Sexta 26 de Abril de 2024

Questão negra

Entrevista sobre racismo nos EUA

03 Dec 2014 | Por ocasião dos acontecimentos em Ferguson, nos EUA, o programa de rádio Pateando El Tablero impulsionado pelo PTS contou com a visita do historiador Pablo Pozzi, titular da cátedra de História dos Estados Unidos na Universidade de Buenos Aires, para conversar sobre o passado e o presente do racismo nos EUA. O Palavra Operária reproduz aqui alguns trechos dessa entrevista, que dividimos em duas partes. A seguir, publicamos a segunda parte. As opiniões nesta entrevista refletem a posição do historiador e não as nossas inteiramente.   |   comentários

Após intercambiar alguns dados que demonstram o racismo e as penúrias que vivem os afrodescendentes, imediatamente surgiu o tema sobre o atual presidente dos EUA, Pozzi levantou “isso nos leva a uma questão que tem a ver com algo que foi promovido e que evidentemente é falso: o tema de Obama como presidente negro. Até onde o Obama é negro? Bom uma das coisas que ficaram mais ou menos claras é que mais de 70% dos afroamericanos expressam em distintas (...)

*Pablo Pozzi é docente titular da Cátedra de Historia dos Estados Unidos na Faculdade de Filosofia e Letras da UBA.

Após intercambiar alguns dados que demonstram o racismo e as penúrias que vivem os afrodescendentes, imediatamente surgiu o tema sobre o atual presidente dos EUA, Pozzi levantou “isso nos leva a uma questão que tem a ver com algo que foi promovido e que evidentemente é falso: o tema de Obama como presidente negro. Até onde o Obama é negro? Bom uma das coisas que ficaram mais ou menos claras é que mais de 70% dos afroamericanos expressam em distintas pesquisas que não têm confiança nesse presidente chamado negro. Isso é muito interessante porque para uma quantidade de gente que é de direita o problema com o Obama é justamente que ele é negro e que porque é negro e muçulmano, etc... Mas para os negros, Obama é um ’Oreo’, ou seja, uma bolacha de chocolate por fora e branca por dentro... Se diz assim, palavra, expressão muito feia que se utilizava bastante nos Estados Unidos". Agregando ainda que "outra candidata forte era Hillary Clinton. Que a classe dominante norteamericana prefira um presidente negro à uma mulher é interessante como sintoma a longo prazo e diz coisas em termos da sociedade norteamericana para o futuro.”

Mitos e realidades

A desmistificação sobre alguns atos também permeou a entrevista: “Ferguson em Missouri é uma área de fronteira, mas os motins (por Mike Brown) e os problemas de discriminação racial ocorrem em todo o país. Nossa imagem em geral é que o sul é racista e o norte é ‘bonito’. Na pratica lugares como Indiana ou Binghampton em Nova York foram grandes sedes da Ku Klux Klan. A milícia paramilitar pro-nazi e racista é maior em Michigan, não no Alabama. O deputado democrata pela Califórnia David Duke era o “Grande Mago”, chefe da Ku Klux Klan – volto a dizer, da Califórnia, não de Louisiana. Então temos uma coisa bastante mais profunda que é o tema do racismo e que racismo é esse, o que ocorre, quando e como, etc.”

O que é raça?

“Aqui há uma questão em termos de raça ‘como uma construção’” levantou Pablo Pozzi na entrevista: “O que é raça? Os negros africanos, por exemplo, um Pigmeu seria o mesmo que um Watusi que mede dois metros e seria o mesmo que um Benguela que também tem culturas e linguagens diferentes. E mais, nem sequer a tonalidade da cor negra é a mesma. E, no entanto, para os brancos (nós) são todos negros, e para eles nós somos todos brancos. Digamos aqui existe uma coisa muito construída. O que podemos fazer e ver e que não se sabe bem exatamente porque e como, mas que se discute bastante são dois eixos ou temas: um tem a ver com o problema da mão de obra nos EUA. Quando chega a colonização inglesa, além de assassinarem literalmente a população originária da América do Norte, se deparam com uma população originária sem uma sociedade que os acostume ao trabalho, como pode ter acontecido com a encomenda ou a mita do império Inca. Isso implica que necessitam de mão de obra para desenvolver-se, e o que os britânicos começam a fazer inicialmente é trazer servos por dívidas. Ou seja, ‘branquinhos’ particularmente irlandeses, escoceses e galeses, seja porque se rebelaram contra a Coroa, ou porque devem dinheiro ou porque cometeram algum crime, são condenados a sete anos de servidão nas colônias. Depois de sete anos teriam que ser libertados e receber terra em algum lugar. A terra que lhes davam era sempre na fronteira com os índios o que gerava bastante conflito com as populações originárias. Mas de todas maneiras os latifundiários não vêem isso com bons olhos e o que geralmente tendia a acontecer durante os sete anos é que um de cada três desses servos morria porque o super-exploraram. Começam a substituí-los por negros trazidos da África para a economia de plantation, que iam primeiro para o Caribe e depois para lá.”

