Terça 7 de Maio de 2024

Debates

HOMENAGEM AOS 100 ANOS DA REVOLTA DA CHIBATA

Dos estudos da "questão negra" ao papel do povo negro na revolução brasileira

06 Dec 2010   |   comentários

“É a partir do negro que se deve entender como ‘o Povo emerge na história’ no Brasil.” (Florestan Fernandes, prefácio a “Circuito Fechado”)

Pouco menos de um mês após a eleição de Dilma, que recebeu um expressivo mandato popular para “fazer o Brasil seguir mudando”, o dia da Consciência Negra foi comemorado com destaque para os cem anos da Revolta da Chibata, o histórico protesto negro comandado pelo “Almirante Negro”, João Candido.

Nas páginas do jornal Palavra Operária, vimos destacando o quanto de mistificação existe na idéia de que o governo Lula tenha iniciado um processo de “mudança” estrutural no perfil social do país. Vista com os olhos abertos, a questão negra, ontem e hoje no centro da questão social brasileira, está aí para refutar categoricamente o discurso oficialista. Ao mesmo tempo, a visibilidade da questão negra parece estar novamente em ascensão, fruto das próprias aspirações geradas pelo “lulismo”; em nossa visão, esta questão voltou para ficar, e acumula energias que devem ser liberadas em grande escala num próximo processo de acirramento da luta de classes no país.

A contribuição de Florestan e a colocação radical da questão dos negros no Brasil

Entre os estudiosos da questão negra no Brasil, foi provavelmente o sociólogo Florestan Fernandes quem deu a principal contribuição para uma compreensão radical do papel do negro na formação do capitalismo moderno, e como foco de suas contradições. A raiz para a questão se encontra sobretudo no período crucial compreendido pelas primeiras sete ou oito décadas do século XIX, período que marcou a transição entre o “Brasil colônia” e o moderno capitalismo periférico que conhecemos. Segundo Florestan, a fase que se seguiu à independência com relação a Portugal foi marcada não somente pela manutenção, mas por uma intensificação dos processos econômicos baseados na escravidão negra, um processo em que “(...) o fato mais saliente é a vitalidade em crescendo da economia de plantação. Essa vitalidade não só provinha da escravidão mercantil: ela só poderia manter-se e aumentar pela perpetuação da escravidão mercantil. As camadas senhoriais e os círculos de negociantes urbanos não precisavam ‘buscar alternativas econômicas novas’. O seu problema central consistia em como dar continuidade ao tráfico africano e adaptar o uso da força de trabalho escravo às condições que se criavam com esse deslocamento da economia de plantação” .
Essa afirmação, que pode parecer banal se lida de maneira superficial, possui profundas consequências, pois significa que o Brasil não apenas foi o último país do mundo a abolir a escravidão, mas que esta constituiu a pedra angular no processo crucial de transição para o capitalismo moderno. Como diz Florestan: “(...) os senhores se empenharam, de fato, em prolongar ao máximo a duração da escravidão, não só para ganhar tempo para poderem substituir o escravo pelo trabalhador livre, mas, principalmente, para explorar da forma mais intensa possível e no prazo possível o trabalho do escravo” .

Uma questão do passado a ser ‘reparada’?

Muitos setores, inclusive burgueses, estariam hoje prontos a “assinar embaixo” dessas teses de Florestan, “lamentando” os sofrimentos a que os negros foram submetidos na época colonial, ou inclusive depois, quando apesar de não ser mais escravo, o negro continuava “não tendo lugar” na sociedade moderna. Alguns diriam até que a coisa só começou a mudar com a “redemocratização” dos anos 1980.

Porém o que nenhum capitalista poderia aceitar é precisamente o mais importante de tudo isso: o processo em que a superexploração do negro serve como “ganho diferencial” para o burguês proprietário, longe de ter terminado, se estendeu até os dias atuais, e vive hoje na forma do trabalho precário, com ou sem registro, sujeito a toda sorte de abusos patronais .

Florestan deixa claro que seu ponto de vista é o mesmo que estamos defendendo, dizendo: “Ainda lutamos não só com as seqüelas da estruturas ‘herdadas’ da era colonial ou da escravidão. Vemos como o capitalismo competitivo ou, em seguida, o capitalismo monopolista revitalizam muitas dessas estruturas, requisito essencial para a intensidade da acumulação de capital ou a continuidade de privilégios, que nunca desaparecem, e de uma exploração externa, que sempre muda para pior” .

Existem condições para um ‘elitismo negro’?
Como sabemos, hoje existem diversas políticas de setores da burguesia (inspirados diretamente pelas agências imperialistas, que tiraram lições do movimento negro nos EUA da década de 1960) que visam justamente a fomentar e ampliar esse processo “natural”, de inserção minoritária do negro nas camadas mais favorecidas da estratificação de classe do capitalismo periférico brasileiro. Toda a política de “cotas raciais”, na maneira em que é entendida e fomentada pelos governos burgueses (seja timidamente, como as encabeçadas pelo PSDB, seja de maneira ruidosa como faz o PT ), está nesse marco concreto.
Escrevendo na década de 1970, portanto numa época em que a burguesia sequer acenava com a possibilidade de tais “políticas afirmativas”, Florestan já se antecipava ao processo histórico e advertia, com muita lucidez, contra o possível surgimento de um novo tipo de “elitismo negro”, considerado por ele como uma espécie nova de conservadorismo. Florestan descrevia assim o processo: “Uma minoria negra se destaca da massa negra trabalhadora e tende a alocar-se em várias posições de classe no espaço social da ordem existente. (...) Pelo menos enquanto as elites negras em formação e diferenciação não forem atingidas pela frustração dos outros setores da população negra e por seus tipos de inconformismo, elas tenderão a se acomodar à situação histórica e a evitar a adesão às pressões raciais mais radicais, ‘dentro da ordem’ ou ‘contra a ordem’”.

