Segunda 6 de Maio de 2024

Nacional

O BRASIL DE LULA

A falácia do "subimperialismo" brasileiro

01 Jan 2009 | Este artigo foi publicado, em versão reduzida, na Revista Estratégia Internacional Nº 25. Aqui apresentamos a versão completa do artigo. Leia esse e os outros artigos no site da FRAÇÃO TROTSKISTA - QUARTA INTERNACIONAL   |   comentários

Juntamente com os demais países denominados “emergentes” , tem se especulado sobre o papel que o Brasil poderá vir a cumprir no novo cenário mundial, marcado pelo início da maior crise económica mundial desde a década de 1930 e pelo declínio da hegemonia norte-americana. Não poucos e nem tampouco insignificantes analistas e intelectuais de distintas matrizes ideológicas têm apostado no Brasil como um “novo ator de peso” no cenário mundial, com setores que se reivindicam marxistas chegando a atribuí-lo a categoria de “sub-imperialismo” . Estas “teorias” têm se reforçado no último período em função de distintos fatores, entre os quais podemos destacar a abundância dos recursos naturais do país, a projeção de empresas brasileiras como ”˜global players”™ que disputam os primeiros lugares em alguns setores da economia mundial e a relativa estabilidade política nacional em relação a outros países chamados emergentes.

Neste artigo, buscamos contribuir para demonstrar como as bases da visão do Brasil como “novo ator” no cenário internacional junto à China, Rússia e à ndia (os Bric), que hoje parecem lhe atribuir relativa “autonomia” para enfrentar as turbulências globais, são as mesmas que determinam sua enorme dependência estrutural em relação ao capital imperialista ’ não só no nível económico, mas também tecnológico e inclusive cultural ’ e que, em perspectiva, inexoravelmente, essas bases o ligam de forma contundente à crise que atinge o coração do sistema. Com isso, nos propomos a aportar para a atualização da definição do Brasil como um país semicolonial, ao mesmo tempo em que buscamos mostrar como esta condição e as contradições estruturais que a determinam apontam para um cenário em que o “gigante sul-americano” se transforme em um novo motor de instabilidades na nova situação regional e mundial que começa a se abrir.

Um ciclo de crescimento que aprofundou a dependência em relação ao capital imperialista

A política de baixas taxas de juros através da qual o governo dos EUA alimentou o super endividamento das famílias norte-americanas e com isso motorizou o excepcional crescimento chinês, via exportações, é a mesma política que proporcionou um boom de exportação em toda a periferia do sistema capitalista para alimentar este esquema, e proporcionou enorme liquidez de capitais internacionais nos países “em desenvolvimento” em busca de maiores rendimentos. O Brasil, pela sua especial abundância de recursos naturais, que lhe proporcionou lugar especial no fornecimento de commodities primárias e energéticas na nova divisão de trabalho internacional, foi parte dos ditos “emergentes” que vivenciaram um excepcional ciclo de crescimento nos últimos anos, a ponto de que alguns analistas comparam a recente expansão da economia brasileira apenas como os momentos anteriores à crise da dívida na década de 1980.

Os recursos naturais brasileiros têm ganhado maior relevância no marco das bárbaras dimensões de crise ambiental e climática às quais o capitalismo tem levado o planeta; e no marco dos problemas políticos e também ambientais que têm girado em torno do monopólio da produção de petróleo por países considerados parte do “eixo do mal” e do caráter finito desta que tem sido a principal fonte de energia no mundo. Para além da singular e já conhecida cobiça pelas potenciais riquezas naturais da Amazónia em todo o mundo, a particularidade do potencial agropecuário e energético do Brasil se expressa nos 22% de terras agricultáveis do mundo, cuja particular fertilidade está ligada ao excepcional potencial hídrico do país, com a maior quantidade de água continental do mundo (16% das águas utilizáveis) e seus enormes índices pluviométricos característicos de um clima majoritariamente tropical [1]. Estas particularidades explicam o fato de que, entre 2001 e 2007, houve uma elevação do preço médio da terra no Brasil da ordem de 131% em reais e 219% em dólares [2]; com investidores estrangeiros comprando 12 km2 no país (uma área semelhante a seis vezes o território de Mónaco) por dia [3]. É o que explica que das 100 maiores empresas de agronegócio que atuam no país, 38 são controladas pelo capital estrangeiro, sem contar as participações minoritárias [4].

Nos últimos cinco anos (2003-2007), as exportações cresceram à taxa média anual de 21,6%, número que contrasta com o referente aos 25 anos anteriores, quando as exportações cresceram a taxas médias de 6,7% ao ano. O excelente desempenho exportador permitiu que a participação das exportações no PIB aumentasse substancialmente. A partir de níveis muito baixos em meados dos anos 1980 (em torno de 6%), esta participação estava acima de 12% em 2007. Entre 1990 e 2000, as exportações aumentaram em US$ 24,7 bilhões. Já no período de 2001 a 2007, a diferença foi de US$ 102,4 bilhões. A subordinação do boom exportador ao capital imperialista tem uma de suas expressões no fato de que, do valor total das exportações das 76 firmas brasileiras classificadas entre os 200 maiores exportadores latino-americanos, 64% são originárias de subsidiárias das multinacionais estrangeiras; e das 50 maiores empresas instaladas no Brasil que em 2007 mais exportaram, 26 são subsidiárias de multinacionais estrangeiras. [5]

Num crescimento permanente desde 2002, quando havia atingido 8.370 pontos, a cotação das ações da Bovespa chegou em maio de 2008 ao recorde histórico de 73.516 pontos, alimentado nos seus últimos ápices pela “promoção” a "investment grade" (grau de investimento) que o Brasil recebeu de algumas das principais agências financeiras imperialistas. Em 2007, a Bovespa operou o recorde de 63 aberturas de capital (IPOs, pela sigla em inglês), das quais o capital estrangeiro ficou com cerca de 75% do volume ofertado. A magnitude destes números se mostra quando verificamos que entre 1995 e 2003 foram realizadas apenas 6 IPOs; em 2004, foram 7 as companhias que ingressaram na Bovespa; e nos anos de 2005 e 2006 este número foi equivalente a, respectivamente, 9 e 26. De dezembro de 2002 para dezembro de 2007, o estoque total de investimentos estrangeiros de portfólio no mercado financeiro brasileiro saltou de US$ 10,4 bilhões para US$ 214,1 bilhões. Deste total, 77,4% foram dirigidos ao mercado de ações, o que explica como os capitais estrangeiros foram responsáveis por uma média de 35% da movimentação geral da Bovespa no primeiro semestre de 2008. [6]

