Domingo 28 de Abril de 2024

Cultura

Resenha sobre Convoque seu Buda, de Criolo

16 Nov 2014   |   comentários

Na noite de segunda-feira, dia 3 de Novembro, sem alarde ou aviso prévio, Criolo lançou seu terceiro disco de estúdio, Convoque seu Buda, e finalmente acalmou os ânimos daqueles que esperavam por isso há um bom tempo, desde o estouro do Nó na orelha de 2011.

Na noite de segunda-feira, dia 3 de Novembro, sem alarde ou aviso prévio, Criolo lançou seu terceiro disco de estúdio, Convoque seu Buda, e finalmente acalmou os ânimos daqueles que esperavam por isso há um bom tempo, desde o estouro do Nó na orelha de 2011. Antes disso, Criolo (ainda usando “Doido” como sobrenome) era apenas mais um rapper da periferia de São Paulo ignorado pela grande mídia e que passava despercebido das grandes gravadoras e produtores musicais. Mas apesar do descaso intencional desse “mainstream”, Criolo já lotava a Matilha Cultural e sarais na periferia de São Paulo, com as músicas reunidas em seu primeiro disco, Ainda há tempo, que são na verdade só algumas das tantas faixas “antigas” que Criolo coleciona ao longo desses anos.

Produzido novamente por Daniel Ganjaman (Otto, Sabotage, Nação Zumbi) e Marcelo Cabral (baixista, também do MarginalS, do Passo Torto e do Rodrigo Campos, produtor do MC Sombra, além um dos grandes nomes da nova cena musical paulistana), o novo trabalho de Criolo conta com as participações de Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Tulipa Ruiz, grupo Síntese, e Rodrigo Campos. Foi mixado por Mario Caldato Jr. masterizado por Robert Carranza, em Los Angeles, junto de Money Mark - produtor e colaborador dos Beastie Boys.

Este terceiro disco vem para cravar o nome de Criolo como um dos mais importantes nomes da atual música brasileira, sendo Criolo um dos responsáveis pelo surgimento e certo reconhecimento que dá “estrutura” para toda uma “nova” geração da música em São Paulo e no Brasil, especialmente o grupo de amigos (a maioria paulistas) que vem balançado as bases da música brasileira, composto por Marcelo Cabral, Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Romulo Fróes, Criolo e Rodrigo Campos. “Nova” geração entre aspas, pois existem artistas aí que estão há muitos anos na estrada, renegados aos shows em que precisam carregar caixas nas costas e lona pra cobrir o palco; enquanto que “estrutura” coloco também entre aspas, pois, hoje, num meio onde a maior parte dos investimentos governamentais continuam indo para os mais ricos artistas do país - da turma de Zezé di Camargo e Luciano – e onde o mundo democratizante da internet quebrou a venda milionária de discos, o que resta, mesmo para os artistas mais destacados, é fazer shows nos Sescs e nos bairros, juntando aqueles mais próximos e somando esforços. Pouco para a grandiosidade das músicas e do conteúdo dessa mistura entre artistas de alto nível, além de grandes produtores mundiais envolvidos. E não se restringe à São Paulo, músicos do Rio de Janeiro e Nordeste passam pelo mesmo processo, como Wado, Momo, China, Mombojó, etc. Essa condição da nova geração musical no Brasil parece ficar ainda mais contraditória quando esses artistas, como Criolo, encontram mais espaço nos eventos promovidos em outros países do que nos daqui, assim como grande parte da geração mais importante da MPB, de Chico, Caetano, Gil e Tom Zé.

A analogia com os grandes da MPB não é coincidência. É onde Criolo deve residir. Ele é um dos que hoje dão continuidade a essa linha, com sua capacidade de se renovar e voltar a ser atual. Pois para renovar a música popular que só o Brasil tem condições de fazer, é preciso ser subversivo, e Criolo, vindo da periferia de São Paulo, tem toda a revolta necessária para tirar a MPB das musicas blasês que sua antiga geração hoje se afunda e recolocá-la como musica de protesto e resistência, assim como foi nos anos de chumbo da ditadura. Não é menor a letra que Criolo fez a partir de Cálice, do Chico, e que este também cantou em homenagem à Criolo.

