Terça 7 de Maio de 2024

Movimento Operário

Reflexões sobre o papel do Exército na formação do Estado semi-colonial brasileiro

10 Oct 2006   |   comentários

O presente artigo se insere no marco do processo de elaboração ora em curso das Teses Fundacionais da LER-QI, nas quais estamos buscando, a partir de uma combinação entre o resgate das melhores tradições do movimento operário brasileiro e a crítica das principais correntes de pensamento político-social do país (ligado ao mesmo movimento que como parte da FT-QI fazemos no patamar internacional), abrir com a vanguarda um debate acerca das bases teóricas, programáticas e estratégicas para a construção de um partido revolucionário no Brasil.

Nas últimas edições do jornal Palavra Operária, temos resgatado parte da tradição da Liga Comunista Internacionalista, organização trotskista que na década de 1930 assentou ’ tanto do ponto de vista prático como teórico ’ importantes bases para a construção de um partido revolucionário no país. Lamentavelmente, essas bases não são reivindicadas nem mesmo pelas atuais correntes políticas que se reivindicam trotskistas, como por exemplo, o PSTU; ainda que, de maneira oportunista, intelectuais da esquerda se apóiem em definições teóricas essenciais acerca da formação do capitalismo no Brasil que os trotskistas da LCI forjaram na década de 1930 sem, entretanto reivindicá-los (e infelizmente nisso contam com a cumplicidade de militantes que se reivindicam trotskistas).

Neste artigo, compartilhamos com a vanguarda algumas reflexões sobre os militares no Brasil, mais especificamente sobre o papel do Exército na chamada “República Velha” (1889-1930) .

O papel do Exército na formação do Estado semi-colonial brasileiro.

Em O Estado e a Revolução, Lênin, apoiando-se em Engels, define o Estado fundamentalmente como uma manifestação das contradições inconciliáveis da luta de classes e como o instrumento de opressão de uma classe sobre a outra. E como segundo traço fundamental do Estado, Lênin aponta a formação de “destacamentos armados separados das massas” , como um dos instrumentos centrais para garantir a dominação de classe.

Em Estados como o Brasil, de desenvolvimento atrasado em relação às potências européias e norte-americana, as classes dominantes assim como seus “destacamentos armados separados das massas” , desenvolvem-se em condições atreladas e permanentemente alteradas pelos países imperialistas. A este tipo de Estado chamamos de Estado semi-colonial. Um Estado semi-colonial é um Estado formalmente independente dos países imperialistas do ponto de vista das instituições políticas que o governam apesar de que subordinado a estas mesmas potências através de relações de dependência económica e de pactos e acordos políticos internacionais.

O período conhecido como “República Velha” no Brasil caracteriza-se por uma transição. O período anterior era marcado por uma formação económica baseada fundamentalmente na agro-exportação, relações de produção baseadas sobretudo na escravidão, e instituições políticas ligadas a esta estrutura social prevalecente ao longo do período Colonial. Durante a “República Velha” (1889-1930) se gesta uma estrutura social propriamente capitalista, baseada na mão de obra assalariada, desenvolvimento incipiente de um mercado interno e da indústria, o que corresponde ao questionamento e transformações das velhas instituições políticas.

Assim como a República Velha é marcada pelo surgimento e desenvolvimento de uma burguesia industrial e de um proletariado incipientes, as transformações que o Exército passa estão intimamente ligadas a este processo.

Neste artigo defendemos a hipótese de que o exército já na República Velha passou a assumir crescentemente o papel de instrumento e agente do imperialismo no país, assim como surgiram as primeiras doutrinas e preparações técnicas nas quais o Exército vai se profissionalizar como instrumento de repressão interna ao proletariado e às massas oprimidas.

A importância desta hipótese reside, em primeiro lugar, que os operários são educados a confiar que o Exército é uma instituição “patriótica, democrática e a serviço do povo” . Está é uma mentira que é tarefa dos revolucionários combater. Mas este não é o único motivo. Uma boa parte da história ensinada nas universidades e pelas correntes políticas da esquerda está repleta de falsidade. O partido comunista, que foi a corrente política mais importante do movimento operário até o golpe de 64, incluindo seus militantes e inúmeros intelectuais simpatizantes, escreveram uma história na qual o Exército aparece como “patriótico” . Essa deturpação da história está a serviço de justificar a estratégia do partido comunista de buscar uma aliança com um setor supostamente “progressivo” ou “nacionalista” da burguesia (que teria seu correspondente dentro do Exército) para o “desenvolvimento nacional” .

