Sexta 3 de Maio de 2024

Teoria

Fragmento de documento nacional da Liga Comunista Internacionalista, 1933

05 Jun 2006 | Em outro artigo desta edição [As bases para construção do Partido Revolucionário no Brasil] resgatamos a experiência dos precursores do movimento trotskista no Brasil, cuja atividade teórica e prática se destacou sobretudo entre o final dos anos 1920 e a década de 1930. A seguir, publicamos um fragmento direto da obra deixada por eles, que expressa com clareza a sua compreensão aguda sobre a realidade nacional, em suas múltiplas e concretas ligações com a totalidade do sistema mundial imperialista. No curso da elaboração de teses programáticas que sintetizem o processo de formação, a estrutura atual do capitalismo brasileiro, e os principais fenômenos históricos da luta de classes no país, defrontamo-nos com estas que consideramos importantíssimas contribuições, deixadas por uma geração de militantes que viveram e atuaram numa época profundamente revolucionária, como parte do que era então a tradição viva da revolução russa de outubro de 1917, encarnada então na figura de Trotsky e na Oposição de Esquerda Internacional. Diziam os primeiros trotskistas brasileiros, em seu Projeto de teses sobre a situação nacional, aprovado na 1ª Conferência Nacional da Liga Comunista do Brasil, realizada de 6 a 10 de maio de 1933:   |   comentários

O processo histórico fundamental do capitalismo caracterizou-se pela expropriação das camadas populares: a acumulação primitiva do capital manifestou-se pela separação violenta do trabalhador dos seus meios de trabalho. O regime capitalista desenvolveu-se à custa da dissolução da unidade económica feudal. O desenvolvimento técnico que fez do artesão um assalariado determinou também a transformação do camponês autónomo em produtor de mercadorias, simples agricultor acorrentado ao mercado e, enfim, premido pelo capital usurário ou o fisco - um simples proletário.

Mas no novo mundo deparou-se às metrópoles européias uma contradição essencial: ao contrário da Europa, terras inocupadas ofereciam ao colono livre a possibilidade de tornar-se proprietário, isto é, de acumular para ele mesmo. Era o "câncer anticapitalista" das colónias, a resistência do estabelecimento do capital, por não haver a dependência do trabalhador em relação ao capitalista, proprietário dos meios de produção. A burguesia nascente teve que criar artificialmente a sujeição do produtor imediato ao proprietário das condições de produção. O Estado converteu a terra livre em propriedade privada, fixando-lhe arbitrariamente o preço, para impedir a transformação muito rápida do trabalhador em camponês proprietário; ou organizou a escravidão de índios e negros. "A forma económica específica pela qual é extorquido aos produtores imediatos o trabalho não pago, determina a relação de dependência tal qual decorre imediatamente da produção e reage sobre ela. É a base da forma específica económica ou política, de todo sistema das condições da produção" . Numa palavra, foram transportadas para as terras ’americanas as relações de produção capitalistas. Mas "o fundamento oculto de toda organização social", isto é, a relação direta entre o proprietário dos meios de produção e o produtor imediato não pode deixar de sofrer a influência das "diversas condições empíricas, condições naturais, diferenças de raça etc.", apresentando, assim, "infinitas variações e gradações explicáveis somente pela análise dessas circunstâncias empíricas" .

