Sexta 26 de Abril de 2024

Cultura

O Cheiro do Ralo: dura vida

29 Apr 2007   |   comentários

A VIDA É DURA! Essa é a frase que Lourenço repete cotidianamente para seus clientes. Lourenço é um comprador de peças usadas e diz isso para justificar aos clientes as injustiças que ele próprio comete. Falamos aqui de Lourenço, a personagem principal interpretada por Selton Melo no filme O Cheiro do Ralo, em cartaz nos cinemas brasileiros.

O roteiro, baseado em livro com o mesmo nome do filme, esmiúça a tendência de reduzir nossas paixões, nossas relações, nossos objetivos e nossa vida em coisas. Lourenço, não ama ninguém. Ele ama a bunda, que por um acaso está no corpo de uma garçonete cujo nome ele não consegue, e sequer tenta, pronunciar. Em seu cotidiano, que acompanhamos preenchido de um tédio repetitivo, Lourenço recebe gente falida, decadente, em busca de algum dinheiro pelos objetos mais queridos e encontram um comprador cruel que usa seu pequeno poder para humilhar e diminuir quem precisa de ajuda. “Hoje eu sou mais eu” , pensa Lourenço enquanto dispensa mais um cliente, carregando pela enésima vez uma pesada peça que lhe curva as costas.

Nessa jornada cotidiana, assistindo a quase total ausência de humanidade em Lourenço, às gargalhadas nervosas, um mal estar preenche o espectador. Se reconhecer nas mais sórdidas observações de Lourenço, em seus desejos mais vazios de conteúdo, desperta uma reflexão profunda sobre nossas relações com as pessoas e coisas em nosso próprio dia-a-dia. Talvez esse seja o maior mérito de O Cheiro do Ralo. Uma comédia que, no barco das gargalhadas maldosas, leva o espectador a um tortuoso e difícil trajeto, lembrando-nos da facilidade em amar as coisas e das dificuldades em se aproximar das pessoas que nos cercam.

Uma vida sem cor

Rompendo com os traçados sombrios à tinta nanquim de seu último filme, o diretor Heitor Dhalia, opta em O Cheiro do Ralo por tons pastéis e cores desbotadas, transmitindo com fidelidade a desimportância de tudo que se passa na vida de Lourenço. A câmera, quase sempre dentro do olhar das personagens, enfoca os pequenos detalhes medíocres. As músicas, sempre com um tom de desleixo e as interpretações, bastante livres é verdade, trazem uma linha comum de não irem aos extremos emocionais dos dramalhões, tão conhecidos nas novelas globais. Tudo na estética ”˜do cheiro”™ remete a um cotidiano sem sobressaltos, a uma repetição sem novidades, em que as mudanças quase não acontecem, e quando acontecem, já não importam mais.

A interpretação de Selton Melo é impecável. Lourenço, em sua mais pura escrotidão, não fica irreal e não se torna um vilão novelesco. Ao contrário, a armadilha do filme é justamente o carisma que Selton imprime na personagem, sem o qual, seria fácil demais sair do cinema tranqüilo. O Lourenço que nos apresenta é um pouco de nós, o pior de nós, aquilo não que queremos ser. Por isso rimos de nós mesmos e choramos com nossa desgraça.

O olho de quem vê

Certamente, mais de uma opinião é possível para diferentes espectadores. Há no roteiro um niilismo que pode levar os mais despreparados a um beco sem saída na reflexão. Aos leitores de Palavra Operária, e a quem escreve este texto, cientes de que a decadência na vida de Lourenço é um aspecto dos mais feios da decadência do capitalismo, que tira o sentido e aliena a todas as coisas, o filme serve para repensar a nós mesmos e o mundo que nos cerca. Algo da tragédia de Lourenço deve acompanhar o espectador nos dias posteriores ao filme e talvez torne os nossos olhos um pouco mais atentos ao cotidiano.

Artigos relacionados: Cultura









  • Não há comentários para este artigo