Sábado 4 de Maio de 2024

Teoria

Lênin como tipo nacional

15 Feb 2004   |   comentários

O internacionalismo de Lenin não necessita defesa. Sua característica diferenciada é o rompimento irreconciliável, nos primeiros dias da guerra mundial, com aquela falsificação do internacionalismo que prevaleceu na II Internacional. Os chefes oficiais do “socialismo” , desde a tribuna parlamentar, com argumentos abstratos inspirados pelo espírito dos velhos cosmopolitas, guiavam os interesses da pátria em harmonia com os interesses da humanidade. Na prática tudo isso conduziu, como sabemos, a sustentação da pátria da classe dominante pelo proletariado.

O internacionalismo de Lenin não é de maneira nenhuma uma forma de reconciliar verbalmente nacionalismo e internacionalismo, mas uma forma de ação revolucionária internacional. O mundo habitado pelos chamados homens civilizados lhe aparece como um só campo de combate em que os distintos povos e classes sustentam uma guerra gigantesca uns contra os outros. Nenhuma questão de importância pode se fechar num marco nacional. Ameaças visíveis e invisíveis estabelecem laços de solidariedade entre cada questão e outras dezenas de fenómenos acontecidos em todos os extremos do mundo. Em sua apreciação dos fatores e das forças internacionais Lenin era mais livre do que as pessoas imbuídas de preconceitos nacionais.

Segundo Marx, os filósofos consideram este mundo satisfatório enquanto para ele a tarefa deveria consistir em transformá-lo. Mas ele, o profeta genial, não viveu para vê-lo. A transformação do velho mundo se acha em pleno desenvolvimento e Lenin é seu primeiro operário. Seu internacionalismo é uma apreciação prática dos acontecimentos históricos e uma adaptação prática a seu curso sobre uma escala internacional e para um propósito internacional. A Rússia e sua sorte são unicamente um dos elementos desta grande luta, de cujo êxito depende a sorte da humanidade.

O internacionalismo de Lenin não necessita de apresentação. E, no entanto, o próprio Lenin é nacional em grande medida. Seu espírito está profundamente arraigado na história russa, a faz sua, lhe dá sua mais profunda expressão, e alcança por decorrência um nível de ação e influência internacionais.

À primeira vista, a atribuição a Lenin de um caráter “nacional” pode surpreender; mas se nos atemos ao fundamental, resulta naturalíssima. Para dirigir uma revolução sem precedentes na história dos povos, como a que se produz na Rússia, é evidentemente necessário ter uma conexão orgânica indissolúvel com a vida popular, uma conexão que brota das origens mais profundas.

Lenin encarna o proletariado russo, uma classe jovem, que politicamente tem apenas a idade de Lenin e é, além disso, uma classe profundamente nacional, porque concentra todo o desenvolvimento passado da Rússia e contém todo o futuro da Rússia, porque nela vive e morre a nação russa. Sem rotina nem exemplo a seguir, livre de falsidade e de compromisso, mas firme no pensamento e intrépido para atuar, com uma intrepidez que nunca se transforma em incompreensão; assim é o proletariado russo e assim é Lenin.

A natureza do proletariado russo, que na verdade se converteu na força mais importante da revolução internacional, foi preparada pelo curso da história nacional russa, pela crueldade bárbara do mais absoluto dos Estados, a insignificância das classes privilegiadas, o desenvolvimento febril do capitalismo nas turbulências das mudanças, a decadência da burguesia russa e sua ideologia, e a degeneração de suas políticas. Nosso “terceiro Estado” não compreendia a reforma nem a revolução e não podia compreendê-las. Por isso os problemas revolucionários do proletariado assumiram um caráter mais vasto. Nosso “terceiro Estado” não sabe nada de Lutero, de Tomas Munzer, de Mirabeau, de Marat, de Robs-pierre. Pelo mesmo motivo, o proletariado russo teve seu Lenin. O que faltava em tradição se ganhou em energia revolucionária.

