. Ainda que em seus jornais o PSTU corretamente tenha passado a colocar a necessidade de lutar contra o governo; e apesar de em seus jornais inclusive propagandear a necessidade de lutar pela revolução, na ação concreta, na hora de fazer valer o peso que possui em importantes sindicatos do país, ao defender a “derrota da política económica” , o PSTU coloca a vanguarda da classe operária como “ala esquerda” da burocracia sindical e de setores neo-desenvolvimentistas da burguesia.

O papel do PSOL na Conlutas e na Assembléia Popular

Porém, por mais críticos que sejamos da direção do PSTU, não dá para ocultar que o papel do PSOL durante a crise foi muito mais nocivo, tanto pela projeção nacional que este parido ganho a partir de sua atuação no parlamento em meio à crise como em função do caráter de sua política. Nos setores do movimento de massas em que possuem algum peso, as principais correntes que compõem o PSOL atuaram centralizadas pela vergonhosa política de convocação de um “plebiscito revogatório” e “eleições gerais” , que não podia cumprir outro objetivo que não fosse uma auto-reforma e uma regeneração desse regime de democracia burguesa degradada que vivemos hoje. Tudo em nome de expressar “taticamente” sua estratégia essencialmente eleitoral.

Enquanto uma parte de suas correntes (principalmente CST e MTL) fechava um acordo burocrático com o PSTU para calar a Conlutas durante a crise, outros setores se organizavam em um outro pequeno pólo de reagrupamento, criado no ano passado, a Assembléia Nacional Popular e da Esquerda (ANPE), impulsionada centralmente pela corrente “Socialismo e Liberdade” que compõe o “centrão” (ou seria melhor dizer “centrinho” ?) do PSOL. Porém esta “Assembléia Popular” , além de também não votar qualquer política para intervir de maneira unificada diante da crise burguesa, nem sequer terminou de se forjar como anti-governista para não “espantar” a “esqueda” petista.

A atuação do PSOL no parlamento

Ao contrário do que imaginam certos “ultra-esquerdistas” , o parlamento pode ser numa excelente ferramenta para realizar uma agitação de massas. Como ficou evidente em meados do ano passado, em momentos de crise nacional, quando os de cima estão paralisados por suas próprias contradições internas, os olhos do povo comum se concentram na tribuna parlamentar, a partir de onde seria possível denunciar para milhões as misérias da vida capitalista e, mais importante, os mecanismos sórdidos utilizados para perpetuá-las. Era disso que se tratava quando o país se encontrou às voltas com a crise política.

Entretanto, no momento em que os holofotes da mídia burguesa apontavam para os parlamentares do PSOL, sua estratégia “anti-neoliberal” e de adaptação à democracia dos ricos se mostrou com toda a força. Por fazerem uma crítica apenas “anti-neoliberal” , sem questionar as bases da opressão e da exploração capitalistas, a veemência usada para denunciar a aplicação por Lula dos planos do FMI não serviu para desmascarar o conjunto da ordem burguesa, e alimentava a ilusão de que é possível, por dentro do capitalismo, uma administração “ética” e em benefício dos trabalhadores. Pela adaptação à democracia dos ricos, os parlamentares “radicais” , sustentavam o engano de que é possível criar mecanismos de controle popular sobre a corrupção dos de cima. Nesse ponto, foi particularmente conciliadora a atuação de Heloísa Helena, que insistia que trabalharia para que as CPIs apurassem “até o final” as denúncias e garantissem a punição aos culpados. O certo é que assim cumpria apenas um papel de iludir o povo de que é possível “limpar” a democracia dos ricos, desperdiçando uma grande oportunidade para defender, com toda a autoridade que havia conquistado frente a um setor das massas, que do que se trata é de derrubá-la para pór em seu lugar uma verdadeira democracia de massas, baseada nos conselhos de operários, camponeses e do povo pobre.

O papel da consigna de Assembléia Constituinte Livre e Soberana

Durante a crise, levantamos a política de Assembléia Constituinte Livre e Soberana, que para nós teria sido a única política capaz de transformar o descontentamento e a indignação política de amplos setores das massas com a podridão dos partidos e das instituições dominantes, em uma militância orgânica da classe trabalhadora para impor uma saída independente da burguesia para a crise provocada pelos escândalos de corrupção, ligando essa corrupção dos de cima aos problemas mais sentidos pelas massas.

