Sexta 26 de Abril de 2024

Internacional

ENTREVISTA

“Na América Latina, a criminalização do aborto condena milhares de mulheres à morte”

26 Apr 2009 | Entrevistamos Diana Assunção, dirigente da LER-QI e integrante do grupo de mulheres Pão e Rosas, sobre os últimos casos no Brasil que envolveram a Igreja, médicos e meninas estupradas, e sobre a Campanha Latino-Americana: Basta de mortes por abortos clandestinos!   |   comentários

JPO: O direito ao aborto é uma questão polêmica. Por que todos querem opinar sobre o aborto?
A questão do aborto é um tema que transcende o fato de uma mulher não querer levar adiante sua gravidez. É necessário compreender, em primeiro lugar, que as mulheres, como um grupo social subordinado nas sociedades de classes, têm em seus temas “íntimos” um espaço de discussão sobre o próprio papel que as mesmas cumprem na sociedade. Ou seja, reivindicar o direito de decidir sobre o próprio corpo optando ou não por uma gravidez é questionar a sexualidade imposta para as mulheres, uma sexualidade na qual não há espaço para o prazer feminino, há espaço apenas para a reprodução. Em última instância, é questionar também, o modelo de sociedade no qual vivemos, desde o “núcleo familiar” onde a mulher cumpre um papel subordinado, sendo oprimida pela própria família, até a existência das classes sociais. Isso se expressa na sociedade de diversas maneiras. Desde os grupos políticos, de mulheres e direitos humanos que vão buscar se colocar na luta pelo direito das mulheres decidirem sobre seu próprio corpo, até as posições mais reacionárias, como as marchas contra o direito ao aborto, a perseguição de mulheres no Mato Grosso do Sul por terem feito abortos clandestinos, as declarações da Igreja diante do aborto, deputados do PT que apresentaram a proposta de uma “bolsa-estupro” pra garantir que as mulheres estupradas não abortem os filhos fruto dessa violência, assim como a CPI do aborto.

JPO: Muitos dizem que se o aborto for legalizado todas as mulheres vão querer fazer...
Esse é um tipo de senso-comum que só pode passar pela cabeça de alguém que nunca viveu uma situação de aborto, seja como experiência própria, ou de alguma conhecida, amiga, familiar. Isso porque, a luta pelo direito ao aborto não parte de uma compreensão de que se trata de uma coisa “boa” que todas as mulheres querem fazer. Se trata de uma necessidade, ou melhor ainda de um “triste direito” , como dizia o revolucionário russo Leon Trotsky. O fato é que a miséria produzida pelo capitalismo, que inclui falta de acesso aos hospitais públicos, escassez de alimentos, moradias precárias, salários baixíssimos, contribuem para que muitas mulheres sejam empurradas a um aborto, seja uma gravidez fruto de violência ou não. Por isso, por compreender a necessidade de lutar por esse direito, faço minhas as palavras da antropóloga Débora Diniz, quando disse que “a criminalização do aborto obriga as mulheres a uma experiência de tortura” . Entendo que essa experiência de tortura é a situação de clandestinidade e humilhação à qual milhares de mulheres são submetidas todos os anos, no mundo inteiro. As trabalhadoras e pobres, em sua maioria, acabam pagando com sua própria vida.

JPO: Por isso o aborto não é um método contraceptivo?
Sim. Muitos dizem que é mais um mero método contraceptivo, pra tentar fazer parecer que tratamos essa questão de forma “leviana” , como se a qualquer momento alguém fosse no banheiro fazer um aborto. Ao contrário disso, consideramos que é necessário que exista, por exemplo, educação sexual em todos os níveis da educação pública, sem intervenção da Igreja, para que os jovens e as jovens possam conhecer sua sexualidade, e dessa forma optar pela maneira como querem desfrutá-la. Ao mesmo tempo, exigimos que o Estado forneça contraceptivos gratuitos e de qualidade, o que inclui anticoncepcionais para as mulheres e a chamada “pílula do dia seguinte” , assim como camisinhas masculinas e femininas para evitar não somente uma gravidez não desejada como a transmissão de doenças sexualmente transmíssiveis. E defendemos o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, em todos os hospitais públicos, para que nenhuma mulher morra buscando maneiras perigosas e clandestinas de interromper sua gravidez. E tudo isso porque a criminalização do aborto não impede que ele continue ocorrendo, ao contrário, permite que isso se dê de forma clandestina, condenando milhares de mulheres à morte.