Lenin reflete em si a classe operária russa, não só em seu presente político, mas também em seu passado rústico tão recente. Este homem, o chefe indiscutível do proletariado, parece um camponês; há algo nele que sugere isso vivamente. Diante do Smolny se eleva a estátua do outro herói do proletariado mundial, Marx, sobre um pedestal, vestindo uma sobrecasaca negra. Isto é seguramente um detalhe, mas é absolutamente impossível imaginar Lenin vestindo uma sobrecasaca negra. Em alguns retratos, Marx aparece com um amplo-peitilho sobre a qual pende um mo-nóculo.

Que Marx não era homem inclinado à afetação é coisa clara para quem tenha uma idéia do espírito marxiano. Mas Marx cresceu sobre uma base distinta de cultura nacional, viveu em uma atmosfera diferente, como acontece com todas as personalidades destacadas da classe operária alemã, cujas origens não se remontam às aldeias, mas aos grêmios e à complicada cultura da cidade medieval.

O estilo de Marx, rico e flexível, e no qual se combinam cólera e ironia, agudeza e elegância, denota também o substrato ético e literário de toda a antiga literatura socialista alemã desde a Reforma e ainda de antes. O estilo literário e ora-tório de Lenin é extremamente simples, ascético, como toda sua maneira de ser. Mas este forte ascetismo não mostra indício algum de sermão moral. E não se pense que é assim por obedecer a um princípio, a um sistema premeditado, posto que não há nele a menor afetação; seu modo de se apresentar é simplesmente a expressão exterior da concentração interna de força para a ação. Obedece a um imperativo económico da mesma índole que o que sente o camponês, mas muito mais forte.

Marx inteiro está contido no Manifesto Comunista, no prólogo de sua Crítica, em O Capital. Ainda quando não tinha sido o fundador da Primeira Internacional, sempre tinha sido o que é. Lenin, ao contrário, se dedica desde logo à ação revolucionária. Suas obras são simples exercícios preparatórios da ação. Ainda que não tivesse publicado um só livro teria aparecido na história como aparece hoje: como o chefe da revolução proletária, o fundador da Terceira Internacional.

Era necessário um sistema claro, erudito ’ dialético-materialista ’, para poder realizar o tipo de tarefas que levou a cabo Lenin; isso era necessário, mas não suficiente. Fazia falta aquele poder criador misterioso que se chama intuição: a habilidade de advertir as aparências e logo distinguir o essencial e importante do insignificante e supérfluo, de reconhecer as partes equivocadas de uma descrição, de medir bem os pensamentos dos demais e sobretudo o do inimigo, de unir tudo isso em um todo, e no momento em que a “fórmula” se concretize em seu pensamento, dirigir o golpe. Isso é intuição em ação. Ela equivale por outro lado ao que chamamos perspicácia.

Quando Lenin, recebia pelo rádio o discurso parlamentar de um ilustre chefe imperialista ou a nota diplomática esperada, se parecia com um “mujique” de têmpera orgulhosa, ao que não há maneira de reduzir. Um camponês teimoso e avisado que chega aos limites da genialidade com as últimas aquisições de um pensamento de estudioso.

O jovem proletariado russo está capacitado para levar a cabo o que somente realiza quem arou o duro terreno dos camponeses até suas profundidades. Nosso passado nacional preparou este fato. Mas precisamente porque o proletariado veio ao poder pelo curso dos acontecimentos, nossa revolução foi capaz de vencer repentina e radicalmente a torpeza limitada e provinciana; a Rússia do Soviet se converte não só no refúgio do comunismo internacional, mas também na personificação viva de seu programa e de seus métodos.

Por caminhos desconhecidos não explorados ainda pela ciência, através dos quais se modela a personalidade do homem, Lenin tomou de seu nacionalismo tudo o que necessitou para a maior ação revolucionária que já se viu. Precisamente porque a revolução social, que tem desde muito tempo sua expressão teórica internacional, encontrou desde o primeiro momento sua personificação em Lenin, este resultou, no verdadeiro sentido da palavra, o chefe revolucionário do proletariado do mundo.

Texto de Leon Trotsky

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