Sexta 26 de Abril de 2024

Internacional

Uma ruptura no equilíbrio capitalista mundial?

05 Mar 2003   |   comentários

As contradições na situação internacional, que desde o final do ano pas-sado vinham numa tendência crescente ao acirramento, atingiram um pico de tensão nos últimos dias, frente à iminente ofensiva imperialista norte-americana contra o Iraque. Se na última reunião do CS da ONU, o Secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, foi incapaz de obter um consenso para uma ação militar imediata no Iraque, agora a situação é ainda mais delicada para o imperialismo ianque.
França, Rússia e Alemanha não apenas negaram-se a aceitar os batidos argumentos dos EUA para a guerra, como passaram nos últimos dias à ofensiva diplomática, com as duas primeiras ameaçando seriamente usar seu poder de veto no CS. Esses países têm aproveitado a conjuntura favorável, gerada pelo crescente sentimento antiguerra na opinião pública de todos os países, para fortalecer suas próprias posições no cenário internacional.
Nesse contexto, os esforços em obter uma saída consensual para a guerra parecem cada vez mais frágeis, e fortalecem-se as posições mais duras de lado a lado. Assim, a ala de Bush e Rumsfeld vocifera pelos EUA e pretende avançar em medidas práticas para formar uma “coalizão dos dispostos a guerra” , por fora do CS da ONU, que se pode materializar a partir da cúpula que EUA, Inglaterra e Espanha terão antes da reunião de 17 de março; em contrapartida, Blair se vê cada vez mais isolado em sua tentativa de obter um aval formal da ONU e diminuir as brechas abertas entre os imperialismos. Seu isolamento se reflete claramente nas declarações do chanceler francês, Villepin, de que a proposta britânica não toca na “questão-chave de buscar uma resolução pacífica para a crise” , e de que “a França rejeita essa lógica de guerra, que prevê o estabelecimento de ultimatos” .
Essa postura “intransigente” dos franceses demonstra com tudo a magnitude dos interesses que estão em jogo, e nesse sentido representa centralmente a disputa da França e Alemanha para ocupar um papel mais importante no cenário internacional que se está redefi-nindo após o fim do equilíbrio instável que imperou na década passada. É nesse sentido que o chan-celer alemão Schroe-der afirma: “Junto com nossos amigos franceses, com a Rússia, a China e a maioria do Conselho de Segurança esta-mos mais convencidos que nunca que a eliminação das armas de destruição em massa do Iraque pode ser feita por meios pacíficos” .
Essas declarações, junto com as ameaças da França e da Rússia de usar seu poder de veto, têm levado a uma resposta ainda mais dura por parte da Casa Branca, como nas palavras de seu porta-voz em relação à França: “Se isso não é um veto descabido, o que seria então?” , e suas acusações de que Paris “se alinha a Saddam” .
Porém, essas tensões não se expressam somente nas cúpulas. Os milhões que se manifestaram no dia 15 de fevereiro contra a ofensiva imperialista em inúmeros países do mundo, deram um duro golpe aos planos de Bush e Blair, levando a que até jornais burgueses norte-americanos como o New York Times tivessem de reconhecer que “Bush e sua equipe lançaram as bases para a confusão atual com a maneira arrogante como trataram com outros países e o desprezo que manifestaram em relação a vários acordos internacionais” .
O imenso movimento antiguerra, que continua vivo e organizando novas e maiores ações, e o desgaste sofrido pelos argumentos de Bush a favor da intervenção, é de onde a França e seus aliados de ocasião retiram a força para dar um novo impulso a sua “intransigência” .

