Quinta 2 de Maio de 2024

Movimento Operário

ARGENTINA: OS TRABALHADORES E O PODER

Sindicatos e conselhos de empresa: A experiência dos ceramistas de Neuquén

12 Nov 2002 | Em Neuquén os operários de Zanon desenvolveram uma experiência original de autodeterminação: o surgimento de uma nova organização de coordenadores da produção, comissão interna e sindicato. Trataremos aqui destes novos elementos de qualidade em relação à classe operária que esta experiência mostra, no sentido estratégico da luta por um Estado dos trabalhadores. Em um próximo texto desenvolveremos em profundidade o debate colocado entre o marxismo e o autonomismo, sobre o papel da auto-organização das massas, a questão do poder e o estado, no processo de transformação social.   |   comentários

Democracia industrial

Os operários de Zanon já têm mais de um ano de ocupação e oito meses de produção sem patrões. No decorrer desta experiência constituíram um novo tipo de instituição: a reunião de coordenadores da produção, comissão interna e sindicato. Os coordenadores são votados pela base e representam os diferentes setores e tarefas da fábrica.

Por ordem da empresa, os operários aplicaram no plano da produção o mesmo método de organização e democracia direta com que encaram a luta. Assim "em determinado momento os materiais de 2ª e 3ª qualidade eram muitos e então resolveram o que fazer... em assembléia. Realizaram uma jornada de debate sobre tudo que diz respeito à produção e sua planificação: os horários, as guardas, o regime interno, os níveis de produção, as folgas, os materiais etc... Dias antes haviam realizado a primeira reunião conjunta entre os dirigentes sindicais, os delegados e os coordenadores. Toda resolução é tomada em assembléia, e ainda semanalmente devem baixar um informe do que foi produzido e vendido” .

A nova organização permitiu projetar um esquema mensal para incrementar a produção, base para avançar nos projetos políticos, como a incorporação de novos trabalhadores que vem do movimento piqueteiro ou empreendimentos para a comunidade. Os operários realizam assim uma escola no terreno da planificação, oposta à norma capitalista de maximizar os lucros e minimizar os custos. Produto da imaginação e iniciativa operária nasceram idéias como a linha Mapuche (cerâmica com temas indígenas parte da cultura da comunidade local), a cooperação dos engenheiros e estudantes da Universidade de Comahue, e a escola de ofícios que funciona na fábrica.

No novo organismo se integraram os distintos setores que representam o coletivo operário (sindicato, comissão interna e coordenadores) unificando as "tarefas de produção" e as "políticas". Porque ao mesmo tempo em que se debatem as funções do processo industrial, se impulsionam ações que estão relacionadas com o desenvolvimento da Coordenadora do Alto Valle, e da relação com outros movimentos de luta e difusão de suas idéias na população.

Esta organização se assemelha ao que na história da luta de classes se conhece como conselho operário de fábrica. Estes conselhos, como os que surgiram na Europa dos anos 20, organizavam todos os trabalhadores de uma empresa (filiados ao sindicato ou não), refletindo uma estrutura igual à da fábrica. Funcionam mediante a eleição democrática de delegados revogáveis. Estes comitês resolviam sobre todos os problemas da vida operária, exercendo a democracia operária. Apareceram em momentos de auge revolucionário da classe operária, onde se generalizaram, colocando de fato, a emergência de um duplo poder ainda que embrionário - no nível das unidades de produção.

Ainda que a situação dos trabalhadores argentinos não seja de ascenso, a experiência dos ceramistas tem o valor de expressar uma tendência operária e anticapitalista, nascida no centro da produção, e que põe em evidência a potência da democracia operária para conquistar a unidade dos trabalhadores. Mostra uma via possível para a articulação de um novo movimento operário, que ainda que fragmentado e golpeado pelo desemprego, a crise económica-social e a traição da burocracia sindical, está dando seus primeiros passos na convulsiva luta de classes argentina aberta com as Jornadas de Dezembro.

Conselho de empresa e sindicato

Os marxistas reconheceram no conselho de fábrica uma superação da organização sindical clássica. Esta, por sua função, se institui para defender as reivindicações específicas e corporativas dos trabalhadores de uma categoria. Para exercer tal fim, reconhece a soberania do estado e o caráter de mercadoria da força de trabalho. Já o conselho de empresa, representação direta dos produtores agrupados no processo de trabalho, exercendo o controle operário da produção, se constitui como um aberto questionamento a essa ordem, ao capital, e por essa via ao estado burguês.

O salto da ligação dos sindicatos com o Estado na década de 90, o compromisso de sua burocracia dirigente com as políticas patronais, e a enorme fragmentação da classe operária entre empregados e desempregados, efetivos e contratados, nativos e imigrantes, coloca a necessidade de organizações que unam as forças dos trabalhadores. A recuperação dos sindicatos e as comissões internas atuais são tarefas fundamentais para avançar nesta perspectiva. Livres da burocracia, estas organizações podem superar os limites do sindicalismo, para transformar-se em autênticas instituições que dêem o impulso necessário ao conjunto da massa operária em sua luta contra a burguesia e o estado. No caso dos ceramistas de Neuquén, conquistaram um sindicato classista, o SOECN, e uma comissão interna com as mesmas características, o que permitiu o livre desenvolvimento da iniciativa operária impulsionando esta nova organização, conjuntamente aos históricos conselhos de fábrica.