JPO: Mas a legalização ao direito ao aborto vai resolver todos os problemas das mulheres?
Não e nem poderia. O direito ao aborto é um direito democrático de todas as mulheres. Mas vivemos numa sociedade que nos relega a miséria e a agonia diante de uma enorme opressão, sobretudo para aquelas mulheres que trabalham, e portanto são diariamente exploradas. Por exemplo, além de tudo que disse acima, defendemos o direito à maternidade, pois consideramos que nem sequer esse direito, elementar, temos plenamente na sociedade em que vivemos, pois são muitas as mulheres que têm seus filhos em péssimas condições, que não têm acesso à saúde pública, à educação, à saneamento básico, à cultura e ao lazer. Isso sem falar nos casos de mulheres negras que são esterilizadas para não ter mais filhos... Ao mesmo tempo, não está descartado que mesmo com uma possível legalização do aborto as pessoas que recorrerem a essa cirurgia não sejam perseguidas. Hoje vivenciamos um fato que demonstra isso de forma crucial: mesmo dentro das leis da burguesia, que permite o aborto nos casos de estupro e risco de vida para a mãe, a Igreja não abaixa a cabeça, e persegue os responsáveis pelo aborto na menina de 9 anos estuprada pelo padrasto em Pernambuco, e grávida de gêmeos. Por isso, desde já, é preciso combater essas posições obscurantistas da Igreja Católica, que permitiram que seu Arcebispo declarasse que o “aborto é pior que o estupro” . Ao mesmo tempo, o Brasil já foi palco de posições reacionárias que eram favoráveis à legalização do aborto, como o prefeito do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, que defendia o aborto como medida de extermínio do povo negro nos morros, considerando que a possibilidade das mulheres negras da periferia poderem abortar poderia estar diretamente relacionado com a diminuição da violência no Rio de Janeiro. Uma posição que se aproxima das que conhecemos na Alemanha dos anos 1930...

JPO: A Igreja diz defender a vida do feto, enquanto outros dizem defender a vida das mulheres... o que está em jogo realmente?
A Igreja quer fazer parecer que os que defendem o direito ao aborto são assassinos. Eu diria que isso é no mínimo revoltante. O exemplo de Pernambuco é gráfico: a Igreja não questionou em momento nenhum o estupro de uma menina de 9 anos. A Igreja não questionou em momento nenhum que esse estupro tenha sido feito pelo próprio padrasto da criança, ou seja, dentro de sua própria família, e tampouco condenou o estuprador. A Igreja não aceitou as leis da própria burguesia, que permitiam o aborto nesse caso. E, pior ainda, a Igreja não mencionou nenhuma palavra sobre a grande possibilidade de morte da menina caso levasse adiante a gravidez, já que ela pesa apenas 36kg e estava grávida de gêmeos. E tudo isso “porque Deus quis que a menina engravidasse” . Há que se perguntar: isso é defender a vida ou é defender uma ideologia cristã? Consideramos que é defender uma ideologia cristã que pouco se importa com a violência contra as mulheres e com a morte de milhares de mulheres ensanguentadas na clandestinidade do aborto. Uma ideologia cristã que faz demagogia dizendo que defende a vida de “crianças por nascer” , enquanto milhares de crianças vivas morrem de fome no mundo inteiro, morrem por falta de acesso à agua, à saneamento básico. Não têm acesso à educação e à cultura. Ao mesmo tempo, essa alta taxa de mortalidade infantil ocorre em uma sociedade onde o a Igreja, que tem como orgão máximo o Vaticano, é possuidora de um património avaliado em 700 milhões de euros, para assim desfrutar das “maravilhas terrenas” ... E agora uma instituição norte-americana ainda tem coragem de dar um prêmio “Em Defesa da Vida” para o Arcebispo de Olinda! Isso é tão absurdo quanto o fato do presidente do Paraguai, Fernando Lugo, ter declarado há algumas semanas que é pai de uma criança gerada na época em que ainda era bispo! Pois é.. “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” .