Os investimentos estrangeiros que são diretamente destinados à produção de bens e serviços saltaram de US$ 10,1 bilhões em 2003 para US$ 34,3 bilhões em 2007, outro recorde histórico. Este aumento está intimamente ligado ao crescimento das operações de fusões e aquisições, onde o capital imperialista tem cumprido um papel chave. Já de 1995 a 2000, 61% das operações de fusões e aquisições e 46% das privatizações foram realizadas por capitais estrangeiros. [7] Em 2006, registra-se um crescimento de 237% no volume financeiro deste tipo de transação em relação a 2005, movimentando mais de US$ 200 bilhões. Em 2007 se observa um novo recorde, com crescimento de 43% sobre o ano anterior. Apenas nos primeiros cinco meses de 2008, o valor das operações de fusões e aquisições no Brasil atingiu US$ 46,6 bilhões, mais que o dobro do registrado no mesmo período de 2007, resultado que representou 74% do volume total destas operações na América Latina. [8]

A entrada de capitais estrangeiros através da bolsa de valores ou dos investimentos diretos na produção, ligada às baixas taxas de juros para a captação de empréstimos por empresas e bancos brasileiros no exterior, foi essencial para o enorme aumento do volume de crédito ofertado no país, que em agosto de 2008 chegou a alcançar um volume total correspondente a 37% do PIB; o maior da série histórica desde 1994, quando começou a ser registrada.

Os juros, o câmbio e o ascenso dos global players brasileiros

O poder de atração do capital imperialista por parte do Brasil se deu em função de uma particular combinação de fatores, dentre os quais, para além de seus recursos naturais extremamente valorizados, cumpriram um papel central as taxas de juros reais mais altas do mundo. Esta conjunção de elementos levou a que o fluxo de dólares para o país pressionasse a uma hipervalorização artificial do real em relação ao dólar, aumentando o poder de compra das empresas nacionais no exterior e com isso favorecendo o desenvolvimento do que hoje conhecemos como os ”˜global players”™ brasileiros.

Já é significativa a lista de empresas de controle acionário majoritariamente nacional que têm disputado em condições de igualdade com as empresas imperialistas no mercado mundial. A JBS-Friboi, depois de ter comprado a Swift Foods Company norte-americana, transformou-se no maior frigorífico do mundo. A Vale do Rio Doce, depois de adquirir a INCO canadense e a australiana AMCI Holdings, transformou-se na 2ª maior mineradora. A Embraer hoje é a 4ª maior fabricante de aviões. A Petrobrás, a 6ª maior empresa de petróleo. Segue a estes exemplos uma longa lista, dentre as quais podemos destacar como parte das 20 maiores multinacionais brasileiras: Odebrecht, Camargo Correia, Gerdau, Votorantim, Aracruz, Weg, Marcopolo, Andrade Gutierrez, Tigre, Usiminas, Natura, Itautec, ALL, Ultrapar, Sabó e Lupatech. Em 2007, este “seleto” grupo, faturou US$ 30 bilhões no exterior, detinha US$ 56 bilhões em ativos espalhados em todo o mundo, além de empregar 77.000 trabalhadores fora do país. [9]

O processo de internacionalização destas empresas, ainda que nos casos da Petrobrás e da Odebrecht remonte à década de 70, ganhou um salto no marco do ciclo de crescimento económico mundial que vigora desde 2001. Este salto se expressa no valor de aquisições de ativos no exterior por empresas brasileiras: passou de US$ 12,2 bilhões entre 1996 e 2001 para US$ 37,8 bilhões entre 2002 e 2006; e no estoque de investimentos externos brasileiros no exterior, que praticamente dobrou entre 2003 e 2006. [10] No ano de 2006, o Brasil realizou um investimento externo adicional no valor de US$ 32 bilhões, representando um aumento de 49% em relação a 2005 e 129% em relação a 2001. Este valor colocou o Brasil na 12ª posição mundial entre os países que mais investiram no exterior em 2006. Especificamente entre os países ditos “emergentes” , este montante superou a Austrália, a China, a Rússia e a Suécia, colocando o Brasil na 2ª posição, atrás apenas de Hong Kong. [11]

Dentre as compras de maior destaque que foram feitas nos últimos anos podemos destacar: a aquisição da argentina Mirab pela Marfrig em 2008; a aquisição da Chaparral Steel Company pela Gerdau em 2007; a aquisição da colombiana Acerías Paz del Rio e da americana U.S. Zinc e a compra de 27% do capital da argentina Aceros de Bragado (AcrerBrag) pelo Grupo Votorantim em 2007; a formação de uma joint venture com a Tata Motors em 2006 para construção da maior fábrica de ónibus do mundo na à ndia pela Marcopolo; a aquisição da argentina Loma Negra pela Camargo Corrêa em 2005 e etc.

Particularmente no agronegócio, em 2006, as empresas brasileiras compraram sete companhias no exterior, número que dobrou em 2007 e totalizou cinco operações só no primeiro trimestre de 2008. Com estes investimentos, as multinacionais brasileiras buscam não só ganhar escala, mas também driblar barreiras comerciais e sanitárias impostas pelos EUA, Japão e União Européia. Como hoje conta com plataformas de produção espalhadas na Argentina, na Itália, nos EUA e na Austrália, a JBS-Friboi passou a ter acesso a 100% dos mercados consumidores, com 120 unidades de produção e distribuição e capacidade para abater 79.000 cabeças por dia, o suficiente para suprir 10% do mercado mundial. A Sadia, que se encontra entre as quatro principais multinacionais do agronegócio brasileiro e teve seu principal diretor executivo “promovido” a ministro do desenvolvimento e do Comércio Exterior no governo Lula, recém inaugurou sua primeira unidade de produção na Rússia. Atualmente, entre os maiores exportadores do agronegócio no mundo, o Brasil, apesar de se encontrar em 4º lugar no volume de vendas, possui a maior taxa de crescimento anual desde 2006. [12]

Os primeiros sinais da crise no Brasil

Enquanto no terceiro trimestre o Brasil revelava indicadores que ainda apontavam novos recordes positivos nos níveis de investimento, produção, emprego e renda, a Bovespa, e mais de conjunto as contas externas do país, começaram a sentir os primeiros efeitos da crise mundial e das contradições estruturais ligadas à dependência da economia nacional em relação ao capital imperialista.

Alentadas pelo aumento do estoque de capitais estrangeiros no país e também pela necessidade das multinacionais de cobrir os balanços negativos de suas matrizes em seus países de origem, em 2005, 2006 e 2007 as remessas de lucros e dividendos para o exterior totalizaram, respectivamente, US$ 11,6, US$ 16,4 e US$ 19,7 bilhões, sendo que em 2002 o montante era equivalente a US$ 5,1 bilhões. Entre janeiro e setembro de 2008, as multinacionais instaladas no país enviaram US$ 27,5 bilhões para suas matrizes, valor 84% maior do que o apurado no mesmo período em 2007.