Ou seja, a demonstração da hipótese que o Exército já na sua origem é um instrumento da dominação imperialista está intimamente ligada à luta encarniçada entre trotskismo e stalinismo que tem seu início já no fim da década de 20.

A “Missão Alemã” , os “jovens turcos” e a revista A Defesa Nacional

Apesar de que desde o início do século XIX era a Inglaterra quem tinha hegemonia económica sobre o Brasil, desde a Guerra do Paraguai (1865 ’ 1870) os alemães mantinham relações com o Exército brasileiro, que se traduzia na visita de oficiais ao exército alemão. A partir de 1896, a França entra na disputa interessada em oferecer canhões ao exército brasileiro.

Na citação a seguir, de 1908, o ministro francês dos negócios estrangeiros em discussão com o ministro da guerra de seu país, demonstra as disputas existentes entre França e Alemanha para influenciar o exército brasileiro, e por esta via conquistar mercados para suas respectivas burguesias:

“Com efeito, não preciso vos assinalar todas as vantagens que a Alemanha retira, para a manutenção do seu prestígio militar no Brasil, com a presença desses oficiais (estagiários brasileiros) em seus regimentos. Quando eles voltam à pátria, retornam totalmente imbuídos de uma admiração exclusiva pelos chefes do exército imperial, pelos seus métodos estratégicos, pelo material empregado na Alemanha, e também totalmente penetrados pela cultura germânica, da qual se farão daí em diante, e às vezes, mesmo inconscientemente, propagandistas entre seus compatriotas. Por outro lado, relações de amizade se estabelecem entre os estudantes e os antigos instrutores, relação que estes últimos sabem utilizar maravilhosamente em favor da indústria alemã.”

Em 1906, 1908, e 1910 foram enviadas três turmas de oficiais à Alemanha. Ao retornarem estes oficiais que ficaram conhecidos como “jovens turcos” e fundaram, em 1913, uma revista chamada A Defesa Nacional na qual traduziam obras de militares alemães e difundiam seu sistema de treinamento, práticas e costumes, e escreviam textos enaltecendo o Exército e a indústria bélica alemã. Esta revista chegou a ter uma importância maior do que o Boletim do Estado-Maior do Exército, órgão oficial do Exército .

No editorial do primeiro número da revista A Defesa Nacional, os jovens turcos já começam a delinear a estratégia que, com o fortalecimento do proletariado, viria a balizar a ação do Exército para com o proletariado e o movimento comunista:

“O Exército precisa estar aparelhado para sua função conservadora e estabilizante dos elementos sociais em marcha e preparado para corrigir as perturbações internas, tão comuns na vida tumultuária das sociedades que se formam.”

Entre 1916 e 1917 o exército participa pela primeira vez de instituições políticas em comum com os setores nascentes da burguesia. Em 1916 é criada a Liga de Defesa Nacional e no ano seguinte surge em São Paulo a Liga Nacionalista, dentre os objetivos destas instituições se incluíam “propagar a instrução primária, profissional, militar e cívica; defender, com a disciplina, o trabalho.” Naturalmente, “defender a disciplina do trabalho” entende-se como combater as agitações operárias.

A “Missão Francesa”

Com a eclosão da 1ª Guerra Mundial e a resolução deste conflito entre a França e a Alemanha a favor da França, aqui no Brasil a anterior relação privilegiada entre os exércitos brasileiro e alemão vai dar lugar ao que ficou conhecido como a “Missão Francesa” . Esta missão veio a unificar vários setores que defendiam transformações para uma maior equiparação do Exército brasileiro aos imperialistas, inclusive os antigos “jovens turcos” . A revista A Defesa Nacional passou a editar artigos a favor da presença dos militares franceses, e mesmo admiradores do modelo alemão foram aplicados alunos da missão francesa.

