Sábado 11 de Maio de 2024

Internacional

Os Estados Unidos depois da guerra do Iraque

Como é o governo de Bush

04 Aug 2003   |   comentários

"Justamente quando George W. Bush parecia encurralado por seus índices de popularidade mais baixos, o escândalo das mentiras para justificar a guerra contra o Iraque, a lenta, mas constante degradação das condições da ocupação e a deterioração - tão constante como vertiginosa - da economia estadunidense, suas forças lhes entregaram esta semana de presente dois de seus cadáveres mais desejados: os de Uday e Qusay Hussein". Assim qualificou o analista Claudio Uriarte a recente exibição, dos corpos destroçados dos filhos de Saddam Hussein, como troféus de caça, assinalando que "a conquista não deve ser depreciada, mas também deve ser posta em perspectiva..., os cadáveres desta semana lhes permitem desviar as pressões, mas não necessariamente contestam as dificuldades, que continuam" [1].

Os fatores descritos logo acima vinham acossando os falcões da Casa Branca e provocaram uma pronunciada queda da popularidade de Bush. A sorte de seu aliado na ofensiva guerreirista, Tony Blair, não era melhor. O britânico se encontra enredado nas entranhas do "caso Kelly", um espectro indesejado para a atual Administração em Washington.

O informe a seguir, elaborado por La Verdad Obrera [2], centrado em analisar a situação do imperialismo norte-americano, está baseado em um artigo de Juan Chingo que estará na próxima edição da Revista Estratégia Internacional, que versa sobre o novo cenário mundial após a vitória imperialista no Iraque.

A "agenda" neoconservadora

A conquista de Bagdá e a instauração de uma administração neocolonial são as operações mais importantes levadas adiante pelas ofensivas guerreiristas dos Estados Unidos. Este ataque, concretizado sem o aval da ONU e com uma ampla oposição de importantes potências, outrora aliadas, foi a confirmação mais evidente do curso unilateral da política exterior do imperialismo americano, que se baseia na decisão dos falcões norte-americanos de transformar os alicerces da ordem mundial em seu proveito. O Iraque foi o primeiro capítulo da "agenda" neoconservadora que busca redefinir unilateralmente a hegemonia mundial a favor dos EUA.

A radical transformação da política exterior norte-americana está dirigida a posicionar este imperialismo como uma superpotência de domínio indiscutível, transformando assim o status quo atual. Isto se expressa de forma clara e patente no Oriente Médio, onde os atuais equilíbrios políticos e geopolíticos foram fortemente sacudidos pela guerra e seus efeitos.

A tentativa unilateralista norte-americana de redefinir uma nova ordem mundial contrasta com a realidade estrutural dos Estados Unidos que - diferente do passado, quando começou a se elevar como superpotência mundial - não se trata de um imperialismo em uma fase de expansão, e sim em decadência. Quando os Estados Unidos entraram na arena internacional eram jovens e robustos, e tinham a força necessária para fazer com que o mundo adotasse sua visão das relações internacionais. Em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos eram tão poderosos que pareciam capazes de modelar o mundo a sua imagem e semelhança. Não é assim hoje. Atualmente existem três blocos económicos mais ou menos equivalentes e os Estados Unidos se encontram na difícil encruzilhada de não poder retirar-se do mando da política mundial, mas tampouco de dominar o mundo. Nestas condições, a tentativa de impor "a ordem internacional liberal ainda maior do que a que existiu depois da Segunda Guerra Mundial" [3], estruturado sobre a base de um novo sistema de alianças com outros estados que compartilham "os interesses e princípios" dos Estados Unidos, contém uma boa dose de voluntarismo e aventureirismo, e está destinado a gerar choques e tensões no cenário internacional, como demonstrou a crise da diplomacia na recente guerra contra o Iraque. De persistirem-se e desenvolverem-se estas fricções, poderiam terminar voltando-se contra seu próprio domínio.

O programa interno do neoconservadorismo: um complemento da política exterior agressiva

O "unilateralismo" dos falcões tem raízes económicas profundas. A chamada "globalização", que significou um salto na penetração imperialista na periferia semicolonial através da desregulamentação dos mercados, as privatizações e a exploração de mão de obra barata, deu rédea solta a tendências mais depredadoras do capital norte-americano.