Até 2005, o crescimento das exportações acumulado no ano (22,6%) vinha se dando numa proporção maior que crescimento anual acumulado das importações (17,1%), gerando uma dinâmica ascendente nos saldos superavitários da balança comercial, que naquele ano alcançaram a cifra de US$ 44,8 bilhões, bem acima dos US$ 33,7 bilhões registrados em 2004. Em 2006, apesar do saldo comercial externo anual ainda ter aumentado (US$ 46,1 bilhões), a dinâmica da relação entre o crescimento das exportações e das importações ao longo deste ano começou a se inverter, com as exportações aumentando em média 16% e as importações elevando-se em 24%. A partir de então, com as importações motorizadas pelo aumento da demanda interna, esta dinâmica se mantém e se acentua, revertendo a tendência de aumento dos superávits da balança comercial para uma tendência de declínio. Em 2007, o acumulado anual da balança comercial foi de US$ 40 bilhões. No acumulado de 12 meses até agosto de 2008, as exportações cresceram num ritmo de 27,8% em relação à mesma base de comparação do ano anterior, enquanto o mesmo cálculo para as importações revela um crescimento de 52%. De janeiro a outubro de 2008, observa-se um superávit acumulado de US$ 20,8 bilhões, enquanto no mesmo período de 2007 havia acumulado US$ 34,3 bilhões.

Estes dois fatores (aumento da remessa de lucros e dividendos para o exterior e redução do saldo da balança comercial) têm sido os principais responsáveis por um crescente déficit na conta de transações correntes do país (composta pela balança comercial, a conta de serviços e rendas), que em outubro de 2007 registrou seu primeiro saldo negativo e desde então vem mantendo e aprofundando esta tendência. Nos primeiros sete meses de 2008, o saldo das transações correntes foi deficitário em US$ 19,5 bilhões, uma virada significativa quando se compara com o superávit de US$ 1,7 bilhão registrado em igual período de 2006.

Do ponto de vista da conta capital e financeira, nota-se igualmente uma redução significativa dos fluxos líquidos de ingresso, que passaram de US$ 70,3 bilhões nos primeiros sete meses de 2007 para US$ 45,2 bilhões no mesmo período de 2008.

Apesar da manutenção da dinâmica de crescimento dos investimentos diretos estrangeiros no país, que em novembro de 2008 já atingiu novo recorde histórico superior a 2007 e tem sido o principal responsável por compensar minimamente a queda nos demais indicadores das contas externas, os investimentos diretos líquidos (que somam os realizados por estrangeiros internamente e por brasileiros lá fora) sofreram uma redução. Em função da projeção internacional dos ”˜global players”™ brasileiros, que fizeram os investimentos brasileiros no exterior passarem de um valor negativo em US$ 3,6 bilhões entre janeiro e julho de 2007 para um valor positivo em US$ 9 bilhões no mesmo período de 2008, o superávit líquido dos investimentos diretos estrangeiros caiu de US$ 24,4 bilhões para US$ 19,9 bilhões no mesmo período de comparação.

Os investimentos estrangeiros em carteira (ações na bolsa e títulos de renda fixa) também apresentaram uma forte queda nos sete primeiros meses de 2008, com ingressos líquidos de apenas US$ 17,5 bilhões, uma redução de US$ 14,4 bilhões com relação ao mesmo período de 2007. Essa queda é explicada tanto pelos investimentos em ações, que caíram de US$ 14,1 bilhões para US$ 4,7 bilhões no período, quanto os títulos em renda fixa, que passaram de US$ 17,7 bilhões para US$ 12, 8 bilhões. Em julho, o saldo de compras e vendas de ações por estrangeiros totalizou uma saída líquida de dólares de US$ 3,8 bilhões. Em agosto e setembro essa saída líquida de dólares da bolsa continua totalizando nos dois meses o montante de US$ 3,5 bilhões. Paralelamente a este movimento de saída dos capitais estrangeiros, as cotações da bolsa caíram de seu pico de 73 mil pontos em maio para ao redor de 50 mil pontos em meados de setembro.

A redução dos fluxos de capital estrangeiro para o país, aliada ao aumento dos déficits em conta corrente, fundamenta o início da desvalorização do real que passamos a verificar a partir de agosto.

O “subprime brasileiro” ?

A partir da quebra do Lehman Brothers em meados de setembro, os impactos da crise no Brasil ganham um salto de qualidade.

No mês de outubro a fuga de capitais estrangeiros da Bovespa saltou para um saldo líquido negativo no total do mês equivalente a US$ 6 bilhões, valor recorde da série histórica que se inicia em 1995, ao que se somou o primeiro saldo negativo do ano no fluxo de investimentos externos destinados aos títulos de renda fixa, representando uma saída líquida adicional de US$ 1,7 bilhão. Este movimento esteve associado a uma queda das cotações da bolsa ao patamar de 33 mil pontos, retornando aos patamares de 2005. Em meio às brutais quedas e oscilações do mês, em duas semanas a Bovespa chegou a acionar quatro vezes o mecanismo chamado “circuit bracker” , que paralisa as operações durante determinado período para tentar frear o espiral de queda. A abrupta saída de dólares do mercado financeiro, combinada com a dinâmica deficitária que já vinha se expressando na conta de transações correntes, fez outubro registrar o primeiro déficit no acumulado mensal do balanço de pagamentos desde junho de 2006, com uma saída líquida negativa de dólares equivalente a US$ 8,6 bilhões.

A abrupta reversão nas condições das contas externas do país é o que explica a explosão da taxa de câmbio, que fez voar pelos ares o “status” artificialmente hiper-valorizado do real com a acelerada valorização da moeda ianque. De R$ 1,56 no começo de agosto, o dólar chegou a alcançar R$ 2,41 em outubro. Dentre as distintas moedas que perderam valor ante o dólar em todo o mundo, o real foi a que mais perdeu.

Para compensar perda de rentabilidade na exportação dos produtos brasileiros em função da hiper-valorização da moeda nacional, grandes exportadoras passaram a especular no mercado futuro de câmbio, apostando na continuidade da valorização do real. Desta forma, a abrupta reversão na dinâmica da taxa de câmbio acarretou enormes prejuízos para alguns dos maiores ”˜global players”™ brasileiros. Nestas operações, a Sadia obteve um prejuízo já calculado de R$ 777,4 milhões, que pode ser superior na média em que ainda não zerou sua exposição cambial. O tamanho da perda é maior que todo o lucro líquido obtido pela Sadia em 2007, equivalente a US$ 291,5 milhões. A Aracruz, uma das maiores produtoras de papel e celulose do mundo, obteve um prejuízo de US$ 2,13 bilhões, um montante 4 vezes maior que os US$ 500,8 milhões que a empresa obteve de lucro líquido em 2007. A Votorantim, 3ª maior produtora mundial de zinco, teve um prejuízo de R$ 2,2 bilhões, valor também superior a todo o lucro líquido que a empresa teve em 2007 nos segmentos de siderurgia, metalurgia e construção civil. Estes são os casos mais evidentes dentre outros tantos, que alguns economistas chegam a especular em mais de 150 empresas atingidas.