No entanto, como costuma acontecer, as políticas burguesas que buscam amortecer as contradições profundas do funcionamento da sociedade capitalista, se bem podem alcançar um êxito momentâneo e parecer dissipar aquelas contradições de origem, em dinâmica tendem a abrir brechas pelas quais as mesmas contradições se expandem e ameaçam assumir contornos diretamente explosivos.

O próprio Florestan foi claro ao mostrar que o potencial conservador dos indivíduos negros que ascendem e se separam da massa é contraditório em si mesmo, e o que é ainda mais importante, não é capaz de barrar o potencial revolucionário que a questão negra seguirá tendo como problema coletivo. Como diz ele: “De outro lado, os novos níveis de expectativas e o ressentimento que resultará da ascensão parcial de alguns setores da própria população negra (além do mais, pouco sensíveis ao dilema racial do negro brasileiro, por causa de seu elitismo) forçarão a reelaboração das frustrações reprimidas, associadas aos vários tipos de inconformismo descritos. Mesmo que a violência possa ser e venha a ser evitada, nada impedirá uma fermentação ignorada até hoje das tensões raciais. E quanto mais forte for a repressão conservadora, da sociedade inclusiva e das elites negras, maior será a contradição entre ‘raça’ e ‘classe’ e menores serão as probabilidades de eliminação do referido paralelismo dentro da ordem” .

Dito em outras palavras: todo o intento burguês de calar definitivamente o protesto negro, e fazer das “ações afirmativas” o último suspiro das contradições raciais no Brasil (como passo final de uma integração que, de tão “completa”, agora já seria capaz de aceitar a identidade negra, e não mais obriga o negro a rejeitar sua identidade em nome de mitos como os da “democracia racial”), todo esse intento, visto de um ângulo materialista, se mostra uma inútil ilusão. Pois assim como é verdade que nem a mais generosa soma de “ações afirmativas” sob o capitalismo seria suficiente para mudar o caráter fundamentalmente explorador e opressivo desse sistema; também é fato que todo movimento no sentido “afirmativo” da questão negra apenas serve para lançar nova luz e escancarar aquela ferida aberta que os negros estão chamados a superar coletivamente, com os métodos da revolução proletária em permanência.
Nas palavras mais sutis, mas bastante sugestivas de Florestan: “(...) o negro não só aparece como o elo mais frágil e o pólo mais explorado de uma sociedade de alta concentração de riqueza, de poder e de prestígio pessoal. Ele é também, queira ou não, o marco de referência da ruptura para a frente” . É certo que Florestan não especificava o que seria essa ruptura, numa ambigüidade que buscava deixar espaço tanto para uma interpretação socialista proletária, como para uma “democrático-burguesa radical”. Mas o movimento negro revolucionário de hoje pode e deve completar em sua prática as insuficiências na análise do sociólogo.

Os 100 anos da Revolta da Chibata e as perspectivas atuais

Nesse ano, muitos setores reformistas buscaram rememorar os acontecimentos da Revolta da Chibata, porém de modo apenas “memorialista”, como se fosse meramente o símbolo de uma época que passou.

Pelo contrário, a homenagem àquele importante capítulo da luta de classes no país só pode ser feita retomando a lição de combate dada por João Candido e seu companheiros, quando apontaram seus navios para a capital e obrigaram o governo a ceder, condenando o uso de castigos corporais na Marinha.

Hoje, muito mais que em 1910, o povo negro constitui uma enorme massa proletária e semi-proletária, e tão logo se decida a tomar seu destino em suas próprias mãos, colocará na ordem do dia a revolução social.

Invertendo a situação histórica de grande parte do século passado, em que foi colocado numa posição “à margem” que o fazia almejar ascender de sua condição de “pária” à de proletário, existe aí uma dialética particular, que faz com que o negro esteja hoje numa posição privilegiada para criticar a um só tempo tanto os resíduos diretos da escravidão nominal, quanto as novas formas da escravidão assalariada que se apóiam sobre aqueles. Fazendo isso, os negros e negras estão em posição para ocupar a linha de vanguarda da classe revolucionária.

Cabe ao povo negro, lado a lado com seus irmãos proletários de todas as raças, retomar aquela grande experiência, que muitas chamaram de “nosso Encouraçado Potemkin”, e abrir o caminho para construir um novo Outubro como o de 1917 .

Florestan Fernandes, Circuito Fechado, Editora Globo, p. 56
Idem, p. 91.

Por outro lado, também a violência física, antes marcada nos castigos corporais e nas mutilações, hoje assumiu a forma da violência policial, da opressão pelo tráfico, da exploração sexual.

Florestan Fernandes, Circuito Fechado, p. 30.

Medidas que vão desde o “Inclusp” de Rodas na USP, até a recente iniciativa do Itamaraty para fomentar a formação de diplomatas negros, entre outras.

Florestan Fernandes, Circuito Fechado, p. 120-121

Este é, aliás, um dos temas recorrentes das músicas dos Racionais MC’s desde que a questão da ascensão social de Mano Brown e cia. se colocou como foco de contradições para os próprios integrantes do grupo. Veja-se, em particular, a letra de “Negro Drama”.

Florestan Fernandes, Circuito Fechado, p. 121-122. Os trechos em negrito foram destacados por nós.

Idem, p. 29.

Na Rússia do início do século passado, o processo revolucionário que teve um primeiro marco com a revolta dos marinheiros do Encouraçado Potemkin, em 1905, teve um verdadeiro desfecho revolucionário doze anos depois, com a tomada do poder pelos operários e camponeses dirigidos pelo partido bolchevique, em Outubro de 1917.

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