No calor da crise, a luta para que as organizações de massas dos explorados e oprimidos - os sindicatos, a CUT, o MST, a UNE etc - rompessem com o governo e impusessem pela força uma Assembléia Constituinte Livre e Soberana abriria a possibilidade de um amplo debate entre as massas sobre o caráter falsamente democrático de instituições como o Congresso e a Presidência da República; da necessidade de atacar o lucro dos capitalistas e de romper com o imperialismo para garantir emprego para todos e um salário capaz de satisfazer as necessidades de cada família; de atacar o grande latifúndio para acabar com a miséria no campo.

Na medida em que a burocracia sindical ou as direções dos movimentos populares se negassem a mobilizar suas bases para impor pela força uma Assembléia Constituinte, estaria aberta uma possibilidade para que os trabalhadores percebessem na prática como o discurso de que o governo sofre um “golpe da direita” era uma falácia e de que na verdade o apoio das organizações de massas ao governo é antagónico com os reais interesses da maioria da população, alentando a massificação de um processo de expulsão das direções governistas e burocráticas e de surgimento de novas direções combativas.

No curso dessa luta, diante dos enfrentamentos com a burguesia e na medida em que esta utilize seu poder económico e militar para impedir a realização de qualquer uma das reivindicações dos explorados e oprimidos, estariam colocadas condições favoráveis para que os trabalhadores e camponeses pobres percebam a necessidade de construírem um outro tipo de poder, soviético, através do qual as massas, organizando suas próprias milícias, assumam as rédeas do país, organizando toda a produção a serviço dos interesses da maioria.

O papel de um Encontro Unificado dos trabalhadores e da esquerda combativa

Ao longo de toda a crise, o PSOL e o PSTU se negaram a organizar um encontro que buscasse unificar o conjunto dos trabalhadores que hoje questionam o governo Lula e o PT, trazendo não só a periferia que cada um influencia, mas também servindo como estímulo para atrair aqueles que ainda não se colocaram numa perspectiva militante. Realizaram encontros nacionais separados, o da Conlutas, no dia 18 de agosto em Brasília, e a Assembléia Popular Nacional e da Esquerda, realizada no dia 25 de setembro.

Entretanto, por incrível que pareça, tanto o PSTU quanto o PSOL, quando vão propor o programa pelo qual a Conlutas ou a Assembléia Popular devem lutar, mesmo separadamente, chegam ao corolário máximo comum do ataque à política económica do governo. Alguns dizem “abaixo” , outros dizem “mudança” ; no fundo, uns com uma verborragia mais de esquerda e outros mais de direita, ambos têm acordo em colocar para os trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais mais avançados a tarefa “máxima” de lutar para mudar a política económica neoliberal do governo, adaptando-se ao “anti-neoliberalismo em geral” , que não é outra coisa senão adaptar-se ao “neodesenvolvimentismo de esquerda” . O PSTU, para não prejudicar a relação com seus aliados reformistas que lhe permitem sobreviver dentro do regime com relativo peso no movimento sindical. O PSOL, para não afastar os petistas e ex-petistas que lhe permitem sobreviver no regime com relativo peso eleitoral.

A Liga Estratégia Revolucionária, com suas pequenas forças, lutou no Encontro Nacional da Conlutas e na Assembléia Nacional Popular e da Esquerda por um Encontro unificado dos trabalhadores e da esquerda combativa, para armar os setores que começam a romper com o governo Lula e o PT de uma política capaz de ligá-los às massas na luta para impor uma saída classista para a crise.

Mesmo com o refluxo da crise, um encontro desse tipo continua sendo uma necessidade para que a vanguarda possa se unificar em torno a um pólo com uma política classista para combater o governo, o PT e a burocracia sindical. É necessário abrir o debate sobre um balanço da crise e da atuação da esquerda na mesma, de modo a tirar as conclusões necessárias para intervir com precisão nas brechas nas alturas que não terminaram de se fechar e que podem voltar a se abrir ainda mais.

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