Justamente pelo contágio direto e imediato entre a explosão da “bolha cambial” e as empresas que constituem a chamada “economia real” , alguns setores da imprensa passaram a denominar este mecanismo de perdas ligadas ao mercado futuro de câmbio como o “subprime brasileiro” .

A seca de crédito

A economia brasileira foi fortemente atingida pela redução, encarecimento e diminuição dos prazos para o crédito que desde a quebra do Lehman Brothers passaram a atingir os mercados financeiros em todo o mundo. Desde outubro, a abundância de crédito que vinha cumprindo um papel fundamental como motor da economia se transformou numa escassez que atingiu os investimentos, o consumo, o capital de giro e a rolagem de dívidas das empresas. O golpe foi tão mais intenso quanto maior era a dependência de cada setor da economia em relação ao crédito para suas operações. Apesar do alarde feito pelo governo de que o volume total de crédito disponível na economia brasileira cresceu de 2,9% para 40,2% do PIB em outubro, um novo recorde histórico deste indicador, outros indicadores têm mostrado que este crédito não tem chegado às empresas ou ao consumidor.

Nas concessões para pessoas jurídicas, os descontos de notas promissórias, o crédito para a aquisição de bens e o adiantamento de contratos de câmbio (ACC) caíram 20%. A diminuição nos repasses de recursos externos foi de 35%, atingindo especialmente os setores exportadores e o agronegócio, que vinha tendo grande parte de seu financiamento dependente das linhas externas de crédito. Para pessoas físicas, os empréstimos para a compra de veículos baixaram 37,2%, e o crédito pessoal, 9,8%, sendo que os indivíduos recorreram mais ao cheque especial para equilibrar as contas. Simultaneamente, ocorreu um aumento considerável nas taxas de juros. De setembro para outubro, a taxa sobre o desconto de promissórias subiu 11 pontos percentuais; sobre o capital de giro das empresas, 4,6 pontos percentuais. No cheque especial as taxas alcançaram incríveis 170,8% ao ano. Os prazos também começaram a encolher: na modalidade de capital de giro o encurtamento foi de 15 dias; na aquisição de veículos por pessoas físicas, de 7 dias. [13] Segundo uma pesquisa da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), os juros cobrados nas linhas de capital de giro registraram aumento, na média, de 68%. Segundo levantamento do Banco Central, o custo médio de um empréstimo bancário chegou a 45% ao ano neste começo de novembro, se considerada a média dos contratos firmados entre os dias 1º e 12. Em outubro, essa taxa estava em 42,9% ao ano e, em setembro, 40,4%. O "spread" médio bancário (percentual dos juros cobrados que ficam com o banco que faz a intermediação do crédito) subiu de 26,4% em setembro para 28,4% em outubro e 30,5%no começo de novembro. Foi ligado a este processo que entre outubro e novembro muitos bancos médios e pequenos ficaram ameaçados de terem suas atividades inviabilizadas e tiveram que ser socorridos através da compra de suas carteiras de crédito auxiliadas pelo governo.

Apesar dos milhões de reais liberados pelo governo com a diminuição do compulsório (percentual dos depósitos que os bancos são obrigados a guardar no Banco Central) para tentar reverter a seca de crédito, amplos setores da burguesia e da imprensa têm reclamado da dificuldade de obter financiamento junto aos bancos, que têm preferido utilizar este dinheiro para aumentar seus investimentos nos títulos do governo.

A desaceleração da “economia real” e as primeiras ondas de demissões

Segundo o IBGE, em outubro, a produção da indústria foi 1,7% menor que em setembro e apenas 0,8% maior que no mesmo mês de 2007. Pela primeira vez, em muito tempo, a produção de bens de capital diminuiu de um mês para outro. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) anunciou que o faturamento real da indústria de transformação, descontado o fator sazonal, foi 0,2% menor em outubro do que no mês anterior. O uso da capacidade instalada caiu de 83,4% para 82,9%, voltando ao nível de um ano atrás. Ainda é elevado, mas a tendência de redução parece firme.

Números divulgados pelas montadoras de veículos revelam que, em novembro, foram produzidas 194,9 mil unidades, montante 34,4% menor que a de outubro e 28,6% inferior à de um ano antes. Apesar dos R$ 8 bilhões disponibilizados por Banco do Brasil e Nossa Caixa para as financeiras das montadoras no mês de novembro, as vendas de carros no mercado interno recuaram 25,7% de outubro para o mês seguinte. No confronto com o mesmo mês de 2007, a redução foi de 25%. Em outubro, primeiro mês no ano com retração nesse comparativo, a queda havia sido de 2,1%.

As vendas de máquinas agrícolas no mercado interno também recuaram nos últimos dois meses, diminuindo 21,2%. Ainda foram 16,6% superiores às de novembro do ano passado, mas são um claro sinal de problemas no campo. Segundo o IBGE, a indústria de defensivos agrícolas produziu em outubro 30% menos que em setembro. A produção de adubos, fertilizantes e corretivos do solo diminuiu 32%.

Numa pesquisa realizada pela FIESP junto a 658 indústrias, 42% dos empresários revelaram que prevêem demitir em 2009, sendo que destes 7% prevêem “demissões acentuadas” . Em outubro, na contabilização da diferença entre postos de trabalho criados e fechados, verificou-se um saldo que, apesar do predomínio da geração de empregos, esta foi 77% menor que em setembro, atingindo o valor absoluto mais baixo desde 2002. Particularmente na agricultura, verificou-se um saldo diretamente negativo, com a perda líquida de 38,4 mil postos de trabalho. As indústrias automotoras têm implementado férias coletivas antecipadas de forma generalizada, e as demissões em massa já começam a acontecer em algumas empresas.

O rápido aprofundamento da crise se expressa de forma aguda nos impactos que já começamos a observar em alguns dos principais ”˜global players”™ brasileiros. A Petrobrás, o maior de todos, foi obrigada a recorrer ao empréstimo de R$ 751 milhões ao Banco do Brasil e de R$ 2 bilhões à Caixa Económica Federal para cobrir seus déficits de caixa, montantes que estes bancos nem mesmo estão acostumados a trabalhar. A Vale do Rio Doce, segunda maior multinacional brasileira, que até há pouco dizia que “passaria tranqüila” pela crise, anunciou a demissão de 1.300 trabalhadores.

De volta às crises na balança de pagamentos?

Os economistas mais otimistas insistem que o Brasil está muito distante das crises no balanço de pagamentos que atingiram o país em 1998-99 e 2002. Mas os dados mais recentes das contas externas indicam uma tendência à volta destes cenários.

No mês de novembro, a conta de capitais movimentou uma entrada de US$ 18,690 bilhões e a saída de US$ 28,988 bilhões, deixando saldo negativo de US$ 10,298 bilhões, 218% maior do que na média dos dez primeiros meses do ano. Este valor foi amenizado pelo saldo comercial, que ficou positivo em US$ 3,1 bilhões (apesar deste valor representar uma queda de 25% no valor exportado e de 40% no valor importado em relação a outubro). O resultado foi um fluxo cambial negativo em US$ 7,2 bilhões, o pior resultado desde setembro de 1998. Tal conta não ficava no vermelho, em tal monta, desde janeiro de 1999.

