Sexta 26 de Abril de 2024

Questão negra

OPINIÃO

O Globo e a Casa Grande ou os jornalistas de “grosso trato” e a falsificação da história e do presente

14 Jan 2013   |   comentários

Os traficantes de escravos no Rio de Janeiro do século XIX eram conhecidos como “comerciantes de grosso trato”, por razões auto-evidentes, até para os padrões de uma sociedade escravocrata. Hoje, 14/01/13, os editorialistas do O Globo se prezam a um papel semelhante. Seu “grosso trato” com o presente e com o passado é parte de um esforço intelectual e político da elite brasileira em negar de onde ela provém, e que tipo de capitalismo e “sistema (...)

Os traficantes de escravos no Rio de Janeiro do século XIX eram conhecidos como “comerciantes de grosso trato”, por razões auto-evidentes, até para os padrões de uma sociedade escravocrata. Hoje, 14/01/13, os editorialistas do O Globo se prezam a um papel semelhante. Seu “grosso trato” com o presente e com o passado é parte de um esforço intelectual e político da elite brasileira em negar de onde ela provém, e que tipo de capitalismo e “sistema democrático” existem no Brasil assentado sob a herança da escravidão e do racismo transformado mas perpetuado.

No editorial desta data, intitulado “Para salvar o mérito” debate-se as cotas raciais. De nossa parte não somos defensores das mesmas, mas do livre acesso às universidades através da estatização das universidades privadas e garantia de financiamento e qualidade a todo um sistema universitário através de um governo universitário de estudantes, professores e trabalhadores. Mas tal como a luta por garantir o mínimo que a constituição preconiza para os assalariados e é calculado pelo DIEESE em mais de R$ 2600 passa por acompanhar e lutar junto a grevistas que defendem salários muito menores; a luta pela radical democratização da universidade passa também por acompanhar a luta pelas cotas.

O objetivo do debate d’O Globo não é o das cotas, mas negar que exista racismo no Brasil e para isto usa uma série de absurdos argumentos renegadores da história. O eixo da polêmica para os jornalistas da casa grande é que haveria triunfado a “tese da ‘dívida histórica’”. Para este jornal não há dívida histórica. A escravidão foi-se, o Brasil é miscigenado e o problema que existe é puramente social. E o problema social brasileiro não tem nada a ver com seu passado nem com raça.

Vamos aos fatos e argumentações.

Primeiro, argumentam nossos casagrandinos contemporâneos “os negros mandados para o Brasil foram tornados escravos por outros negros durante guerras tribais na África”. Pulemos o eufêmicos “mandados”, as feitorias, os porões, a travessia....Há ampla historiografia que mostra o lugar, os tratos, absolutamente distintos dos escravos em África e nas Américas, particularmente em nosso país que exibia uma das mais baixas expectativas de vida de escravos em todas Américas. A escala do que foi a escravidão, os milhões de negros seqüestrados, metade de deles vindo para o Brasil, cerca de 5 a 20 milhões conforme as fontes. Não se trata da “velha guerra tribal africana” mas de algo absolutamente novo e bárbaro que foi produzido pelas elites européias e nascentes burguesias, inclusive a tupiniquim. Mudando de foco de um genocídio para outro, alguém diria que não houve massacre – holocausto – de judeus pelos nazistas porque havia alguns judeus que colaboravam com os nazi? Não houve o gueto de Varsóvia e seu massacre porque ele tinha uma espécie de “prefeitos” judeus colaboradores?

Segundo argumento dos herdeiros das terras e seres humanos, “os derrotados eram presos e vendidos no Brasil também para outros negros”. Isto ocorria em pequeníssimas proporções, mas o que isto muda? Há por acaso uma ampla e histórica camada de proprietários rurais, grandes industriais negros nestas terras? Ou ao contrário, o lugar privilegiado do negro neste país não são as prisões, o desemprego, trabalho precário, a moradia em favelas e locais que desabam, alagam, o trabalho doméstico para mulheres e meninas negras, as balas perdidas e “autos de resistências”? Existe, é fato, médicos, juízes, advogados negros neste país. Mas tal como os pedreiros negros frente aos pedreiros brancos os médicos negros ganham menos que os médicos brancos. Isto não é parte da “dívida histórica” que o Globo nega que existe?