Desde a sua primeira colonização, o Brasil não foi mais que uma vasta exploração rural tropical. A coroa de Portugal repartira as terras por seus serviçais e fidalgos, e assim, sob a forma de um "feudalismo particular", criou-se o monopólio dos grandes senhores de terra. Não houve aqui terra livre, não se conheceu aqui o colono livre, senhor dos meios de produção. O pequeno proprietário não póde desenvolver-se, na formação económica do Brasil. O Estado brasileiro organizou-se com um rígido esquematismo de classes e repousou na exploração do braço escravo pela minoria de senhores de terra. Trabalho escravo, propriedade latifundiária, aristocracia rural, constituída aos azares do favoritismo da metrópole, na caça ao índio e do tráfico negreiro, imprimiram cunho particular à formação histórica do Brasil na América Latina, onde, em geral, a ausência da agricultura organizada acarretou a luta do colono pela terra, contra o índio e contra o monopólio da coroa espanhola. Numa sociedade assim constituída não há lugar para um desenvolvimento ponderável da classe dos pequenos proprietários (camponeses independentes) e podem-se considerar desprezíveis historicamente a burguesia urbana e a camada de trabalhadores livres, tão insignificante é o seu papel na produção nacional. .A burguesia brasileira nasceu no campo e não na cidade. A produção ligou-se umbilicalmente ao mercado externo. As vicissitudes coloniais no Brasil nos primeiros três séculos de sua história não são mais que a repercussão das lutas das nações européias para o predomínio do mercado mundial, até que, ao alvorecer do século XIX, a incontrastada hegemonia da Inglaterra em busca de escoadouros para sua indústria fomentou os movimentos de independência nas colónias ibéricas da América Latina. Os novos Estados constituíram-se em devedores do capital britânico e ligaram-se pela dupla corrente da importação de mercadorias e de capitais ao mercado mundial. Em meio à turbulência dos vizinhos do continente, o carcomido trono bragantino vegetou dois terços de século sob o olhar complacente da Inglaterra. O desenvolvimento autónomo da monarquia brasileira não foi senão o reflexo das condições que determinaram a hegemonia britânica no século XIX. A produção colonial dirigi da pelos senhores de terra foi, desde o início, dominada pela necessidade do mercado externo. Suprimido o monopólio português, em 1808, ou antes, absorvido pelo predomínio britânico, as condições políticas gerais do Brasil não sofreram alteração radical: a mesma fraqueza congênita da classe dirigente para constituir um governo próprio imprime um caráter fictício e caricatural à adaptação das instituições parlamentares da monarquia brasileira. As tendências descentralizadoras decorrentes do retardamento do capitalismo, um território imenso e inexplorado, tornaram-se condições de sobrevivência da monarquia burocrática e patriarcal de Pedro II, reforçando o poder pessoal do imperante. O desenvolvimento rudimentar das cidades, a ausência de indústrias, a falta de comunicações entre as províncias, a insignificância dos recursos nacionais fizeram do regime legado por condições históricas especiais um caciquismo constitucional em que o grande proprietário territorial abdicava nas mãos do poder moderador as suas próprias veleidades de dominação política geral.

Toda a história económica e social do Segundo Reinado não é senão a história das tentativas dos senhores da terra de adaptarem-se às condições da produção capitalista. A decadência do tráfico negreiro, os obstáculos que lhe opunha a Inglaterra, cuja expansão comercial esbarrava na economia patriarcal para a redução no preço da produção, tudo estava a indicar a próxima extinção do regime escravagista. A lei da abolição só fez sancionar a desorganização do trabalho escravo.

O desenvolvimento capitalista do Brasil tornou necessária a transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado. A "mudança de forma" de que fala Marx processou-se aqui de modo direto. A escravidão tornara-se um empecilho à libertação das forças produtivas. A instituição do mercado de trabalho livre fez,se contingência económica e começa a introdução sistemática dos trabalhadores assalariados pela lavoura paulista. A imigração foi aqui uma empresa industrial para fornecer braços à grande cultura cafeeira. O desenvolvimento da cultura do café nas províncias do centro-sul é um desenvolvimento tipicamente capitalista. Integraram-se na fazenda de café as condições essenciais a uma grande exploração agrícola moderna, ainda com as vantagens decorrentes de um meio geográfico e histórico excepcional. Terras virgens, ausência da renda fundiária pela confusão do proprietário territorial com o capitalista dono da exploração numa única pessoa, o conseqüente emprego de todo o capital da empresa no melhoramento da cultura, e, sobretudo, o estabelecimento da monocultura, forma especializada de produção que, pelo emprego simultâneo de todos os meios económicos num objetivo único, desenvolve aceleradamente o fundo de acumulação. Geraram-se, assim, determinadas pelo gênero de exploração da terra, isto é, "decorrentes não só do aumento da produtividade social mas também da maior produtividade natural de trabalho, ligado às condições naturais" (Marx), todas as formas de desenvolvimento capitalista, na escala nacional: crédito, dívida pública, sistema hipotecário, comércio importador, rede ferroviária, desenvolvimento urbano etc.