Desde os dias de Ronald Reagan, esta orientação levou ao surgimento de uma elite de novos ricos durante o boom económico e especulativo dos anos 80 e, sobretudo dos anos 90. A maior opressão das semicolónias combinada com uma maior regressão social interna, criou as condições objetivas para o desenvolvimento dentro da oligarquia norte-americana de uma base social que defende e apóia uma volta às formas mais barbarescas do imperialismo. O governo de Bush é uma expressão acabada destes setores.

A política exterior agressiva vai acompanhada no plano interno por um retrocesso social qualitativo que tem sido qualificado pelo The Nation como a tentativa de "deixar para trás o século XX" [4].

A novo isenção tributária aos ricos, a eliminação do imposto aos dividendos das ações, a proibição de sindicalização aos trabalhadores estatais da recém criada à rea de Segurança Interior do Estado, são medidas indicativas de até onde se quer marchar. As medidas que o programa neoconservador propunha significam uma enorme transformação das condições de vida das massas e da classe média norte-americana [5], um retrocesso brutal de importantes conquistas conseguidas pelo movimento operário e de massas em anos de luta. Implica, além disso, em liquidar a mínima regulação ao grande capital estabelecida logo após a crise dos anos 30, voltando à forma do capitalismo de finais do século XIX, um capitalismo selvagem, denominado capitalismo dos "robber barons" (barões piratas).

Concluindo, estamos na presença da ação das tendências mais vorazes do capital financeiro que buscam imprimir um giro ainda mais radical da ofensiva burguesa se comparado com a primeira onda direitista, durante o governo de Reagan [6]. Esta onda, continuada durante os anos 90, implicou não só em modificações na relação entre as classes, mas também no interior da burguesia. A regressão social provocou um forte processo de atomização da classe operária e de polarização da classe média. Por sua vez, na burguesia se produziu uma enorme concentração e centralização das altas finanças e da indústria, como demonstra o fato de que 13 mil indivíduos concentrem 4% do PBI da maior economia. Esta verdadeira "plutocracia" capitalista, unida por mil e um laços às duas patas do sistema bipartidário norte-americano, se apoderou dos pilares fundamentais do estado capitalista, cujas políticas foram uma peça chave de seu acelerado enriquecimento. Neste sentido, poderíamos definir o "neoliberalismo" como um novo tipo de estado, para dar conta das mudanças na fração da classe dominante que hegemoniza o poder.

A atual onda neoconservadora busca legitimar, naturalizar e consolidar o domínio desta facção capitalista, aprofundando e estendendo a mudança não só no terreno sócio-económico, mas inclusive no político e cultural, extirpando pela raiz toda herança de igualitarismo e avançando sobre o regime com um corte sem precedentes das liberdades democráticas, reforçando a autoridade do executivo e o controle dos três poderes do estado por parte dos personagens mais direitistas do establishment político.

Os limites do poderio militar norte-americano

O programa neoconservador, ainda que goze de cada vez maior aceitação dentro da elite e reflita as tendências profundas do capital norte-americano, está atravessado por fortes contradições, riscos e, sobretudo, por uma brecha enorme entre uma supremacia militar indiscutível que é base da "militarização" de sua política exterior e a falta de vontade de aceitar os sacrifícios que a mesma implica.

Desde o ângulo económico, a política exterior está submetida a uma contradição estrutural: a transformação dos Estados Unidos na principal nação devedora do mundo. De 5% a 6% do Produto Bruto norte-americano é dependente do investimento estrangeiro direto e 40% de sua dívida externa está nas mãos de detentores estrangeiros dos títulos da divida. Frente às ambições "imperiais", seus credores, em especial o capital europeu, poderiam duvidar de continuar financiando os Estados Unidos.

Mas outro grande obstáculo radica na transformação significativa da relação entre os países centrais e os da periferia, logo após as enormes lutas de libertação nacional que atravessaram o século XX.