A Missão Francesa, iniciada em 1918, teve um caráter mais profundo que a anterior, pois significou o envio de vários oficiais franceses ao Brasil para ministrarem na escola de oficiais brasileira e participarem diretamente de um profundo processo de reestruturação de Exército brasileiro. Esta reestruturação incluía a criação de uma “doutrina de guerra” que excluía a possibilidade de uma guerra contra as grandes potencias imperialistas; a preparação das bases para a guerra interna contra o “inimigo comunista” até a constituição de um Estado-Maior coerente com estes objetivos estratégicos; e o desenvolvimento de uma indústria siderúrgica no país que garantisse o fornecimento de materiais bélicos elementares para o Exército (neste período todo o material bélico do Exército era adquirido no exterior). Aqui também verificamos os objetivos económicos que acompanhavam os objetivos militares do Exército francês, como consta no relato do adido militar deste país:

“a influência militar a se conquistar em um País ainda na infância, mas destinado ao mais belo futuro, e onde nós procuramos, por outro lado, conquistar posição na área económica, vale alguns sacrifícios que nós podemos esperar produtivos futuramente.”

Alguns mitos e verdades acerca do “movimento tenentista”

O movimento tenentista compreende uma série de rebeliões protagonizadas por oficiais de baixa patente ao longo da década de 1920. Dentre as mais importantes, podemos destacar a rebelião de Forte de Copacabana em 1922; as rebeliões que ocorreram em vários estados do país em 1924 (neste ano, os rebeldes chegaram a tomar a cidade de São Paulo por quase um mês); e a coluna Prestes’Miguel Costa, que, formada por cerca de 1.500 homens, percorreu o país por mais de 25 mil Km de 1925 até 1927, quando atravessa a fronteira da Bolívia após ter derrotado todas as tropas oficiais, de mercenários e de jagunços que foram enviadas para destruí-la por parte do Presidente mineiro Artur Bernardes e das oligarquias dos estados pelos quais passavam.

O movimento tenentista teve um caráter extremamente heterogêneo. Em sua “extrema esquerda” , encontravam-se os setores que posteriormente viriam a conformar a ala minoritária que romperia com Prestes e se ligariam ao Partido Comunista. Em sua “extrema direita” , encontravam-se os setores que posteriormente viriam a se vender às oligarquias de Minas e do Rio Grande do Sul frente ao “golpe-revolução” de 1930. Essa heterogeneidade se expressa na polarização entre, por um lado, a medida extremamente progressiva adotada pelos rebeldes que ao tomaram a cidade de Manaus expropriaram o matadouro de propriedade inglesa e o entregaram à municipalidade; e, por outro lado, às declarações reacionárias de Juarez Távora, um líder tenentista que posteriormente viria a ser um dos militares mais pró-imperialistas do país:

“A história não cita, como regra, exemplos de vitoriosos, em que a força armada tenha precedido o povo ou pelo menos com ele fraternizado, no momento de pugnas decisivas. E essa interferência benéfica das forças armadas não se tem limitado apenas a permitir ao povo descartar-se de seus tiranos: tem valido no meio de desordens generalizadas que caracterizam estas desordens sociais, como escudo protetor da nação contra os excessos da indisciplina popular. A França de [17]89 e a Rússia de nossos dias pagaram tributos caríssimos de sangue à sede de vingança das massas oprimidas, enquanto o delírio da demagogia se não submeteu à influência moderadora do elemento militar. E quem, entre nós, seria capaz de prever as últimas conseqüências da subversão social criada pelo predomínio incontrastável do populacho?”

O movimento tenentista nunca chegou a ter uma relação orgânica com o movimento de massas. Apesar de que amplos setores populares tinham uma relação de simpatia com o movimento. Nos casos de São Paulo e do Rio Grande do Sul, a relação dos tenentistas com setores da oligarquia que se encontravam na oposição ao governo do estado foi chave para a relação de simpatia que se estabeleceu entre o movimento e as massas populares. Juarez Távora explicita o caráter elitista e anti-democrático de um setor do movimento tenentista, que dava monstruosos passos atrás em relação às conquistas democráticas formais que a burguesia tinha minimamente proporcionado às massas na Europa e nos EUA: “Se a adoção de um outro desses dois alvitres (processo eleitoral na mão dos juízes ou tribunal especial) não bastar para restringir a um limite razoável, as adulterações de nosso regime representativo, melhor será proscrever provisoriamente o sufrágio universal, substituindo-o por uma restrita, mas conscienciosa, elite eleitoral.” Ainda que esta concepção não abarcasse o conjunto do movimento, de forma alguma significava uma voz isolada .