Divergências interimperialistas e disputas estratégicas

Esta não é a primeira vez que há uma oposição das principais potencias européias frente à política ditada por Washington. Alguns exemplos anteriores são a crise do canal de Suez no Egito de 1956 e a guerra do Vietnan, que se tornaram eixos de divergências entre os países imperialistas centrais. Porém, em seu momento, estas foram divergências “táticas” , já que se mantinha uma certa unidade entre Europa e Estados Unidos para combater seu inimigo comum, o comunismo.
Com a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética no início da década de 90, os Estados Unidos irromperam como a principal potência mundial que, ao mesmo tempo em que passava a ocupar uma posição de potencia hegemónica sem par na história, canalizou sozinha todas as contradições das situações mundiais, sem ter outra potência com a qual pudesse estabelecer um equilíbrio relativamente estável como o que firmou com a URSS no pós-guerra.
Hoje o que podemos constatar é que o conflito que se abre não é simplesmente tático, mas antes de fundo estratégico e de alcance muito mais profundo que as questões relacionadas ao Iraque ou a Coréia do Norte. Muito além dos interesses imediatos colocados no Iraque, os quais evidentemente têm sua importância, do que se trata de fato é de uma disputa entre as principais potências sobre a posição que devem ocupar num sistema mundial que está por ser redefinido; sobretudo, está por determinar-se o papel que os Estados Unidos ocuparão como liderança mundial no março do desaparecimento do precário equilíbrio dos anos 90, e da forte crise económica mundial atual.
A ofensiva unilateral de Bush inscreve-se, então, neste contexto mais amplo, marcado pela decadência histórica da hege-monia norte-americana e pela ausência de outra potência imperialista que lhe possa disputar, pelo menos a curto e médio prazo, sua posição hegemónica. O conflito atual pode ser o prenúncio de outros mais profundos: de um lado, os EUA procurando transformar seu enorme poderio militar em domínio político absoluto e salvaguardar seu maior instrumento de supremacia económica no mercado mundial, o dólar; do outro lado, as outras principais nações imperialistas, França e Alemanha, e importantes potências regionais como Rússia e China, todas unidas pelo desejo de frear os impulsos mais vorazes do imperialismo ianque, mas com a debilidade estrutural de não ter uma alternativa estratégica capaz de contrapor-se aos planos norte-americanos, e, o que é pior, altamente dependentes destes últimos para sustentar suas economias debilitadas.
No caso da Rús-sia, por exemplo, esta contradição se expressa em que ao mesmo tempo em que necessitam uma maior aproximação com os EUA em seu processo de restauração capitalista, hoje se vêem num alto grau de polarização com os ianques, como na troca de farpas entre o embaixador norte americano em Moscou e o vice-ministro de relações exteriores russo, quando o primeiro afirmou que “Será grande para a Rússia a diferença entre vetar ou se abster” , ao que respondeu o último: “Os parlamentares russos mostraram-se bastante críticos em relação às políticas dos EUA para o Iraque” .
Esta disputa assinala um forte elemento de ruptura do equilíbrio capitalista, pois coloca em xeque as principais alianças e organismos internacionais (OTAN, ONU ) estabelecidos no pós-guerra, e que foram pilares fundamentais para a ordem capitalista nos últimos cinqüenta anos. O fato de que Colin Powell expresse a possibilidade de os EUA atuarem sem nem sequer levar a questão da guerra a votação no Conselho de Segurança da ONU é a maior manifestação da debilidade dessas instituições.