Convoque seu Buda pra lutar

Convoque seu Buda abre suas cortinas deixando claro de onde vem: “Aqui não é GTA/ É pior, é Grajaú”. É de quebrada. É do RAP. Criolo sabe de onde vem, e que deve toda sua critica social à sua origem de classe. Pois “cada maloqueiro tem um saber empírico”. Por este motivo a primeira faixa de seu CD não podia deixar de estar na linha do Hip-Hop, em suas batidas, rimas e samples. Essa é a origem de Criolo, e onde a todo o momento sua música retorna para que possa aprofundar suas imersões em outros estilos musicais, como samba, afrobeat, soul, maracatu e reggae, presentes neste cd. “Meu lado África aflorar, me redimir” é parte do que Criolo busca, pois a cada faixa, seu caminho é a música negra, o fortalecimento de uma cultura que foi excluída dos livros de história e da arte brasileira, mas que na realidade é toda a origem de nossa verdadeira identidade.

Para convocar o Buda de cada um, Criolo destaca sua espiritualidade, mas que no fim das contas, acaba por negar qualquer limitação conservadora, social e política, que a religião possa trazer, e na verdade luta pela total liberdade religiosa contra aquelas camadas do cristianismo que oprimem as religiões “não dominantes”, e em destaque, as religiões negras como o Candomblé e a Umbanda. Usa a espiritualidade para lutar, pois “Toda noite alguém morre/ Preto ou pobre por aqui”, e o pedido que Criolo faz aos deuses de todas as religiões (Oxalá, Shiva, Ganesh, Zé Pilim) é que “Daí equilíbrio ao trabalhador que corre atrás do pão/ é humilhação demais que não cabe nesse refrão”. A espiritualidade de Criolo serve à luta cotidiana do povo pobre da periferia, e é pra isso que ele convoca todos os Budas.

Criolo e o Lulismo

Criolo passou por um processo político e econômico que transformou objetivamente e subjetivamente o país: o Lulismo. O governo do PT gerou ilusões profundas na classe trabalhadora, e consequentemente na produção artística do Brasil. Enquanto no país de FHC e do desemprego, na década de noventa, a periferia produzia um rap revoltado e extremamente contundente para a luta de classes, com destaque para Facção Central e o mais importante grupo musical do rap brasileiro, Racionais MCs. Porém, já nos anos 2000 de Lula e da redução do desemprego através do trabalho precário, como nos canteiros de obras do PAC, ou nas cabines de telemarketing, o salário mínimo e as poucas melhoras nas condições de vida, principalmente através do crédito que suportou o crescimento Brasileiro, já foram suficientes para mudar a subjetividade do explorado e oprimido e gerar uma produção artística da periferia que, apesar de ainda ter muitos traços de luta política em todos os estilos musicais, criou condições para que os bailes funks machistas e de ostentação sejam hoje os shows que atraem milhares de jovens trabalhadores nos sábados à noite, diminuindo então a influencia do hip-hop e das músicas de caráter político nas favelas.

Talvez por isso, não seja exatamente a quebrada que lote os shows de Criolo no Sesc Vila Mariana. Seu estilo musical, com um RAP mais “instrumentalizado”, com mais groove, e também suas tantas imersões em outros gêneros musicais, além das letras diferenciadas, servem para fazê-lo dialogar com a classe média paulistana como poucos rappers conseguiram até hoje. Se fosse um RAP mais “clássico”, ao estilo Eduardo ex-Facção Central, Criolo encontraria ainda algum pequeno reduto nas quebradas, como Eduardo encontra e consegue fazer shows apenas para quem é da periferia, como é sua intenção política. Mas Criolo sabe que, apesar “dos seus” também o ouvirem, principalmente em sua casa, o Grajaú e a Zona Sul de SP, ele atraí “outros ouvidos”, nem tão negros, nem tão de quebrada, e que trazem, portanto, outros desafios ao artista. Para mim, o desafio que Criolo topou é: erguer alto as bandeiras da favela, e reapresentar a música negra e política para um Brasil que cada vez mais a esquece. Até mesmo o funk, gênero musical vindo dos guetos pretos, é hoje embranquecido no Brasil, e serve de base para a onda de “musica de ostentação” que passamos.