A combinação da crise financeira internacional com as enchentes em Santa Catarina levaram o governo finalmente a admitir que o país não vai cumprir a meta de exportar US$ 202 bilhões neste ano e prever dificuldades maiores para 2009. A primeira semana de dezembro tem um dado ruim para as exportações brasileiras: queda nas três categorias de produtos. Em comparação a novembro, a média diária das exportações caiu 19%, com quedas de 25,4% nas vendas de produtos básicos, 25,2% para produtos semimanufaturados e de 12,2% para os manufaturados.

Apesar de que os investimentos diretos estrangeiros acumulados até novembro alcançaram um novo recorde com a cifra de US$ 37,1 bilhões (superior aos 34,6 bilhões registrados neste período de 2007), mantendo-se como o principal mecanismo de compensação ao aumento da saída de dólares por outras vias, o resultado líquido destas transações continuou a diminuir em função do crescimento dos investimentos dos ”˜global players”™ brasileiros no exterior, que saltaram de US$ 848 milhões no acumulado de janeiro a outubro em 2007 para US$ 15,6 bilhões no mesmo período de 2008. Além disso, a partir de setembro os próprios investimentos diretos estrangeiros começaram a desacelerar, passando de US$ 6,3 bilhões neste mês para US$ 3,9 bilhões em outubro e US$ 2,8 bilhões em novembro, segundo projeção do BC.

Particularmente a dívida pública hoje se beneficia da substituição dos títulos em dólares por títulos em reais, que fizeram o Brasil credor na moeda estrangeira, afastando a ameaça de cenários de default como o de 2002. A proporção da dívida pública em relação ao PIB passou de um patamar de pouco mais de 50% do PIB dos anos FHC para os cerca de 38% projetados para este final de ano, um índice que não se observava desde a década de 70. Mas esta é uma tendência que tende a se reverter juntamente com a desaceleração da economia e a conseqüente diminuição da arrecadação federal, que fará vir à tona o fato de que a dívida não parou de crescer em termos absolutos, apesar dos enormes e crescentes montantes de juros pagos. Desde 2003, o governo já pagou em juros da dívida pública R$ 851 bilhões, e ainda assim o montante total hoje ultrapassa R$ 1 trilhão. Mesmo que hoje a maior parte da dívida pública em dólares tenha sido transferida para títulos em reais, estes são em sua maior parte propriedade de fundos de investimentos com enorme participação do capital estrangeiro, fazendo com que sua liquidação e sua renda de juros permaneça, também, contribuindo para a saída de dólares do país. [14]

Estima-se que atualmente mais de 500 bilhões de dólares que circulam internamente podem a qualquer momento sair abruptamente do país por distintas vias de curto prazo. [15] Uma das evidências da fragilidade dos US$ 200 bilhões de reservas internacionais alardeados pelo governo como “fundamentos sólidos” da economia que supostamente permitiriam maior “autonomia” do país para enfrentar a crise no coração do sistema, é que estes não têm sido capazes de conter a desvalorização do real, ao mesmo tempo em que Lula “preventivamente” foi obrigado a recorrer à “ajuda” adicional de 30 bilhões de dólares oferecidos pelo Banco Central norte-americano. Isso se deu porque, apesar do enorme crescimento das exportações nos últimos anos, “essas reservas foram, no plano interno, construídas com base não em superávits em conta corrente, como é o caso, por exemplo, da China, mas com base em endividamento externo; e, no plano interno, não decorreram de superávit fiscal em reais, mas de endividamento público interno. (...) Entre 2001 e julho de 2008, as reservas internacionais do Brasil aumentaram em US$ 167,8 bilhões. Nesse período, porém, o saldo acumulado em transações correntes foi de apenas US$ 6,8 bilhões, de forma que 96,4% do aumento das reservas foi obtido pelo país com financiamento externo financeiro e patrimonial (investimentos diretos). Como não houve superávit público, 100% desse aumento foi financiado com dívida interna.” [16]

As contradições entre o discurso e a prática nas respostas do governo frente à crise

Os conflitos de interesses entre os distintos setores burgueses se expressam também nas ambigüidades de demagogias do discurso presidencial. Ao mesmo tempo em que levanta a bandeira da liberalização do mercado mundial, estranhamente Lula passa a apostar no “desenvolvimento do mercado interno” em base a um suposto fortalecimento do papel do Estado como motor da economia, seja pelo fornecimento de crédito ou pelo investimento direto na economia. Mas a política concreta que o governo tem implementado até agora continua centralmente subordinada ao capital financeiro internacional e a seus sócios nacionais.

Até o presente momento, os investimentos do governo em 2008 estão aquém da metade de suas próprias previsões orçamentárias, ao mesmo tempo em que se o superávit primário tem alcançado 4,53% do PIB, acima dos 4,3 das previsões oficiais para o ano. Não se vê no governo qualquer movimentação no sentido de uma redução substancial das taxas de juros, e sim declarações no sentido de uma manutenção dos patamares atuais ou reduções insignificantes. Em seus discursos mundo a fora, Lula tem se destacado pela defesa de um maior controle dos capitais especulativos em nível mundial. Entretanto, no país em que governa, nunca mencionou a possibilidade de retirar ou alterar qualquer uma das leis implementadas na última década que fazem do Brasil um verdadeiro “paraíso” para a livre entrada e saída destes mesmos capitais.

As duas leis emergenciais implementadas por Lula como medidas “preventivas” , assim como sua política de financiamento através do BNDES estão destinadas a “legalizar” a utilização de dinheiro público para salvar os grandes grupos capitalistas que entrem em crise e auxiliar o processo de concentração de capitais, ajudando os monopólios “amigos” do governo em detrimento daqueles que por falta de “amigos” vão ter que ser rifados na “bacia das almas” . Este é o conteúdo que se esconde por trás da propaganda e de determinados setores capitalistas de que esta crise pode ser uma “grande oportunidade” para os setores “mais competitivos” da burguesia brasileira. [17]

Mas não podemos descartar a possibilidade de que Lula, frente aos desdobramentos da crise mundial, reoriente sua política monetária e fiscal para permitir um maior estímulo ao mercado interno, ainda mais levando em conta que a economia será um elemento chave na sua capacidade de eleger um sucessor em 2010. O que ainda não está claro é o que acontecerá com as verbas destinadas às “áreas sociais” , ao funcionalismo público. O que sim é certo é que em algum lugar o governo vai ter que cortar.

Uma política externa “progressista” ?