Contradições na Europa

Por toda a Europa, a questão da guerra ao Iraque tem sido o grande motor das polarizações políticas. Nos países beligerantes como Inglaterra, Itália e Espanha, onde as manifestações antiguerra foram especialmente massivas, a opinião pública tem se constituído um grave adversário político aos atuais governos. A posição pró-ianque que adotaram estes países, e que poderia parecer a posição “natural” a ser tomada em relação às ordens do grande “amo” mundial, tem custado caro a esses governos, que agora amargam com um repúdio popular de massas, e têm de se preocupar com uma dificuldade imprevista: equilibrar-se para não cair. O premiê britânico Tony Blair, para dar o exemplo mais agudo, tem enfrentado dificuldades inauditas, não apenas para conter o alvoroço da opinião pública inglesa, mas até mesmo para fazer passar suas posições em seu próprio Partido Trabalhista. É preciso lembrar que Blair assumiu o comando do governo no auge do discurso da “terceira via” , quando tentava camuflar seus severos ataques aos trabalhadores, aposentados e imigrantes com uma retórica “social” . No entanto, por mais que a realidade das discrepâncias sociais no Reino Unido tenha entrado em choque com seus belos discursos há tempos, ninguém poderia imaginar que o “novo trabalhismo” pudesse ir tão longe em seu rumo a direita, a ponto de empalmar com o discurso arqui-reacionário dos mais conservadores republicanos ianques. A crise no trabalhismo, que vinha se expressando por baixo em conflitos nos sindicatos, agora toma proporções nacionais, podendo levar a reconfigurações importantes na classe operária britânica.
Por outro lado, governos mais abertamente direitistas como o de Berlusconi na Itália ou Aznar na Espanha também têm tido dificuldades em contornar a insatisfação popular, aumentada em função do apoio a guerra. Estes países foram os únicos em que o movimento anticapita-lista e antiglobali-zação póde prosseguir, mesmo após a onda de perseguições políticas que seguiu o 11 de setembro, e onde conseguiu até mesmo avançar em obter apoio popular e, em certa medida, operário. Agora, tem de enfrentar-se com um descontentamento acirrado pelas ultimas manifestações anti-guerra, que levaram, por exemplo, um setor das Forcas Armadas espanholas a publicar um manifesto contra a guerra.
Mas não é apenas nos países diretamente envolvidos com a ofensiva de guerra que as contradições se acumulam. A Europa do leste é, uma vez mais, um enorme ponto de encontro de tensões políticas. A região, que esteve durante a chamada Guerra Fria sob a égide militar e política da URSS, depara-se hoje com uma nova encruzilhada histórica. Por um lado, têm como objetivo mais ou menos imediato a rápida incorporação a União Européia, sem o que estariam fadados a ocupar uma posição marginal e extremamente frágil no continente, isoladas do potencial comercial desenvolvido através da UE. Por outro lado, no entanto, tem interesse em mostrarem-se dóceis a política norte-americana. A aproximação entre as duas potencias que cercam a região, Alemanha e Rússia, e o potencial de crescimento que pode haver para elas no próximo período, faz com que as populações do leste recordem os piores momentos de sua história recente. Daí surge a enorme pressão para apoiar um aliado mais forte e, por assim dizer, mais distante. Essas são as tensões que explicam a postura contraditória dos governos desses países em relação ao conflito atual.
É neste março que se podem entender os vaivens da Turquia, que se dispós a ceder seu território para a campanha militar dos EUA, depois tensionou em relação as condições económicas que exigia em troca desta concessão, além de demandar proteção militar de seu território garantido pela OTAN, que na semana passada teve uma disputa duríssima no parlamento que quase retrocedeu da sinistra transação com o imperialismo norte-americano.

Momentos decisivos

Em vista de todos estes elementos, concluímos que os próximos dias serão de momentos decisivos. As formas segundo as quais podem se definir a guerra do Iraque tem uma enorme importância não só para os planos militares dos EUA, sobretudo frente à eventualidade de que a guerra se prolongue, mas acima de tudo para a possibilidade de estabilização na região, no caso de ter êxito em sua empreitada de derrubar Saddam Hussein.
Sem a aprovação da ONU, com uma forte oposição de seus competidores imperialistas e de um potente movimento antiguer-ra, a empreitada de Bush pode acabar lhe custando caro demais, e de um plano ofensivo para reafirmar a hegemonia norte-americana, pode converter-se em seu contrário, isto é, num acelerador para a declinação histórica de sua liderança.
Recém iniciado o novo século, o movimento operário e de massas pode ter um terreno muito favorável para sua intervenção, se puder aproveitar as enormes brechas que se abrem em meio a disputas assim abertas entre as burguesias imperialistas.
As ações revolucionárias das massas latino-americanas, que tiveram na Bolívia sua expressão mais recente, podem alcançar um novo patamar neste contexto, e obter vitórias revolucionárias superiores as jornadas argentinas de dezembro de 2001.

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