Mas Criolo não se envolve na ostentação, pelo contrário, a combate. Sabe que é uma ideologia que não pertence à sua classe, e que a verdadeira ostentação só existe se for de uma vida digna para todos. Afirma que “hoje não tem boca para se beijar/ não tem alma pra se lavar/ não tem vida pra se viver / mas tem dinheiro pra contar”, e classifica esta vida (não-vida) de “céu na boca do inferno esperando você”, num dos melhores refrãos de sua carreira, na segunda música do disco, “Esquiva da esgrima”, que é uma das faixas deste disco que se aproxima da sua obra-prima “Não existe amor em SP”, inigualável até agora (e amplamente usada nas manifestações de Junho e na campanha de cultura “Existe amor em SP”, de Haddad para a prefeitura paulista). A qualidade de Convoque seu Buda está na obra completa, na relação entre suas faixas.

Para cumprir o desafio de cantar para tantas pessoas diferentes, uma das táticas de Criolo, mesmo que não intencional, mas talvez “natural”, é citar diversos clássicos do RAP que o influenciaram, como Trilha Sonora do Gueto, Rappin Hood, Facção Central e Dina Di, no disco anterior e agora Ferrez, Black Alien e, principalmente, Sabotage, que aparece diversas vezes ao longo de sua carreira, como influência maior. Isso pode levar muita gente da classe média, e principalmente, da nova geração da periferia, a conhecer os clássicos do RAP brasileiro, necessários para o desenvolvimento critico de qualquer um. Criolo pede que levem sua música pra frente, na faixa “Pegue pra ela”, pois a música de Criolo é militante e política, e deve ser popularizada.

Criolo depois de Junho de 2013

Criolo apresenta um grande repertório de letras extremamente atualizadas, que citam diversas vezes as manifestações ocorridas em Junho ano passado, as desocupações da polícia no centro da cidade, e até as greves de Maio deste ano. Cita ainda os rolezinhos, a discussão de cotas, os protestos contra a Copa do Mundo e clama pelo salário mínimo do DIEESE. Em referência à arma de destruição em massa que é o Crack e a especulação imobiliária que promove a higienização social do centro, Criolo canta “Casa de papelão”. Logo em seguida, Criolo nos chama no samba de partido alto sobre a greve dos rodoviários de SP.

Em um CD tão “pós-Junho”, Criolo ainda passa por “Pé de breque”, um Raggae que pede licença aos Rastafáris para defender a legalização da maconha e o respeito à sua cultura. Passa, junto da monstruosa banda Síntese, pela música mais “Criolo Doido” do álbum - em ritmos que se aproximam das músicas de Emicida - “Plano de Voo”, que parece ser algo como o processo produtivo do próprio Convoque seu Buda, contendo as diversas reflexões que o cd envolve em geral. “Duas de cinco” é o rap que completa o álbum antes de seu gran finale, “Fio De Prumo (Padê Onã)”, uma mistura precisa do que o disco se propõe: vindo de guitarras, atabaques, sopros, percussão, baixo, teclados, e toda uma composição musical de alta complexidade da música negra, Criolo encerra seu trabalho com Juçara Marçal (da banda Meta-Meta) usando seus cantos de umbanda para “abrir os caminhos”, “tombar o mal de joelhos” e deixar Criolo passar com seu Ogó, instrumento de Exú, orixá cheio de mandinga, orixá da comunicação entre o mundo espiritual e material, visível e invisível, e no caso de Criolo, o mundo visível das “festas de gala” e o mundo invisível do “garoto do Buffet”, o mundo do opressor e o mundo do oprimido.

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