Em 1930, após exílio de mais de dois anos nos países da fronteira sul, a maior parte do dos “heróis” do movimento tenentista vergonhosamente se venderam às oligarquias do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, em troca da anistia e de promessas de ascensão na carreira militar . Getúlio Vargas chegou a oferecer o posto de chefe das “forças revolucionárias” a Luis Carlos Prestes. Mas este recusou. O cargo então foi entregue a Góes Monteiro, um exemplar aluno da Missão Francesa, sendo que a revista A Defesa Nacional e os jovens turcos colocavam-se abertamente contrários ao movimento tenentista, e Góes Monteiro foi o chefe responsável pelas tropas que reprimiram os tenentistas. João Alberto, líder tenentista e futuro cão de guarda de Vargas, referindo-se às críticas de Prestes, explicita sua espúria capitulação:

“Havia algo de verdade no que ele dizia. Estávamos de mãos dadas com nossos adversários da véspera, os inimigos da coluna, e não podíamos esperar deles muita coisa. O próprio doutor Artur Bernardes, contra quem havíamos lutado durante anos, proclamava-se agora revolucionário ardoroso em Minas Gerais. Evidentemente, aquela não a nossa revolução, mas que fazer?”

O Exército e a “revolução” de 1930

A “interpretação” stalinista de que a “revolução de 1930” foi dirigida por um pacto entre a burguesia industrial e as classes médias (que teriam como sua expressão política o tenentismo) está a serviço de “criar” um Exército e uma burguesia “progressista” que nunca existiram na realidade.

Tanto os trotskistas na década de 30 assim como diversos intelectuais posteriormente, já demonstraram abundantemente que as burguesias do Rio Grande do Sul e Minas Gerais atuaram de forma subordinada às oligarquias agrárias de seus respectivos estados e, que as burguesias de São Paulo e Rio de Janeiro se colocaram contra os “revolucionários” em um primeiro momento. Mas este não é o tema deste artigo.

No que diz respeito ao Exército, com os argumentos que colocamos acima, queremos aportar para uma nova interpretação da história, pois para nós contém fortes indícios de que o pacto de Vargas com o Exército se deu através da relação com os jovens oficiais ligados à Missão Alemã e à Missão Francesa, e os “tenentes vendidos” . Esta interpretação é radicalmente oposta a que historicamente tem sido difundida pelo Partido Comunista e seus simpatizantes que sempre buscaram criar um fetiche “romântico” ao redor do movimento tenentista de modo a enaltecer a origem de Prestes e justificar suas capitulações ao Exército em geral e especificamente aos governos de Vargas pós 1930, excetuando o curto período ultra-esquerdista que marcou a Intentona Comunista de 1935.

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Assim como a “interpretação” stalinista da história está a serviço de justificar a sua estratégia de conciliação de classes, mesmo que para tal cheguem a mentir e deturpar a realidade, a reflexão que abrimos neste artigo, ao aproximar-se da realidade concreta contribui para fundamentar historicamente o que nós trotskistas chamamos de a teoria da revolução permanente.

A necessidade da burguesia brasileira de desde sua origem se subordinar à burguesia imperialista para minimamente desenvolver-se também se observa em instituições como o Exército; e essa subordinação está indissoluvelmente ligada a uma política anti-operária. Por isto acreditamos que é uma utopia reacionária a estratégia de buscar a conciliação com uma burguesia “progressista” e um exército “patriótico” para o “desenvolvimento nacional” . E esse é um dos fundamentos centrais sobre os quais se apóia nossa convicção de que só a classe operária arrastando atrás de si as massas pobres da cidade e do campo e em luta encarniçada contra o imperialismo e seus agentes nacionais pode resolver os problemas estruturais do país.

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