Um dos componentes centrais que contribuíram para a projeção de Lula no cenário mundial foi seu papel de liderança na articulação do grupo denominado G-20, que reunia os 20 principais países “emergentes” , cujo objetivo inicial era unificar e com isso fortalecer estes países nas negociações comerciais da OMC concentradas na "Rodada Doha". O objetivo central desta negociação vem sendo facilitar a entrada do capital imperialista dos setores industriais e de serviços nos países "emergentes", e em contrapartida facilitar a entrada do capital destes últimos nos países centrais, em setores económicos cuja competitividade dos países atrasados é maior e por isso concorrem com tarifas aduaneiras e subsídios garantidos pelos governos imperialistas e suas respectivas burguesias. Esse é o caso, por exemplo, dos produtos agropecuários e de commodities primárias, nos quais o Brasil tem especial vantagem devido a sua abundância excepcional de recursos naturais. Este suposto papel de "liderança" que Lula teria na defesa dos interesses dos “países pobres” diante dos países imperialistas era uma das políticas que os intelectuais petistas "críticos" utilizaram para justificar seu apoio ao governo, como se fosse um "aspecto de esquerda" que pudesse "compensar" a política económica lulista, que descaradamente privilegia o capital financeiro internacional.

Entretanto, na última tentativa de conclusão da Rodada Doha, em meados de 2008, o governo brasileiro defendeu a aprovação de um acordo que feria os interesses de seus supostos "aliados pobres". No momento decisivo da negociação, o Itamaraty se colocou lado a lado com os EUA e a União Européia, contra a China e a à ndia. Meses depois, na cúpula que reuniu as potências imperialistas e os principais países "emergentes" em Washington, dia 15 de novembro, para discutir a crise económica mundial, Lula mais uma vez assumiu a liderança em reavivar as já moribundas negociações de Doha, novamente colocando-se ao lado dos EUA e da UE e distanciando-se das posições chinesa e indiana. [18]

Para além de que até agora a Rodada de Doha venha fracassando em função das posições contrárias dos gigantes asiáticos, a atitude do governo brasileiro foi reveladora dos verdadeiros interesses que se escondem por trás da política externa supostamente "progressista" do presidente ex-operário. Lula foi conseqüente em privilegiar os interesses dos setores burgueses no Brasil que nos últimos anos têm se consolidado como ”˜global players”™, assumindo posições de liderança em alguns ramos da produção mundial. Foi coerente com a estratégia dos capitalistas brasileiros mais monopólicos, internacionalizados e organicamente ligados ao capital financeiro imperialista, de "conquistar" um espaço na nova divisão internacional do trabalho para as empresas mais "competitivas" do país.

É esta mesma orientação que tem se expressado nas recentes atitudes do governo brasileiro em relação aos seus vizinhos sul-americanos. Na própria Rodada Doha, o Itamaraty simplesmente desconsiderou os acordos com a Argentina no âmbito do Mercosul. Um pouco mais ao norte da Bacia do Prata, frente ao conflito dos sem-terra no Paraguai, que têm se enfrentado com os latifundiários brasileiros que cultivam soja neste país, e diante das reivindicações do presidente Lugo por uma revisão dos contratos de Itaipu, Lula tem respondido com o posicionamento silencioso de tropas do Exército na fronteira e com manobras militares que simulam uma ocupação da represa. E na região andina, como resposta à negativa de Correia em pagar um financiamento contraído com o BNDES, Lula retirou o embaixador brasileiro do Equador, depois de ter se calado em relação às fraudes da Odebretch neste país. Frente às ameaças do Equador, da Bolívia e da Venezuela em relação à possibilidade de não pagarem parte de sua dívida com o Brasil, Lula tem respondido com a ameaça de interromper os investimentos e os fornecimentos de crédito que tem feito a estes países. Para a tristeza dos petistas "críticos", o presidente ex-sindicalista não tem titubeado em defender os interesses da burguesia brasileira na região, mesmo que às custas de comprometer os projetos de "integração regional" a serviço das "translatinas" ou de sacrificar legítimas demandas dos povos explorados e oprimidos nos países vizinhos.

As bases e os limites do “reformismo responsável” de Lula

Para além do inquestionável carisma de Lula, sua excepcional popularidade está assentada fundamentalmente no ciclo de crescimento económico dos últimos anos e no conseqüente aumento da arrecadação federal. A criação de empregos, a ampliação dos programas sociais, a elevação do salário mínimo, os reajustes aos servidores federais, todos estes argumentos que servem para os petistas dizerem que “apesar de tudo este governo foi melhor que o de FHC” seriam impossíveis sem os “ventos favoráveis” da economia mundial. Os aumentos salariais levemente acima da inflação conquistados pelas categorias mais organizadas do país, revertendo a tendência observada na década de 90, cumpriram um papel chave para preservar o prestígio das direções petistas cutistas nos sindicatos.

Mas não por acaso estas medidas conviveram pacificamente com o aprofundamento da dependência em relação ao capital imperialista. De 2000 a 2007, o somatório dos gastos do governo federal com saúde, educação e investimentos corresponderam a não mais que 43,8% do total das despesas com juros. Em 2008, o total de verbas que será destinado ao Bolsa-Família, o principal programa de assistência social do governo, será equivalente a 7,8% do que será em juros e dividendos aos banqueiros no mesmo ano. Em 2002, a participação da renda proveniente do trabalho no total da renda nacional era de 46,8%. Em 2007, este percentual foi elevado para 48,9%. Entretanto, esta recuperação, além de permanecer muito abaixo dos 53,6% registrados em 1990, se deu em base a um enorme aumento da exploração da força de trabalho que foi incorporada ao mercado, pois 90% dos empregos criados recebem menos que R$ 830,00, quando o mínimo calculado para satisfazer as condições básicas de uma família equivale a R$ 2.000,00. Segundo estudo feito pela OIT, entre 1996 e 2006 a economia brasileira apresentou um ganho médio de produtividade da ordem de quase 4% enquanto o salário real durante este período diminuiu ao ponto de que o país foi classificado como o que menos transferiu os ganhos de produtividade para o trabalhador num grupo de 32 países examinados. Em 2007, enquanto a produtividade na indústria cresceu em 4,2%, o aumento da remuneração média da força de trabalho nela empregada não passou de 3,1%. Essas são as bases para que os lucros das 500 maiores empresas do país, que em 2002 somavam 3,7 bilhões de dólares, em 2007 tenham alcançado a cifra de 62,7 bilhões. [19]

Estas foram as bases para que Lula, apoiando-se nos milhões de empregos precários criados e na expansão dos planos de assistência social, criasse a ilusão de um processo gradual de “distribuição da renda” e “diminuição da pobreza” . Ao mesmo tempo em que, com o aumento da exploração da força de trabalho, foram essas mesmas bases que garantiram os ganhos recordes dos capitalistas nacionais e imperialistas. Esse é o conteúdo mais profundo da tão alardeada “competitividade” do Brasil que volta e meia preenche os discursos de Lula.