JPO: Mas não é somente a Igreja que diz “defender a vida” ...
Não. A Igreja conta com diversos setores da classe dominante e seus partidos políticos pra fortalecer essa luta reacionária em todos os estados brasileiros. E, mais que isso, conta inclusive com uma mulher que se diz socialista e feminista: Heloísa Helena do PSOL. Sempre falamos sobre essa questão, porque consideramos que a luta pelo direito ao aborto vai se dar em enfrentamento direto com todos esse setores que se organizam e militam para que não alcancemos esse direito. Heloísa Helena faz parte disto, ao mesmo tempo em que fala de “socialismo” pra milhares de trabalhadores e trabalhadoras. Inclusive pra tentar fundamentar sua posição, sai por aí dizendo que nós que defendemos o direito ao aborto fazemos “uma farsa política e uma fraude técnica” quando dizemos que é preciso lutar contra a morte de milhares mulheres. Ela diz isso se baseando nos números divulgados pelo Ministério da Saúde, que sustentam que em 2008 foram divulgados apenas 37 óbitos de mulheres mortas pelas consequências dos abortos clandestinos. Bom, é quase uma piada acreditar nisso, sendo que o próprio ministro da saúde, o senhor José Gomes Temporão, afirmou em entrevista recente à TV UOL que “Não fui eu quem escolhi o tema do aborto. Foi esse tema que me escolheu. Porque todos os dias morrem mulheres no Brasil fazendo abortos em condições inseguras. É evidente que a legislação atual, que tipifica a interrupção da gravidez como crime não dá conta da realidade” . Ainda que o ministro mantenha uma posição parcial, defendendo apenas um plebiscito sobre a legalização do aborto pra abrir o debate na sociedade, fica claro que pelo menos ele parte da realidade pra fundamentar suas posições.
As militantes e os militantes do PSOL deveriam ter um pouco de vergonha da apatia com que respondem ao questionamento sobre Heloísa Helena. Geralmente dizem que “ela desrespeitou uma resolução votada no Congresso do partido” , como se o congresso do PSOL tivesse a mesma dimensão nacional que a figura de Heloísa Helena tem. Enquanto dizem isso, até no PT, partido que abertamente hoje governa para a burguesia, existiram setores de mulheres que reivindicaram a expulsão do deputado Luiz Bassuma, por estar a frente da CPI do Aborto, também apoiada por Heloísa Helena. Enfim, o PSOL já demonstrou que não é, nunca foi e não vai ser uma alternativa para a classe trabalhadora, mas é realmente lamentável que as mulheres desse partido se contentem em dizer que é apenas um problema de desrespeitar uma resolução...
E mesmo diante de todos esses escandalos envolvendo a Igreja Católica, a esquerda brasileira chama os trabalhadores e as trabalhadoras a ir numa missa antes do 1º de maio. Não se trata de um problema da fé religiosa de cada um, mas do fato de que partidos que se reivindicam trotskistas como o PSTU, justamente num momento em que a Igreja se lança numa ofensiva reacionária contra nossos direitos, fazem seguidismo à Igreja chamando os trabalhadores e as trabalhadoras a rezar...

JPO: Na última plenária do grupo de mulheres Pão e Rosas vocês votaram impulsionar uma campanha pelo direito ao aborto na América Latina. Qual o objetivo desta campanha?
Sim, nós do Pão e Rosas Brasil, em conjunto com as companheiras do Pão e Rosas Argentina e Chile, assim como companheiras do México, da Venezuela e da Bolívia, consideramos que essa é uma bandeira que está na ordem do dia. Dos 40 a 50 milhões de abortos que se realizam a cada ano no mundo, mais da metade são feitos na clandestinidade, ameaçando a vida de 25 milhões de mulheres. 95% destes abortos inseguros ocorrem nos países do chamado "terceiro mundo", como a América latina, onde mais de 20% dos casos terminam com a morte da mulher. O Brasil, por tudo que apontei acima, foi considerado exemplo na luta “em defesa da vida” , ou seja, contra o direito ao aborto, e por isso irá sediar em 2010 um encontro mundial pra fortalecer a luta contra nossos direitos. O governo Lula vem mantendo uma posição dúbia em relação ao aborto, no final sendo funcional a esses setores mais reacionários. Por isso, fazemos essa campanha não apenas porque é um direito democrático elementar, mas também porque nos últimos anos, a ascensão dos chamados governos “progressistas” e pós-neoliberais em toda a América Latina, contribuiram para que a massa de trabalhadores e do povo pobre depositassem uma confiança muito grande de que esses governos pudessem levar adiante a conquista de nossos direitos. Ao contrário, queremos demonstrar como justamente esses governos não somente já declararam que estão contra o direito ao aborto, como inclusive alguns deles fizeram retroceder algumas conquistas impostas com a luta de feministas, militantes e socialistas. A constatação de que 5 mil mulheres morrem todos os anos na América Latina, deve nos fazer entender que todos os que se colocam na defesa desse direito elementar, devem formar uma grande frente única para, acreditando em nossas próprias forças, impor com muita luta a legalização do aborto, assim como em diversos países da Europa, por exemplo, o direito ao aborto foi resultado de importantes processos de luta da classe trabalhadora. Como Pão e Rosas, queremos contribuir para fortalecer essa luta, ao lado das companheiras da Conlutas, central sindical que reivindicamos, e por isso lançamos essa campanha e chamamos todas as organizações políticas, grupos de mulheres, sindicatos, grupos de direitos humanos, professores a impulsionar uma grande frente-única pelo direito ao aborto.

Visite o blog da Campanha Latino-Americana Pelo Direito ao Aborto

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