A República foi uma imposição da burguesia de São Paulo, que implantou com ela a sua hegemonia na Federação. Os legalistas da Constituinte de 1891 julgavam a forma federativa capaz de conciliar as tendências centrífugas das antigas províncias com as necessidades de desenvolvimento capitalista numa unidade nacional harmónica.

Atribuída pelos historiadores burgueses aos mais variados fatores, mas sempre com o intuito apologético de idealizar o passado de rapina da classe dominante que carece de heróis legendários para sua fase de acumulação primitiva, a unidade nacional é para aqueles escritores o "grande milagre", ora imputado à conservação da dinastia portuguesa, ora às virtudes pessoais do segundo imperador, ou ainda à formação da aristocracia rural indígena ou à ação do exército, como órgão predestinado à execução do milagre. Condicionado originariamente à posse da terra pela coroa de Portugal, e determinado por móveis económicos sucessivos (comércio de madeiras, caça ao índio, procura de ouro), o povoamento do Brasil ofereceu desde o início, na imensidade do país, uma base precária e dispersiva à futura unidade nacional. Submetidas a uma arbitrária divisão política, zonas de produção separadas por uma diversidade quase sem par de possibilidades, a unidade nacional tinha de ser forçosamente antes função dos caracteres negativos de sua formação histórico-política, do que conseqüência do processo económico centralizador. A República precisou e acelerou a diferenciação dos estados, o Sul, com a monocultura cafeeira, preparava as bases do surto industrial e foi deixando atrás as províncias do Centro-Nordeste, agrícola e pastoril, sufocadas por uma economia semi-feudal. Derrotadas no mercado mundial, pela concorrência do algodão americano, hindu, egípcio e pela decadência da produção açucareira indígena, essas províncias viram deslocar-se para o Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, desde os últimos tempos do Império, como inelutável processo económico, o predomínio político e, enquanto os negociantes de escravos despovoavam os engenhos e plantações do Nordeste, Pernambuco e Bahia, nas terras altas do Sul fortificava-se para a conquista do Estado, no seu interesse exclusivo, a nova classe dirigente.

A oligarquia dos fazendeiros do café, de posse do governo central, suscitou nos estados do Norte, talhados à sua imagem e semelhança, repulsivas satrapias locais que se distinguiam porém pela ausência de quaisquer elementos sociais progressistas. No quadro da economia pré-capitalista, sobrevivência que era”¢ do feudalismo colonial, a hierarquia política dos "coronéis", senhores de baraço e cutelo, dominava pelo terror a miserável população do interior e encontrava assim, em nome do poder central, o meio de fugir à própria decomposição. Como reflexo da preponderância dos estados mais fortes sobre os mais fracos, as representações federais destes passaram a ser delegações do poder central junto aos estados secundários, ao contrário da ficção constitucional.

A burguesia paulista póde então combinar os elementos de acumulação primitiva com os processos de acumulação que só "a força concentrada e organizada da sociedade" - o poder do Estado - permite apurar e sistematizar: a dívida pública, o sistema tributário e o protecionismo.

Mas o aparecimento das indústrias, transformando as bases económicas mais atrasadas do Brasil, acentuou as tendências centraliza dor as do Estado, à medida que se fez mais premente a necessidade de mercados internos. O desenvolvimento capitalista cortou cerce as tradições de Governo Municipal (Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, até a Regência), cenário onde se agitava uma pequena burguesia turbulenta e jacobina. A centralização política, vindo de passo com a economia, comprometeu e condenou, sem apelo, a formação de uma burguesia democrática. O processo de fortalecimento do poder executivo, tanto do centro como da província, iniciado no Império, atingiu seu auge na República. A União passou a reinar, sem contraste, sobre os interesses localistas. Por isso mesmo, o aparelho governativo central foi-se adaptando melhor aos interesses particulares da facção que o controla, isto é, foi-se processando ao mesmo tempo a tendência da burguesia de cada grande estado a unificar-se nos seus interesses gerais, dada a ausência de caráter nacional dos partidos políticos no Brasil.