Terceiro argumento odioso: “a grande dívida histórica brasileira é com o pobre, de qualquer cor. Agora, num país assentado numa sociedade miscigenada cria-se um apartheid contra o branco de baixa renda”. Os pobres são igualmente divididos entre brancos e negros? Pulemos este argumento que já abordamos parcialmente acima. O Brasil é um país miscigenado, mas quanto desta miscigenação foi voluntária? Ou não teria sido o estupro do senhor de engenho, seus filhos, feitores, capatazes parte desta miscigenação? A continuação da mesma prática no assédio sexual de patrões e filhos a empregadas domésticas entra como nesta miscigenação? Por fim para completar seus absurdos argumentos O Globo chama de apartheid as dificuldades que os pobres brancos terão para entrar nas universidades. Este argumento final é o cumulo de sua falsificação da história e do presente e a ele dedicaremos mais espaço argumentativo.

O apartheid foi um dos mais odiosos regimes políticos erguido pela burguesia em todo o mundo, vingou na África do Sul e na atual Namíbia (país anexado pela África do Sul por décadas) e no Zimbabwe. Um regime assentado no racismo com contornos muito distintos do papel que teve o racismo no Brasil onde a classe dominante procurou desenvolver a falácia da “democracia racial”. No apartheid os negros eram encerrados em bantustões, tinham que ter passaporte para se locomover dentro do país, não tinham nenhum direito político, não podiam freqüentar os mesmos bairros, locais públicos, tinham os piores empregos, eram divididos conforme grupo étnico, etc, sistema muito diferente do brasileiro que procura mostrar que todos poderiam ter acesso a tudo e que não haveria nenhum tipo de discriminação.

O Globo não critica os limites das cotas, não argumenta uma linha que milhões de negros ficaram de fora das universidades mesmo com as cotas, não se preocupa com eles, não fala uma palavra do sistema prisional e como são condenados negros que roubaram um frango (como ocorreu recentemente em um restaurante da Petrobrás no Rio de Janeiro), dos autos de resistência, das favelas, do trabalho precário, e demagogicamente quer tomar a bandeira de pobres brancos. Tal como os bôer (brancos) da África do Sul que viviam de fomentar ódio, escrever fantasiosas histórias sobre sua origem e destino, para poder defender seus privilégios nossos herdeiros da casa grande querem com seu “grosso trato” repetir o papel de seus irmãos de classe na África do Sul. Nem que para isto precisem deturpar o que foi o apartheid, ignorar qual é a realidade do Brasil e ignorar sua história.

Walter Benjamin dizia em suas Teses sobre o Conceito da História, “que nem os mortos estariam a salvo se o inimigo vencer”. E trata-se justamente disto quando nos confrontamos com a história do Brasil. O Brasil ergueu-se em cima de um dos maiores genocídios da história, o genocídio passado e presente dos negros. O Carandiru, a chacina da Candelária estão aí como prova atual. Também estão como prova histórica cemitérios (que seriam melhor descritos como valas-comuns) como dos Pretos Novos na Gamboa no Rio que abrigaram em poucos anos 30mil escravos que morreram antes de serem vendidos. Este cemitério por sua importância histórica e magnitude do massacre deveria figurar nos livros de história mundial junto a Auschwitz e Treblinka. Mas não, não há racismo no Brasil diz o Globo.

Ocorre que este cemitério foi escondido pelas classes dominantes, foi encontrado em meio à obra de uma família em sua casa. Ruy Barbosa mandou queimar todos documentos da escravidão (temendo que os ex-proprietários exigissem indenização pela abolição e negando aos negros sua história). Tal como estes documentos, tal como este cemitério, o Rio de Janeiro e o Brasil foi erguido procurando apagar seu passado para erguer esta falácia de democracia racial. O Cais do Valongo, principal porto de entrada das Américas de negros seqüestrados, por onde passaram de 1811 a 1830, um milhão de negros (30 mil deles não sobreviveram e acabaram no vizinho cemitério, fora os que acabaram no mar) foi encontrado recentemente debaixo de asfalto. Não faltam exemplos do que esta burguesia tenta negar que ocorreu, do quilombo dos palmares, ao bombardeamento da ilha das cobras na “segunda revolta da chibata” matando centenas de marinheiros, entre inúmeros exemplos. A burguesia brasileira quer esconder seu passado e seu presente.

Na mão da burguesia brasileira e seus escribas nem os mortos estão a salvo. Da história dos derrotados ergueremos outro presente e futuro, onde não exista espaço para a escravidão, exploração, nem para falsificar e negar a história do maior genocídio já cometido na história e que se perpetua dia a dia nas mãos desta classe dominante.

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