Uma perspectiva de novas divisões ”˜nas alturas”™

No período de “vacas gordas” , em que o boom exportador, a abundância de capitais externos e os grandes monopólios capitalistas serviram como locomotiva motora da economia nacional [20], parecia real a ilusão de que o Brasil estaria entrando em uma “longa fase de crescimento sustentado” . Tais condições permitiram que não se rompesse a hegemonia dos setores burgueses que dominaram durante a ofensiva neoliberal nos anos 90, e sim que esta hegemonia passasse a incorporar novos setores no governo Lula, que com o aumento da arrecadação federal potencializou sua capacidade de administrar os distintos interesses capitalistas.

Entretanto, junto com os primeiros impactos da crise no Brasil, começam a vir à tona divisões significativas. Os setores do capital financeiro que ganham predominantemente com a renda de juros defendem a manutenção das altas taxas e os apertos fiscais necessários para que o governo possa pagar suas dívidas. Os setores que dependem em maior medida do mercado interno, sejam grandes monopólios ou pequenas e médias empresas, defendem a redução substancial das taxas de juros e os remanejamentos fiscais necessários para que o estado possa motorizar a economia com crédito e investimentos diretos. Já os ”˜global players”™ e exportadores brasileiros, na medida em que verão sua estratégia “internacionalista” prejudicada pela recessão mundial e as crescentes tendências ao protecionismo dos estados em relação a suas próprias burguesias tendem também a repensar suas estratégias, buscando proteção e novos “estímulos” por parte do governo brasileiro. Nesse sentido, uma expressão paradigmática da nova configuração do mercado mundial é o recente anúncio do governo chinês de que buscará substituir a queda da demanda de suas exportações para os EUA com uma “invasão” de suas mercadorias baratas sobre os países semicoloniais a ainda apresentam algum crescimento.

Mas a tendência a maiores conflitos entre os distintos setores burgueses não se restringe aos interesses económicos imediatos. Um dos fatores que terá enorme importância no próximo período serão as disputas para as eleições presidenciais de 2010, pois aqui entra também os interesses do governo de manter minimamente (ou em alguns casos até mesmo fortalecer) os investimentos em obras e os “programas sociais” que alavancam votos.

Para além dos conflitos próprios dos objetivos distintos de cada um destes setores, podemos destacar pelo menos duas contradições que atingem todos eles. Em primeiro lugar, uma redução substancial nas taxas de juros ou uma reorientação fiscal que prejudique o pagamento da dívida pública seguramente contribuirão para acelerar a fuga dos capitais estrangeiros do país, deteriorando mais rapidamente as condições da balança de pagamentos e colocando o país mais próximo de um default. Em segundo lugar, os últimos indicadores oficiais já começam a expressar as pressões inflacionárias provenientes da elevação da taxa de câmbio. São as margens impostas pela dependência.

Estas contradições têm se expressado nos conflitos entre o presidente do Banco Central (Henrique Meirelles) e o Ministro da Economia (Guido Mantega), resgatando os mesmos conflitos que se desenvolviam entre José Dirceu e Palloci antes do governo terminar de “subir na onda” do último ciclo de crescimento mundial. Por um lado, Meirelles, que é mais diretamente ligado ao capital financeiro, defende a manutenção das altas taxas de juros e de altos superávits primários (economias para pagamento dos juros da dívida pública). Por outro lado, Mantega, expressando outros interesses, defende a redução dos juros e remanejamentos fiscais para estimular a economia.

“Sub-imperialismo” ou semicolónia?

A categoria “países emergentes” esconde por trás de si as distintas formas de associação do capital imperialista com as classes dominantes dos países da periferia capitalista e dos ex-estados operários, que serviram de base ao desenvolvimento capitalista e à dominação imperialista após o fim do boom do pós-guerra. Os “emergentes” são países para onde se destinaram de forma concentrada os capitais imperialistas com baixa perspectiva de valorização e realização nos países centrais, seja em busca da redução de custos, de novos mercados ou da renda dos juros extraída do endividamento destes estados. Estas formas de associação deram origem a expressões agudas de desenvolvimento desigual e combinado: no interior dos países emergentes passaram a se desenvolver elementos extremamente modernos do capitalismo dos países centrais, que se expressam de forma concentrada nas empresas destes países que se internacionalizam e projetam como ”˜global players”™ no mercado mundial [21]. Ao mesmo tempo, coexiste com esta realidade elementos extremamente atrasados, característicos inclusive de modos de produção pré-capitalista. Mas seja pela dependência orgânica em relação ao capital imperialista ou pelo monopólio da técnica mais avançada por parte dos países centrais, os países “emergentes” nunca conseguiram alcançar níveis de produtividade ou de renda per capita equivalente ao das potências dominantes.

Em 2006, a saída de investimentos diretos dos países em desenvolvimento totalizou US$ 174 bilhões. Em relação ao ano anterior, trata-se de um valor expressivo, 50% maior que em 2005. Entretanto, diante dos mais de US$ 1 trilhão investidos naquele mesmo ano pelos países desenvolvidos, trata-se de uma soma ainda modesta, de cerca de 17%. [22]Em 1980, um trabalhador no Brasil produzia em valor agregado o equivalente a US$ 15,1 mil por ano para a economia. Em 2005, esse valor caiu para US$ 14,7 mil. A distância entre a produtividade no Brasil e nos países desenvolvidos aumentou especialmente na indústria: em 1980, a produtividade industrial equivalia a 19% da americana, tida como base para comparações. Em 2005, essa relação havia caído para 5%, dado que a produtividade do trabalhador brasileiro no setor industrial era de US$ 5,7 mil, contra US$ 104,6 mil do trabalhador americano. Se considerados todos os setores da economia, a produtividade do trabalhador brasileiro (US$ 14,7 mil) também fica atrás da do trabalhador americano (US$ 63,9 mil em 2006). [23] Em 2004, a renda per capita do Brasil foi de US$ 8,54 mil enquanto a dos EUA foi de US$ 40,04 mil.

Neste marco, os países ditos “emergentes” ’ que nunca terminaram de “emergir” ’ dividiram-se em duas categorias centrais, que podem variar de acordo com os mementos históricos: os que para além da dependência económica também se submetem a uma subordinação política aos seus “amos imperialistas” ; e os que apesar da profunda dependência económica por distintos fatores políticos conjunturais encabeçam disputas e conflitos políticos com as potências. Nos primeiros, que o marxismo denomina “semicoloniais” , hoje se encaixam países como Brasil e México; nos segundos, que denominamos “dependentes” , encaixam-se países como China e Rússia. Como buscamos demonstrar ao longo deste artigo, o papel de exploração e opressão que os ”˜global players”™ brasileiros e o próprio governo (através do fornecimento de crédito ou de empresas estatais) exercem sobre outros países semicoloniais, em especial na América do Sul, ao contrário de atribuir um status superior de “sub imperialismo” ao Brasil, é inseparável de sua maior e mais profunda dependência económica e subordinação política em relação ao capital imperialista.