Depois de fazer um sintético resumo sobre as formas de exploração nos EUA, Pablo Pozzi relata a arma ideológica para a escravidão: “Como justificar a escravidão do negro? Bom, justificavam-na dizendo que são negros e portanto inferiores. O que retoma uma discussão da Idade Média, e depois com o descobrimento da América, que é: ‘O que é um ser humano?’ Uma pessoa que tem alma. O que é um animal? Algo que não tem alma... Os índios são o quê? Crianças, porque têm alma, mas não está desenvolvida. Os europeus são o quê? Adultos, porque têm uma alma... E os negros? Não têm alma, são animais. Portanto, pode-se escravizá-los.”

Justamente em relação a essa justificativa ideológica do racismo e a necessidade de mão de obra como base do surgimento dos EUA potência, Pozzi disse o seguinte: “Absolutamente. Agregue-se a isso um tema de rápido crescimento e industrialização, uso de mão-de-obra e a questão de como fazer para dominar toda essa gente... uma das formas para fazê-lo é dividindo uns dos outros. O racismo se constrói em torno disso, dando e promovendo desde os meios de comunicação, aparato cultural e inclusive desde os empregos... patrões que dão certas qualidades para o que chamamos de ‘características raciais’ O que quer dizer isso? Que a patronal tem trabalhos que são para negros e trabalhos que são para brancos, aos negros pagam menos que aos brancos. Às mulheres pagam menos que aos homens. Se é negra e mulher, você está perdida... Isso implica em quê? Em 1913 a Ford, que impôs o fordismo, inclui uma divisão nas sessões da fábrica por características raciais, religiosas ou étnicas. Tem uma de católicos, uma de protestantes, uma de negros, uma de brancos sulistas, literalmente assim. O trabalho mais qualificado e melhor remunerado era para homens brancos e sindicalizados. A Ford aparentemente era vista como um tipo progressista – ‘Veja que progressista é a Ford, emprega negros!’ – É uma das primeira que emprega negros em sua fábrica, pra quê?, para arrebentar o sindicato e dividir os trabalhadores e mantê-los quanto mais oprimido, melhor. O que implica em que as fábricas da Ford são as últimas a sindicalizar-se na industria automotriz. Ao mesmo tempo em que a Ford financiou Hitler, promove os protocolos da aviação... E estudam o fordismo e o aplicam na faculdade de Ciências Econômicas na UBA...”

“Digamos, o racismo tem a ver com a opressão, a discriminação e a exploração dos trabalhadores. O negro vive pior? Depende, pior do que quem? Se o negro é pobre, vive mal, igual ao pobre branco. Agora, ao mesmo tempo o que se criou desde a década de ’50 e ’60 é, para abreviar, um setor médio e um setor empresarial negro. Tem negros que são muito ricos. Obama não vem dos setores pobres do Harlem. Falemos Claramente. Obama vem de setores muito potentes, muito poderosos e com muita grana. Ou mesmo outros. Temos a Condoleezza Rice, Collin Powell, Clarence Thomas, Juiz da Suprema Corte, etc. Esses não são pobretões discriminados, que estão mal... O que se encontra é uma quantidade de setores humildes, pobres, negros, trabalhadores e desempregados que são terrivelmente discriminados e se dividem...Por quê? Porque são trabalhadores de cor. Digamos, o problema não é de raça, o problema é de classe.”

[Ouça o áudio completo da entrevista aqui]

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