A importância desta instituição reside em que pode converter-se "no estado maior para a entrada em combate de cada setor da classe operária que os sindicatos são habitualmente incapazes de mobilizar". A experiência de Zanon mostra esta possibilidade. A unidade com os piqueteiros do MTD local, que foram parte da guarda operária que enfrentou a burocracia e seus capangas, já é um avanço concreto. As demandas de estatização e controle dos trabalhadores e de um plano de obras públicas, levantado pelo SOECN, foram chaves para afiançar esta coordenação. Junto a eles e outros setore em luta, docentes e trabalhadores da saúde, constituiram a Coordenadoria do Alto Valle, colocando uma tendência a superar a divisão corporativa, por grêmio e movimentos sociais.

A Coordenadoria, ainda que esteja limitada a uma aliança na luta e a setores da vanguarda, já mostra sua potencialidade. De massificar-se, sua efetividade residiria em que é uma instituição radical dos trabalhadores da indústria, o que poderia inspirar o movimento operário e popular regional.

Antagonismo com o estado

O pensamento marxista tem valorizado o conselho de fábrica nos momentos de ascenso revolucionário, como uma instituição na qual "...a classe operária se constitui em corpo orgânico determinado, como célula de um novo estado, o estado operário, como base de um novo sistema representativo, o sistema dos conselhos".
No quadro da situação argentina, não podemos afirmar que a generalização de organizações autónomas como a surgida em Zanon, seja a tendência que predomine na luta de classes futura. Entretanto, para os socialistas revolucionários é de importância estratégica compreender seu significado.

Para entender isto, é necessário compreender que a lógica de funcionamento do sistema capitalista, se baseia na exploração da força de trabalho e a apropriação privada do produto social. A moderna empresa capitalista é um coletivo mais complexo que já não se define apenas por suas funções produtivas, mas também pelas tarefas técnico-científicas, intelectuais, comerciais, de comunicação e financeiras, que têm dado origem a um novo assalariado, que acompanha o operário industrial e é parte constitutiva da classe operária, ou seja uma massa humana que deve viver da venda de sua força de trabalho.

Sob o capitalismo, o operário é um instrumento de produção. Se este toma consciência de sua realidade, de sua potência, para colocá-la "como base de um aparato representativo de tipo estatal (quer dizer, não voluntário, contratual, por afiliação, senão absoluto, orgânico, que contemporiza com uma realidade que é necessário reconhecer se se quer ter assegurados o pão, a roupa, o teto, a produção industrial), se a classe operária faz isto, realiza um ato fundamental, inicia uma história nova..." Assim, do seio da empresa, desde o conselho surge uma instituição irreconciliável com o capitalismo, onde os operários realizam uma experiência de autodeterminação e administração, de direção e planificação.
Este é um elemento de qualidade e subversão, que a nova organização de Zanon, traz como caminho às novas gerações de operários e aos movimentos que instalaram na Argentina embriões de democracia direta e organização independente, como as assembléias de bairro e os movimentos piqueteros combativos.

A questão do poder

Desde as Jornadas de Dezembro vem tomando importância o debate sobre a "questão do poder" e sua relação com a democracia direta e a autoorganização das massas. Da coordenação, massificação e organização da classe operária e do povo em luta, poderão surgir as instituições do novo poder, no que se baseia o futuro estado dos trabalhadores. Neste sentido valorizamos a experiência que iniciam os operários de Zanon, como uma via para que o movimento operário avance na autoorganização e na unidade com o povo.

Muito militantes sociais, como os que reivindicam o autonomismo, apreciam a experiência de Zanon e da gestão operária. Vem nesta última um ato de autovalorização popular base de relações sociais mais solidárias. Reconhece isto é um grande passo, porém insuficientes. Porque se está desligado do essencial, o germén do poder subjacente neste tipo de organização, que antecipa uma nova ordem social incompativel com o domínio capitalista.

Para estas correntes ter uma estratégia de luta pelo poder, degenera as possibilidades de transformação. Colocam o acento na autonomia mas limitada a um desenvolvimento autogestionário, por fora da luta política contra o estado burguês, o que ignoram. Assim, negam, em última instância, a revolução como meio para quebrar a velha ordem, deslocar a força de choque do estado, impor um novo governo, que se apoie no poder de organismos autonomos dos trabalhadores e do povo pobre, que incorporem as massas exploradas e oprimidas às decisões em todas as áreas da vida social, política e económica.

Os espaços de democracia direta conquistados em dezembro, são expressão da mudança das relações de força entre as classes. A crise do velho regime e da burguesia, colocará cedo ou tarde a necessidade de novas ações revolucionárias, até derrotá-los. Não sendo assim, serão as classes dominantes as que vão impor sua saída de força.

Nesta perspectiva, a hegemonia política, social e cultural da classe operária é uma questão chave, que merece a reflexão teórica profunda de todos os militantes operários e populares, em particular dos marxistas. No próximo número avançaremos sobre este tema em polêmica contra os que repetem a frase feita de que não temos que lutar pelo poder. Mesmo assim, a defesa e extensão da experiência dos operários de Zanon é uma tarefa de primeira ordem para todos os lutadores.

O Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) é a organização irmã da LER-QI na Argentina, e também faz parte da Fração Trotskista - Quarta Internacional

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