Domingo 28 de Abril de 2024

Cultura

Sobre o filme "Adeus Lênin"

15 Feb 2004   |   comentários

O cenário é a Alemanha Oriental, na época da queda do Muro. O filho, para proteger a mãe que ficara oito meses em coma em decorrência de um enfarte e que era grande entusiasta do “socialismo” ali existente, decide não revelar a ela a queda do muro e a restauração capitalista. Para isso, reconstrói no apartamento da família o cenário da Alemanha Oriental antes da queda do Muro, numa farsa que, à medida que a saúde da mãe progride, se torna cada vez mais insustentável.

Esse é o argumento do filme de Wolfgang Becker, que já é o mais assistido da história da Alemanha com mais de seis milhões de espectadores. Muito se tem falado sobre Adeus, Lênin!, em muitos sentidos. Há quem diga que o filme é anticomunista, como há também quem diga exatamente o contrário. Isso ocorre, em parte, porque o filme, ao mesmo tempo em que coloca uma visão extremamente crítica do assim chamado “socialismo real” , ou seja, do Estado operário deformado; a partir da queda do Muro mostra também o capitalismo em sua face mais degradada e decadente. Assim, se por um lado o “socialismo” se apresenta na repressão brutal a manifestações pela liberdade de imprensa, nas dificuldades económicas e num grupo de escoteiros que entoam canções bucólicas de exaltação à pátria bem à la realismo socialista; a chegada do capitalismo traz as empresas estatais sendo fechadas (não se encontra mais os pepinos Spreewald), tirando o emprego dos “heróis operários” , a irmã de Alex abandonando a faculdade de Teoria Económica para ser atendente do Burger King e se casar com o “inimigo da classe” , o gerente.

A descrição deste cenário inóspito, onde o novo tão esperado não é em nada uma superação positiva do velho, tem que ser entendida como expressão da subjetividade das pessoas que ali viveram e vivem. Ajuda saber que hoje, na Alemanha Oriental, restam apenas um quarto dos postos de trabalho que se tinha em 1989 e a taxa de desemprego é de 19%. Que essa situação assombrosa deu margem ao surgimento de um sentimento de que, mesmo com todas as atrocidades do regime burocrático, naquele tempo se vivia melhor do que hoje. Esse sentimento ’ que tem até nome, Östalgie, da apócope de öst (leste) e nostalgie (nostalgia) ’ se reflete nos jovens usando camisetas com os símbolos da antiga RDA (República Democrática Alemã) e na procura por produtos das antigas empresas estatais e por filmes desse período.

O interessante é que, em Adeus, Lênin!, apesar disso, para mostrar as atrocidades do capitalismo, não se embeleza o que foi a RDA. E da negação simultânea dos dois, que tendencialmente desembocaria num pessimismo profundo, ergue-se um segundo plano narrativo, que é o dos filmes que Alex (o filho) produz com o colega de trabalho e aspirante a cineasta, como se fossem noticiários, para explicar à mãe as contradições entre o que ela começa a ver e o que o filho quer que ela veja. Nesses filmes, a Coca-Cola vira uma “invenção socialista” apropriada pelo capitalismo; os milhares de carros ocidentais passam a pertencer a refugiados de países capitalistas que escolhem viver na Alemanha Oriental; e a própria queda do muro ganha uma nova versão na qual os alemães ocidentais é que derrubam o muro para poderem viver sob o “socialismo” , com o aval do novo chefe-de-Estado, Sigmund Jähn, astronauta e ídolo de Alex na infância.

Na definição do próprio Alex, ao reconstruir a RDA para sua mãe, ele termina por construir a RDA dos seus sonhos. Através dessa arte, que por força da ocasião ele acaba por produzir, ele se humaniza e toma para si o que havia de mais humano na defesa da mãe daquele falso socialismo e que a burocracia usurpara. Alex constrói sua própria farsa em paralelo à farsa oficial da unificação, coroada com a vitória da seleção alemã na Copa de 1990; e, em mais de um momento, já depois da queda do Muro, se refere a dois países ao falar da Alemanha. Do choque entre o pior do capitalismo e da degeneração da revolução, alça-se um sonho do que poderia ter sido mas não foi.

É interessante situar esse filme no marco da atual situação, na qual, em diversos campos do conhecimento começa a abrir-se espaço para ideologias que buscam a emancipação humana, em meio a todo o pessimismo catastrofista herdado dos anos 90. E, no fundo, quem diz que este é um filme anticomunista é quem não diferencia stalinismo de comunismo e entende a derrota das revoluções do Leste Europeu como a “comprovação histórica” de que o socialismo não é uma superação do capitalismo ou acredita que os Estados burocratizados eram o caminho, e não a desviação, do socialismo. Sabemos do peso que essas idéias tiveram e ainda têm e de seu papel nefasto sobre as classes oprimidas.

Mas o filme vai além da nostalgia de um passado que não existiu. Já em seu final, o astronauta (cosmonauta, como se diz no lado oriental), transformado em chefe-de-Estado, diz que “o socialismo não é para ficar isolado” e, mais do que isso, que “não basta sonhar com uma sociedade melhor, é preciso fazê-la acontecer” .

O destino da Alemanha e do mundo depende do quanto os Alex de todos os países acreditem nisso. E para tanto, hoje, a oitenta anos de sua morte, ao contrário de dar adeus a Lênin, é preciso, mais do que nunca, resgatá-lo, o verdadeiro Lênin, despojado de toda a mácula stalinista, revolucionário e internacionalista. Isso o filme não faz, mas essa não é uma limitação do filme, e sim da realidade que ele reflete e que, seguindo os ensinamentos de Lênin, procuramos transformar.

Artigos relacionados: Cultura









  • Não há comentários para este artigo