Até onde vai a popularidade de Lula?

Os desdobramentos da crise económica não têm um reflexo mecânico e automático na política ou na luta de classes. Como inércia do ciclo de crescimento dos últimos anos, o que prima no país ainda é a relativa estabilidade do governo e a luta de classes continua sendo o elemento mais atrasado da situação nacional. Entretanto, nada leva a crer que os trabalhadores, os camponeses e o povo pobre vão aceitar passivamente que a crise seja descarregada sobre suas costas quando nos anos de bonança não lhes foi reservada mais que uma mísera parte do “bolo” . É neste marco que devemos nos preparar para uma reversão das condições de relativa estabilidade do governo e de passividade da luta de classes que têm predominado nos últimos anos.

A crise de 1999 partia dos países ditos “emergentes” e isso determinou sua profundidade e extensão. Nada haver com a crise atual. Já não são poucos os economistas que prevêem que a desaceleração já em curso no país, devido à profundidade da crise mundial, seguramente vai dar lugar a uma recessão. Apesar de todas as mudanças que já se operam na economia nacional, as últimas pesquisas de opinião publicadas no início de dezembro trouxeram um novo aumento da popularidade de Lula, que superou seu próprio recorde anterior chegando a 70% de aprovação positiva, dos que opinam que seu governo é “ótimo” ou “bom” . Entretanto, esta mesma pesquisa indicou que 78% dos brasileiros acha que a vida vai melhorar no próximo ano, o que como mínimo lança uma grande interrogação sobre qual será o impacto da frustração destas expectativas.

[1Para uma visão comparativa, a China possui apenas 7% das terras agricultáveis do mundo, a União Européia 5,5% e a Rússia 4,6%. Dos 851 milhões de hectares que compõem a totalidade do território brasileiro, 420 milhões (49%) são agricultáveis. Destas, 283 milhões de hectares (67%) ainda não foram explorados, sendo que cerca de 90 milhões de hectares estão disponíveis para o plantio imediato. Na União Européia, por sua vez, restam ao todo não mais 16,3 milhões de hectares de terras a serem exploradas. A estes atributos internacionalmente já reconhecidos, recentemente soma-se a descoberta de quantidade substancial de petróleo no litoral de toda a região sudeste do país, que apesar de ter uma exploração enormemente dificultada por se encontrar a quilómetros de profundidade, pela sua quantidade e alta qualidade pelo menos potencialmente coloca o Brasil entre as principais reservas mundiais. Dados da FAO e do IBGE

[2Conjuntura Económica” , novembro de 2008, Fundação Getúlio Vargas.

[3Folha de S. Paulo em 07/07/2008.

[4Anuário do agronegócio publicado pela Editora Abril na revista Exame em junho de 2008.

[5Dados extraídos de “Estratégia Brasileira de Exportação: 2008-2010” , 28/08/2008; www.desenvolvimento.gov.br. // Revista “Conjuntura Económica” , FGV, setembro de 2008. // América Económica 19 ago. 2005. In “Internacionalização e os países emergentes” , Editora Atlas, 2007.

[6Bovespa; “Investimentos estrangeiros nos sistemas financeiros latino-americanos: os casos da Argentina, do Brasil e do México” , Revista de Economia Contemporânea, maio-agosto de 2008, www.scielo.br.

[7Piquet, Rosélia. “A reestruturação da economia brasileira: desnacionalização e desemprego” . En publicacion: El rostro urbano de América Latina. CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. 2004. www.kpmg.com.br

[8Folha de São Paulo, 14/03/07; www.kpmg.com.br; Gaseta Mercantil, 06/06/08.

[9Revista Exame, Editora Abril. Edición especial “Melhores e Mayores: las 500 mayores empresas del país” ; julho/2008.

[10“Brasil Globalizado” , Editora Campus, 2008.

[11KPMG.

[12Dados extraídos do Anuário do agronegócio publicado pela Editora Abril na revista Exame em junho de 2008; e da KPMG.

[13Folha de São Paulo, 28/11/2008.

[14Os dois maiores detentores da dívida pública brasileira são o sistema bancário nacional e os Fundos de Investimento, sendo que a participação relativa nos ativos dos Fundos de Investimento é muito mais acentuada (média de 73% entre 2000 e 2006) do que a do sistema bancário (média de 27% entre 1995 e 2006). “Notas sobre a dívida pública no novo período de acumulação brasileiro” , http://www.espacoacademico.com.br.

[15Ver artigo “US$ 553,5 bilhões atam o Brasil à ciranda mundial” em www.cartamaior.com.br.

[16“A crise cambial de 2008” , Bresser Pereira, Folha de São paulo, 17/11/08.

[17Desde 2003, opera-se um crescente boom de fusões e aquisições. Em 2006, registra-se um crescimento de 237% no volume financeiro deste tipo de transação em relação a 2005, totalizando mais de US$ 200 bilhões. Em 2007, se observa um novo recorde, com crescimento de 43% sobre o ano anterior. Apenas nos primeiros cinco meses de 2008, o valor das operações de fusões e aquisições no Brasil atingiu US$ 46,60 bilhões, mais que o dobro do registrado no mesmo período de 2007, resultado que representou 74% do volume total de operações na América Latina. (Folha de São Paulo, 14/03/07; www.kpmg.com.br; Gaseta Mercantil, 06/06/08.)

[18Esta reunião também foi chamada como G-20, apesar de estarem representados 22 países, com a exclusão dos países de menor peso político e económico do grupo anterior com mesmo nome.

[19Dados extraídos do Instituto de Pesquisa Económica Aplicada, órgão do governo; do Departamento de intersindical de estatísticas e estudos económicos, ligado à CUT; do Instituto de estudos para o desenvolvimento industrial, ligado aos sindicatos patronais; e da Revista Exame, Editora Abril, edição espacial “As 500 melhores e maiores empresas do pais” , de julho de 2008.

[20O faturamento das 500 maiores empresas do país, que em 1997 equivalia a 54% do PIB, cresceu progressivamente até alcançar 67% do PIB em 2007. Estas mesmas empresas cresceram de 7,5% de 2006 para 2007, enquanto o conjunto da economia cresceu 5,4%; uma diferença que, em distintas proporções, tem se repetido nos últimos anos. Se consideradas apenas as 10 maiores empresas de capital aberto, a participação de seu faturamento no PIB pula de 6,3% em 1998 para 20% em 2007.

[21“Os fluxos de saída de investimento direto dos países em desenvolvimento começaram a ganhar importância a partir do início da década de 1990. Nos últimos 15 anos, suas taxas de crescimento superam as das nações desenvolvidas. (...) entre 1980 e 2006, a participação das economias menos industrializadas no IDE mundial mais do que dobrou, saindo de cerca de 6% para algo em torno de 14%” . “Brasil Globalizado” , p. 71, Editora Campus, 2008.

[22“Brasil Globalizado” , Editora Campus, 2008.

[23Dados da OIT.

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