Segundo conta o historiador Eric Hobsbawm, referindo-se a quando o império britânico começava a impor seu domínio colonial hegemónico: "No passado se podia fazer porque, em grande parte do mundo, as pessoas estavam preparadas para aceitar a lógica de poder. Os britânicos conseguiram dirigir o império da à ndia, que era muito maior que a Grã Bretanha. Governavam centenas de milhões de pessoas com um número mínimo de soldados e funcionários britânicos, em parte porque os indianos sempre estiveram submetidos a diversos conquistadores e aceitavam a lógica da situação. Além disso, o império britânico na à ndia dependia, até certo ponto, de suas alianças com os príncipes indianos, que eram seus súditos, mas salvaram os britânicos". Esta caracterização é compartilhada pelos setores mais lúcidos da burguesia imperialista frente aos indubitáveis obstáculos que implica a resistência no Iraque e no Oriente Médio.

Mas a debilidade maior reside na enorme carga que esta redefinição das formas da dominação imperialista e os riscos que trás emparelhados implica sobre a população norte-americana.

O medo que os atentados de 11/09 provocaram na população dos Estados Unidos permitiu a Bush sustentar excepcionalmente uma política imperial a baixo custo, ao menos no plano interno, em suas duas recentes incursões imperialistas que tiveram êxito: Afeganistão e Iraque. Mas o projeto militarista tem que ganhar sólidas bases sociais internas. E isto - apesar do giro à direita que o governo de Bush tem significado - está longe de se ver. Novas convulsões sociais internas ou externas, novos atentados terroristas, e um maior temor da população, poderiam gerar no futuro a base reacionária necessária para uma política deste tipo. Por outro lado, o crescente custo da posição internacional dos Estados Unidos ou um salto na crise económica interna poderiam gerar forças hostis ao curso ditado pelos neoconservadores. O que se pode afirmar é que uma política militarista sustentada no tempo é difícil que mantenha o excepcional consenso que tem gozado a atual política exterior de Bush, e que a mesma tenda a polarizar a população norte-americana à medida que se distancie o trauma causado pelos efeitos do 11/09.

No imediato, a pedra de toque será o Iraque e a capacidade dos Estados Unidos de manejar o crescente desafio que significa a luta das guerrilhas combinadas com o despertar político dos xiitas ao sul de Bagdá. Se os Estados Unidos e a Grã Bretanha têm êxito rapidamente - e transformam o atual descontrole em um governo estável -, Washington será legitimado. Se a transformação do Iraque fracassa estrepitosamente, as conseqüências podem ser abomináveis. Como alerta um analista do Financial Times, "os Estados Unidos devem compreender os limites de seu poder militar. A presunção de que sua força preponderante torna simples o reordenamento da política interna do mundo é imprudente. Isto não significa que o esforço não deva ser feito nunca. Às vezes, certamente é inevitável. Mas se os Estados Unidos tentam alcançar seus objetivos através de uma militarizada política exterior que deprecie a visão de seus aliados e o papel das instituições globais, vai fracassar. E isto seria uma tragédia, não só para os Estados Unidos, mas para o mundo" [7]. O que assusta a setores da burguesia imperialista é que o atual curso militarista debilite à única polícia mundial, guardiã da ordem capitalista em seu conjunto.

[1Jornal Página12, 27/7/2003, da Argentina.

[2Jornal do Partido de Trabalhadores pelo Socialismo (PTS), da Argentina.

[3"Rolling Back the 20th Century", The Nation, 12/05/2003.

[4National Security Outlook,1/05/2003.

[5De modo sumário, os elementos concretos que esta visão poderia incluir são os seguintes: a) a eliminação dos impostos federais ao capital privado, b) a privatização da seguridade social e, eventualmente o desmantelamento de toda forma coletiva de salários de aposentadoria convertendo-os em contas individuais, c) a retirada do governo federal do seu papel direto na moradia, saúde, assistência aos pobres e muitas outras prioridades sociais amplamente estabelecidas, d) restaurar a igreja, a família e a educação privada para que cumpram um papel mais influente na vida cultural da nação, outorgando-lhes uma nova base de subsídios (dinheiros públicos), e) fortalecer as empresas contra as cargas das obrigações regulatórias, especialmente na regulamentação ambiental e f) destroçar o trabalho sindicalizado.

[6Reagan assumiu a presidência em 1980 logo após a crise estrutural em que caiu a economia norte-americana na década de setenta, ao fim do "ciclo virtuoso" do boom do pós-guerra.

[7Martin Wolf, Financial Times. 8/07/2003.

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