Assim, o poder executivo tornou-se na sociedade brasileira a força decisiva que permite à oligarquia partidária que o exerce uma dominação quase exclusiva. A contradição entre a centralização - processo determinado pela necessidade política - e a forma política da federação, condição histórica da unidade nacional, desenha-se nítida na base da política interna da burguesia brasileira. Como todo processo contraditório, o desenvolvimento das forças produtivas dentro do quadro do Estado brasileiro cria formas de equilíbrio instável, incapazes de resolver as próprias contradições, mas que dão o sentido geral do movimento.

Chegados ao limiar de um maior desenvolvimento capitalista, outros estados (Minas, Rio Grande do Sul, Bahia e Nordeste) são forçados a lutar por uma forma política de equilíbrio. A luta pela Presidência da República passou rapidamente do quadro das competições eleitorais plebiscitárias e conchavos entre os chefes políticos e a camarilha militar, aos pronunciamentos periódicos, ao terreno da guerra civil aberta.

A hegemonia de São Paulo na Federação não póde terminar o processo centralizador do aparelho do Estado, muito embora a acumulação propriamente paulista seja a única massa ponderável de capitais. nacionais. A extensão do país e a sua insignificância demográfica condenaram historicamente, na fase imperialista, qualquer veleidade de reproduzir-se na América a história da Prússia. A penetração imperialista é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições, alterando permanentemente a estrutura económica e política dos países coloniais e dependentes. No redemoinho imperialista, a burguesia nacional desses países não tem base estável para construir uma base social progressista.

Assim, sob a dominação da burguesia a unidade nacional brasileira tende a esfacelar-se ao peso da contradição entre o desenvolvimento desigual do capitalismo nos estados e a forma da Federação - nas condições criadas pela pressão imperialista. Essa tendência inelutável criará, doravante, permanentemente, situações de choques, conflitos, em uma palavra, de guerra civil, onde o proletariado terá a última palavra. As formas transitórias de equilíbrio entre as diversas unidades da Federação só serão conseguidas por meio de vitórias militares, isto é, à custa de uma opressão agravada das massas trabalhadoras e das classes médias, cada vez mais, a subordinar a luta pela unidade nacional à luta pelo seu próprio predomínio particular, e ao conjunto do processo de penetração imperialista.

Isto não exclui, antes a explica, a perspectiva de desagregação nacional, em função dos interesses do capital financeiro internacional. A questão da unidade nacional desloca-se cada vez mais do terreno das competições políticas da burguesia para revestir o caráter concreto de reivindicação de classe das massas trabalhadoras. Só a vitória da revolução proletária, agrupando todas as classes oprimidas, é capaz de assegurar a unidade nacional, contra a dupla opressão da burguesia brasileira e da burguesia imperialista.

Concluímos ressaltando o caráter antecipatório da análise, que prefigura claramente as tendências que, liberadas em 1930, confluem em 1937 para o golpe do Estado Novo de Vargas. Ou seja, a ditadura bonapartista que buscou fechar de maneira reacionária o problema da unidade nacional e da subordinação da economia nacional ao capital imperialista, na ausência da revolução proletária, cuja oportunidade fora desperdiçada pelo PCB e sua política oportunista e aventureira. Naquele momento histórico, se não puderam arrancar ao PCB sua influência então hegemónica no movimento operário, os trotskistas a partir de uma pequena Liga marxista puderam nos legar somente uma análise profunda e as linhas fundamentais de uma política principista frente aos processos pelos quais a sociedade brasileira passava.

**

Ao mesmo tempo em que reivindicamos as elaborações próprias dos trotskistas da década de 30, das quais o fragmento acima é apenas um exemplo, buscaremos desenvolver também criticamente, no mesmo espírito, todas aquelas questões que se colocam como fundamentais para enfrentar seriamente as tarefas colocadas pela revolução brasileira, e às quais aqueles documentos não puderam responder, dadas as debilidades decorrentes das condições iniciais seja do desenvolvimento objetivo do capitalismo e de seu coveiro, seja do elemento subjetivo, isto é, do próprio partido revolucionário e das idéias marxistas no Brasil.

Artigos relacionados: Teoria









  • Não há comentários para este artigo